Privacidade, dados pessoais e tensões com a liberdade de expressão online

AutorEduardo Molina Quiroga
Páginas345-368
325
Privacidade, dados pessoais e tensões com a liberdade de expressão online
18 Privacidade, dados pessoais e tensões com
a liberdade de expressão online
Eduardo Molina Quiroga
Resumo
O direito à privacidade ou à vida privada, que aparece como
protegido no final do século XIX e é reconhecido nos Trata-
dos de Direitos Humanos na segunda metade do século XX,
está relacionado ao direito à proteção de dados pessoais, sem
prejuízo da autonomia conceitual que esta está alcançando
no último triênio do século passado. Ambos sofrem uma mu-
dança notável com a disseminação das TICs e, especialmente,
a Internet. O conflito desencadeado neste cenário confronta
esses direitos com outras liberdades, como a liberdade de ex-
pressão. O presente trabalho procura descrever as principais
características dos direitos supracitados e apresentar uma
proposta de critérios a serem levados em consideração na
resolução desses conflitos.
18.1 Introdução
O reconhecimento do chamado direito à privacidade como um
bem suscetível de proteção legal parece se remontar ao final do
século XIX, uma vez que até então era considerado exclusivamente
como um fato resultante dos costumes sociais ou do chamado res-
peito moral devido à pessoa. Em 1980, Samuel D. Warren e Luis D.
Brandeis publicaram na Harvard Law Review um trabalho intitulado
“The Right to Privacy”356, onde afirmavam que todo indivíduo tem
o direito de “ser deixado em paz” ou de “ser deixado tranquilo”, ou
de “ficar sozinho” ou de “não ser molestado”, isto é, a necessidade
de reconhecimento da existência de uma vida íntima, que devia ser
protegida de maneira equivalente à propriedade privada. Também
é mencionado que Kohler, na Alemanha, já havia se referido em
1880 a um “direito individual que protege o segredo da vida íntima
da publicidade não autorizada”357. O juiz americano Thomas A.
356 Veja Warren & Brandeis (1890).
357 Citado por Fernández Sessarego (1992).
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Governança e regulações da Internet na América Latina
Análise sobre infraestrutura, privacidade, cibersegurança e evoluções tecnológicas em
homenagem aos dez anos da South School on Internet Governance
Cooley, em sua obra The Elements of Torts358, parece ser aquele
que definiu ‘intimidade’ como “the right to be left alone”, um con-
ceito que a doutrina tradicionalmente entende em espanhol como
“o direito de ser deixado em paz” ou “o direito de ficar sozinho”.
Argumenta-se que o desenvolvimento do conceito de direito à pri-
vacidade e à vida privada, dentro do quadro ideológico liberal, é
apresentado como um direito à liberdade, como o direito do indivíduo
de fazer o que sente, ou seja, de estar sozinho, de não ser incomo-
dado, de tomar decisões na esfera privada sem intervenção externa.
Esta não-interferência inclui, entre outras, as decisões relativas à
liberdade sexual, a liberdade de agir livremente dentro do lar, a
liberdade de revelar ou não os comportamentos íntimos e a liber-
dade de identidade. Essa concepção se desenvolve no final do
século XVIII, no calor de um quadro ideológico em que o Estado
passa a ser visto como um “inimigo”. O conceito de liberdade tem
um sentido de liberdade negativa, o que implica não sofrer interfe-
rência de outros (um direito passivo), e quanto mais ampla a área
de não-interferência, mais ampla é a liberdade. Mesmo quando se
admite que a ação livre dos homens deve ser limitada por lei, deve
se preservar uma área mínima de liberdade pessoal que não deve
ser violada, a fim de preservar o desenvolvimento mínimo de suas
faculdades naturais. Isso explica a necessidade de estabelecer uma
fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública.
A característica saliente deste “direito à privacidade”, de acordo
com a descrição original feita por Warren e Brandeis, consistia em
que não era um direito reconhecido pelo indivíduo contra o poder
público do Estado, mas um direito reconhecido aos indivíduos na
frente de outros indivíduos particulares conformados, substancial-
mente, pela mídia de imprensa pela qual a “invasão da privacidade”
se produzia. Era um direito individual de natureza infraconstitu-
cional, cuja violação por outro particular e substancialmente pela
imprensa, dava o direito de pedir uma indemnização por danos e
prejuízos (torts), cuja existência só poderia ser considerada como
tal, na medida em que não tinha mediado um “consentimento”
prévio da vítima para a publicação.
358 Veja Cooley (1895).

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