Sobre princípios e regras

AutorManuel Atienza; Juan Ruiz Manero
CargoProfessor Catedrático de Filosofia do Direito, Universidade de Alicante, Espanha/Professor Catedrático de Filosofia do Direito, Universidade de Alicante, Espanha
Páginas49-68

Tradução de Renata Quinaud Pedron e Flávio Quinaud Pedron

Revisão de Emílio Peluso Neder Meyer

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1 Introdução

Um dos temas mais discutidos na teoria do Direito das duas últimas décadas é, sem dúvida nenhuma, o dos princípios. O debate – como todo o mundo sabe – se inicia com um trabalho de Dworkin de 1967 (Dworkin, 1978), ainda que os “princípios jurídicos” (ou os “princípios gerais do Direito”) sejam velhos conhecidos (mesmo que talvez não mais que conhecidos) dos juristas. O Código Civil austríaco de 1811 já falava sobre os princípios gerais do Direito, e continuaram falando deles desde então – entre muitos outros textos legislativos – o Código Civil italiano de 1865, o espanhol de 1889 e o art. 38 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça de Haya; nos trabalhos de dogmática jurídica e nas decisões jurisprudenciais, a referência aos princípios é, pode-se dizer, um lugar comum; e a reflexão sobre os mesmos não esteve também ausente da teoria ou Filosofia do Direito anterior a Dworkin (cfr., por exemplo, Del Vecchio, 1958; Esser, 1956; Bobbio, 1966). Se, apesar deste último, a posição de Dworkin foi considerada em geral como inovadora, isto parece decorrer (deixando de lado os méritos intrínsecos de sua obra) de seuPage 50 propósito de se opor à concepção dominante na teoria do Direito do momento e que ele identifica, corretamente, com a obra de H. L. A. Hart.

Nós consideramos, por certo, que em uma boa medida o ataque de Dworkin erra o alvo, pela simples razão de que caracteriza mal a concepção de Hart e a do positivismo jurídico em geral (cfr. Carrió, 1986). Parece-nos, igualmente, que quem sustenta uma concepção do Direito como a de Hart não tem porque ser cauteloso em negar que o Direito está integrado não só por regras, mas por padrões do tipo que Dworkin chama de princípios (ou, ao menos, não teriam maior inconveniente em afirmar que muitos desses padrões formam parte, de acordo com os critérios hartianos, do Direito). Mas não podemos deixar de reconhecer também que os princípios do Direito – o que quer que sejam – foram deixados de lado na análise levada a cabo por Hart, apesar de serem de uma enorme importância para se entender a estrutura e o funcionamento do Direito.

Por outro lado, o que vale para Hart se aplica também - e em maior medida – a autores como Kelsen e Alchourrón e Bulygin, cujas obras, em nossa opinião, constituem os marcos fundamentais da teoria do Direito imediatamente anterior e posterior a O conceito de Direito. No caso de Alchourrón e Bulygin, parece que por “princípios jurídicos” tão-somente poderia se entender uma dessas duas coisas: ou bem se tratariam de normas não coativas (isto é, enunciados que ordenam, proíbem ou permitem condutas em determinados casos genéricos sem estabelecer sanções), que se caracterizariam porque a descrição das propriedades relevantes do caso genérico correspondente apresentariam um alto grau de generalidade e/ou de indeterminação semântica; e em tal caso seriam normas (enunciados que correlacionam casos com soluções) indistinguíveis das regras.1 Ou bem poderia se tratar de enunciados que nem seriam normas e nem teriam influência alguma sobre as conseqüências normativas do sistema (um exemplo disso, para esses autores, constitui os “enunciados que apresentam teorias políticas” [Alchourrón e Bulygin, 1974:107]) e que, na realidade, não suscitam nenhum problema de interesse: “se tais enunciados são considerados parte integrante do sistema jurídico ou não, não é uma questão tão importante; Kelsen se inclina a eliminá-los totalmente, o que parece ser bastante razoável” [ibid.]. Pelo quePage 51 logo se verá, nenhuma dessas alternativas – os princípios, ou são regras ou são irrelevantes – parecem aceitáveis.

Nosso propósito neste trabalho não é o de apresentar uma versão melhorada de alguma das anteriores concepções do Direito, para assim dar conta totalmente dos princípios. Também não pretendemos propriamente interferir em uma polêmica que em muitos aspectos se tornou, certamente, densa. O que nos propomos – isso sim, utilizando com liberdade elementos surgidos no debate anterior – é, mais propriamente, tratar de dar uma resposta – ou o começo de uma resposta – a algumas das perguntas fundamentais que suscitam os princípios no Direito: em primeiro lugar, que traços estruturais diferenciam os princípios das regras; em segundo lugar, que tipo de razões para a ação são os princípios e em que se diferenciam a esse respeito das regras; em terceiro lugar, no que contribuem os princípios à explicação e à justificativa no âmbito jurídico.

2 Tipos de princípios
2. 1 Diversos sentidos de “princípio jurídico”

Começando pelo óbvio, todos sabem que os juristas utilizam a expressão “princípios jurídicos”, “princípios gerais do Direito” ou outros semelhantes com significado diversos, e não parece que tem muito sentido afirmar que um deles é o essencial, o verdadeiro, ou coisa parecida. De todas as formas, as acepções mais significativas que se encontram em contextos jurídicos parecem ser os seguintes (levamos em conta, principalmente, as análises de Carrió, 1986 e Guastini, 1990):

  1. “Princípio” no sentido de norma muito geral, entendendo por tal – como antes se apontou – as que regulam um caso cujas propriedades relevantes são muito gerais. Por exemplo, o art. 1091 do Código Civil espanhol, quando estabelece que “as obrigações que nascem dos contratos têm força de lei entre as partes contratantes, e devem cumprir-se ao modo dos mesmos”. Não se está dizendo que a propriedade de que uma norma seja geral é questão relativa e gradativa: a norma anterior – ou princípio – é mais geral do que as que se aplicam exclusivamente aos contratos de locação (por exemplo, o art. 1545: “os bens fungíveis, que se consomem com o uso, não podem ser matéria deste contrato”), e menos geral que as que se aplicam aos contratos e outros atos jurídicos (por exemplo, o art. 11,1: “ as formas e solenidades dos contratos, testamentos e demais atos jurídicos se regerão pela Lei do país em que se outorguem”). A generalidade de uma norma não é, no sentido em que aqui empregamos a expressão, uma qualidade que tenha a ver com a maior ou menor amplitude daPage 52 classe dos destinatários da mesma, se não com a maior ou menor generalização (ou “genericidade”, se assim queira) das propriedades relevantes do caso que regula.

  2. “Princípio” no sentido de norma redigida em termos particularmente vagos, como o art. 7, ap. 2 do Código Civil espanhol: “a Lei não ampara o abuso do direito ou o exercício anti-social do mesmo”. Certamente, há muitas normas que são vagas no sentido de que na descrição do caso genérico aparecem termos que têm um contorno de textura aberta: a maioria dos casos ordinários fica, claramente, dentro ou fora da norma, mas existem também situações (excepcionais) nas quais são duvidosas se a elas se aplicam ou não a norma. No entanto, o exemplo de norma (ou de princípio) indicado alude a outro tipo de indeterminação que se produz quando se utilizam o que os juristas chamam de conceitos jurídicos indeterminados, isto é, termos (por exemplo, “abuso de direito”) que são centralmente vagos e que não têm somente um contorno de textura aberta: aqui também, podem se encontrar casos claramente cobertos ou claramente fora do alcance da norma, mas a imensa maioria dos casos reais exige uma tarefa de concretização, isto é, uma ponderação de fatores relevantes cuja identidade e combinações possíveis não resultam antecipáveis.

  3. “Princípio” no sentido de norma programática ou diretriz, isto é, de norma que estipula a obrigação de perseguir determinados fins. Por exemplo, o art. 51 da Constituição Espanhola: “os poderes públicos garantirão a defesa dos consumidores e usuários, protegendo, mediante procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os interesses econômicos legítimos dos mesmos”.

  4. “Princípio” no sentido de norma que expressa os valores superiores de um ordenamento jurídico (e que são o reflexo de uma determinada forma de vida), de um setor do mesmo, de uma instituição, etc. Por exemplo, o art. 14 da Constituição Espanhola: “os espanhóis são iguais perante a lei, sem que possa prevalecer qualquer discriminação por razão de nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social”.

  5. “Princípio” no sentido de norma especialmente importante, ainda que seu grau de generalidade possa ser relativamente baixo. Por exemplo, o art. 56, ap. 3 da Constituição Espanhola: “a pessoa do Rei é inviolável e não está sujeita a responsabilidade”.

  6. “Princípio” no sentido de norma de hierarquia elevada. Segundo este significado, todas as normas constitucionais seriam princípios, incluindo as que não parecem ser nem muito gerais nem muito importantes. Por exemplo, o art. 160 da Constituição Espanhola: “o Presidente do Tribunal Constitucional será nomeado entre seus membros pelo Rei, conforme proposta do pleno do mesmo Tribunal e um por um período de três anos”.

  7. “Princípio” no sentido de norma dirigida aos órgãos de aplicação jurídicos e que define, com caráter geral, como se deve selecionar a norma aplicável, interpretá-la, etc. Por exemplo, o art. 4, ap. 2 do Código Civil: “as leis penais, as excepcionais e as de âmbito temporal não se aplicarão às hipóteses nem a momentos distintos dos compreendidos expressamente nelas”.

  8. “Princípio” no sentido de regula iuris, isto é, de enunciado ou máxima da ciência jurídica de um grau de generalidade considerável e que permite a sistematização do...

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