Os princípios peculiares do direito comercial e a aplicação do código de defesa do consumidor aos contratos empresariais

AutorAlexandre Stagni - André Coutinho Nogueira - Caio Cabeleira - Elber Christian Ouchana - Guilherme Amado Gomes
Páginas209-244

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1. Apresentação

O presente trabalho foi desenvolvido com o objetivo de analisar e responder a algumas questões envolvendo o direito comercial, particularmente as relacionadas à unificação do Código Comercial com o Código Civil. Outro ponto fundamental refere-se a uma análise das conseqüências que o Código de Defesa do Consumidor, elaborado em 1990, trouxe às relações mercantis.

Com o intuito de discutir o tema proposto, foi feita uma pesquisa em torno da jurisprudência brasileira. Essa pesquisa restringiu-se basicamente a um intervalo de um século (início do século XX até os nossos dias), e em relação ao cunho espacial da mesma faz-se mister salientar que ela englobou unicamente o território nacional, tentado abarcar, da melhor maneira possível, o maior número de Estados da União. Contudo, pode-se notar que, em sua maioria, os acórdãos pertencentes ao trabalho são oriundos do Estado de São Paulo, encontrados na Revista dos Tribunais, devido à maior demanda comercial que este Estado apresentou ao longo desse período da história do país. Por fim, vale destacar que a pesquisa foi de grande abrangência, porém só os acórdãos mais representativos e interessantes ao tema foram usados no trabalho. Assim, pode-se dizer que o presente trabalho caracteriza-se por ser uma obra de análise baseada em pesquisa qualitativa e minuciosa, e não quantitativa.

Quanto à organização desta peça, é relevante ressaltar que foram selecionados

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os trechos mais importantes das decisões colacionadas para integrar a parte principal do trabalho, sendo numeradas ao final. Essa numeração destina-se a facilitar a leitura, constando ao final do trabalho a indicação das peças a que ela se refere.

O último ponto a ser ressaltado nesta breve apresentação consiste em dizer que o trabalho não foi feito de forma estanque, ou seja, as diversas questões que serão levantadas em nossa "Introdução" foram sendo respondidas ao decorrer da obra, respeitando uma linha lógica e visando à facilitação da compreensão do tema.

2. Introdução

O tema deste trabalho concerne em discorrer e fazer uma pesquisa jurispru-dencial acerca do seguinte tema: "Os princípios peculiares do direito comercial e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos empresariais".

Para tanto, devemos adentrar uma análise histórica jurisprudencial tanto da evolução dos contratos comerciais quanto do direito do consumidor, para que, assim, se possa identificar e compreender os princípios peculiares de cada matéria e as recíprocas influências que exercem.

Será o direito do consumidor ramo do Direito criado pelo Código de Defesa do Consumidor, em 1990, ou se trata de uma matéria existente no ordenamento há mais tempo? Qual seu verdadeiro impacto no direito comercial? Em que casos a jurisprudência aplica o Código de Defesa do Consumidor em contratos comerciais? Quais os motivos? Estaria o Código de Defesa do Consumidor aviltando a lógica mercantil? Qual a relação da evolução da interpretação dos contratos comerciais com o Código de Defesa do Consumidor?

São estas as questões que este trabalho busca responder por meio de pesquisa em doutrina e jurisprudência de todo o século XX e do século XXI.

3. Evolução histórica da interpretação dos contratos comerciais na doutrina e na jurisprudência brasileiras

Os contratos, como instrumentos de facilitação e regulação das trocas econômicas, desenvolveram-se, ao longo dos séculos, como um retrato da realidade social. Isto significa dizer que o surgimento e o aperfeiçoamento dos mesmos não foi fruto de uma construção teórico-hipotética de um grupo especializado de indivíduos engajados na matéria, mas, sim, de um aperfeiçoamento natural que se deu de acordo com as exigências das práticas sociais.

Sob a influência do Liberalismo do século XVIII, os contratos baseavam-se na idéia de que as partes tinham total autonomia para contratar, uma vez que eram consideradas em igualdade de condições. Tanto compradores como vendedores eram vistos como agentes conscientes, que buscavam os objetivos almejados com as mesmas possibilidades. Essa era a expressão da doutrina da Economia Clássica, tendo como principal expoente Adam Smith. Pode-se notar claramente que tal entendimento das relações contratuais visava a valorizar a autonomia da vontade, ou seja, tudo decorria e obrigava as partes a partir de suas manifestações livres, sem vícios de consentimento.

Estado e sociedade estavam totalmente separados. Aquele servia apenas para fazer valer as pretensões avençadas pelas partes no contrato. Pouco importava que o estabelecido fosse ou se tornasse muito oneroso para algum pólo da obrigação, restando apenas o cumprimento incondicional do contrato, uma vez que esse era lei entre os contratantes. Era o princípio pacta sunt servanda: os contratos foram feitos para serem cumpridos.

Tal dogma estende-se por séculos, não apenas na doutrina, mas principalmente na resolução de litígios. Como se pode ver na análise da jurisprudência brasileira, é vasta a quantidade de decisões que se baseiam

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nesse princípio. Podemos apontar um acórdão de suma importância julgado pela Corte Suprema brasileira, datado de 1935. [V. Anexo, N. 1] Nesse caso, uma companhia encomendou com um cotonifício a compra e entrega de 120 caixas de brim e 100 fardos de riscado. Após certa quantidade do que foi estipulado ter sido entregue, a parte compradora pediu o cancelamento da entrega do restante e, conseqüentemente, a rescisão do contrato alegando que, em decorrência da "Gripe Espanhola", que constitui indiscutível força maior, não conseguiria revender a mercadoria e, portanto, cumprir o contrato. A Corte decidiu, confirmando a decisão de primeira instância, que, mesmo a obrigação tornando-se excessivamente onerosa para o comprador, ela deveria ser cumprida, pois não havia se tornado absolutamente impossível de ser adimplida.

Obviamente se pode perceber nesse acórdão que o princípio pacta sunt servan-da foi aplicado tacitamente. A gripe, que assolou a cidade, tornou-se uma epidemia, comprometendo a vida econômica e impedindo as trocas comerciais. Contudo, não foi o suficiente, segundo a interpretação da Corte, para justificar a rescisão do contrato, como se pode analisar:

Não tenho dúvida em admitir a notoriedade do facto invocado pelos appellantes. A epidemia constituiu, realmente, uma calamidade publica, de larga extensão, e a ella se referiram a imprensa de todo paiz e diversos actos officiaes.

Mas para a extincção da obrigação não era bastante houvesse occorrido aquella epidemia e sim que dahi tivesse resultado a impossibilidade da execução.

(...). A paralyzação dos negocios, pois, por si só, não justifica a recusa op-posta pelo comprador ao recebimento da mercadoria, e muito menos autorizava o cancellamento da encomenda.

(...). É, porém, manifesto que tal epidemia não os impedia ineluctavel-mente de cumprir a contra-prestação que lhes competia: o pagamento do preço da encommenda convencionado e pedido na presente acção.

(...). Assim posta a questão, torna-se patente que a allegada epidemia não impossibilitou, por parte delles, reus appelantes, o cumprimento do contracto por parte delles; tornou o contracto menos conveniente, menos vantajoso; quiça desvantajoso para elles. Semelhante desvantagem, porém, mesmo imprevista, mesmo imprevisível, não autoriza de modo algum, em Direito, a rescisão dos contractos. [N. 1]

Tais argumentos, como se pode notar, expressam a força obrigatória dos contratos na teoria clássica, vinculando as partes ao seu cumprimento incondicionalmente, a não ser que a mesma vontade recíproca, que os vinculou, venha a liberá-los através de um novo acordo, em consonância com os ensinamentos de Sílvio de Salvo Venosa: "(...) concluído o contrato, deve ele permanecer incólume, imutável em suas disposições, intangível por vontade unilateral de um dos contratantes".1

No caso, é notório que a situação se tornou por demais dificultosa para o comprador, perdendo toda a razão de ser do contrato. Contudo, o vínculo obrigacional continua vigorando, e não pode ser alterado, senão de comum acordo. Como destaca Cláudia Lima Marques: "(...) se o consentimento viciado não obriga o indivíduo, o consentimento livre de vícios o obriga de tal maneira que, mesmo sendo o conteúdo do contrato injusto ou abusivo, não poderá ele, na visão tradicional, recorrer ao Direito a não ser em casos especialíssimos de lesão. Os motivos que levaram o indivíduo a contratar, suas expectativas originais, são irrelevantes".2

Disso decorre o caráter individualista da interpretação dos contratos ao admitir

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que as partes se obrigaram unicamente por vontade própria, seguindo o princípio da livre estipulação das cláusulas e da liberdade de forma. Portanto, não cabe ao juiz e ao Estado a função de dar mais eqüidade às relações estabelecidas, mas apenas determinar que a vontade estipulada pelas partes seja realizada. Assim mostra uma decisão proferida pelo STF em 1922 na qual a Corte, valendo-se do princípio optima est lex quae minimem relinquit arbitrio judicis, decidiu, por unanimidade, não reconhecer a ocorrência de força maior que justificasse o não-cumprimento do contrato. Por mais que a I Guerra Mundial tivesse atrapalhado de forma substancial a entrega da mercadoria, e mesmo...

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