Princípios Interpretativos

AutorWladimir Novaes Martinez
Ocupação do AutorAdvogado especialista em Direito Previdenciário
Páginas279-301

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171. Introdução

À falta de disposição legal ou quando a norma jurídica é obscura, na aplicação do direito cabem, respectivamente, integração e interpretação. Isso é válido no Direito Social, em que assume relevância e, em particular, no Direito Previdenciário.

É rara a ausência total da norma, quando a integração se impõe por meio da analogia, da equidade e do emprego de princípios, mas determinações equívocas e conlitos de comando, requerendo interpretação, não são tão raros.

Os princípios ou regras interpretativas de Direito Previdenciário não se confundem com os princípios substantivos ou adjetivos. Contida no Direito, a hermenêutica constitui campo com características singulares, técnicas e regras especíicas, situando lugar e época em que a norma é considerada.

Essa distinção é necessária; os preceitos seguintes estão apartados dos princípios básicos ou técnicos, embora seja nítida sua inluência.

A interpretação do Direito Previdenciário, como de todo o Direito Social, não é matéria de fácil exposição. A rigor, não há entre os estudiosos um consenso a respeito dos limites da essencialidade, da pluralidade das relações jurídicas, da natureza do seguro social e, principalmente, dos princípios interpretativos. Por exemplo, se deve ser aplicado o in dubio pro misero ou o in dubio pro societate.

Diiculdade maior reside em situar-se o papel da previdência social, à base de toda exegese, tarefa hercúlea dependente da diretriz mestra da técnica de proteção social enfocada. O princípio interpretativo acolhido na previdência social talvez não possa ser aproveitado na seguridade social. Sabidamente, regras interpretativas de assistência social não vigem na previdência social. O Direito Acidentário compreende interpretação distinta da do Direito Previdenciário, de modo geral.

Registros na doutrina brasileira a respeito de princípios interpretativos são raros, destacando-se a contribuição de Armando de Oliveira Assis, Marly Antonieta Cardone, Elcir Castelo Branco e João Antonio Guilherme Bernard Pereira Leite.

Washington de Barros Monteiro resume as regras da doutrina e da jurisprudência pátrias aplicáveis à interpretação (Curso de Direito Civil, p. 39):

  1. Na interpretação deve sempre preferir-se a inteligência com sentido em detrimento da sem sentido;

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    b) Deve eleger-se a inteligência a favor da tradição do direito;

  2. Deve ser afastada a exegese conducente ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo;

  3. Há de se ter em vista o ordinariamente sucedido no meio social;

  4. Quando a lei não distingue, o intérprete não deve igualmente distinguir;

  5. Todas as leis excepcionais ou especiais devem ser interpretadas restritivamente;

  6. Em matéria iscal, a interpretação se fará restritivamente.

    Finalmente, relativamente às leis sociais “será preciso temperar o espírito do jurista, adicionando-lhe certa dose de espírito social, sob pena de sacriicar-se a verdade à lógica” (Capitant).

    No dizer de Amílcar de Araújo Falcão interpretar é dizer o determinado na lei. O “intérprete, portanto, não cria, nem inova; limita-se a considerar o mandamento legal em toda a sua plenitude e extensão ou a, simplesmente, declarar-lhe a acepção, o signiicado e o alcance” (Interpretação e Integração da Lei Tributária, p. 25).

    Essas lições, contudo, não arredam toda a perplexidade do estudioso no processo de interpretação. Boa parte disso se deve à falta de estudos jurídicos e à imaturidade da disciplina.

172. Princípio do in dubio pro misero

De todos os princípios de interpretação do Direito Previdenciário, este é capaz de despertar dissenções. Nem sempre aplicado, mas muitas vezes referido, produz estupefação entre os estudiosos; estes, a rigor, não têm opinião irmada sobre o assunto, preferindo acostar-se nessa ou naquela posição, não resistindo à tentação de acolher o ponto de vista dos juslaboristas.

A primeira diiculdade consiste em transportar o postulado, por inteiro, do Direito do Trabalho para o Direito Previdenciário, identiicando as relações entre esses ramos do Direito Social. No direito laboral, ocorrem vínculos entre pessoas; no seguro social, relações entre pessoas e instituição, de regra, indivíduos e Estado, aproximando-se a questão, destarte, do cotejo entre interesse individual e público.

Outro óbice é equiparar previdência social à assistência social. Os princípios interpretativos, de aplicação e integração da primeira técnica, não se confundem com os da outra. A proteção na assistência social atinge níveis insuspeitados no seguro social.

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Mas, maior obstáculo, crê-se, reside em ixarem-se condições de instalação da dúvida e no campo da aplicação do princípio. De natureza genérica, ao cogitar sua utilização em Direito, reclama cuidados especiais de parte do exegeta.

Mal se sabendo de antemão qual é o destinatário do adágio — deven-do-se determinar o signiicado da palavra hipossuiciente — é preciso dizer o conceito de dúvida e a qual se refere o princípio: dúvida quanto ao fato ou quanto ao direito incidente.

De Plácido e Silva deine-a como “incerteza sobre a realidade de um fato ou verdade de uma asserção; hesitação, indecisão” (Vocabulário Jurídico, p. 495)

Dessas, preferem-se as duas últimas deinições, pois incerteza é oposta a certeza; aproxima-se do desconhecimento e distancia-se da hesitação.

“Dúvida” provém do latim dubitare, dubitar; quer dizer hesitar, vacilar. Embora haja signiicativa diferença entre os sentidos de incerteza e hesitação, provavelmente os resultados práticos serão os mesmos, sensação de não se saber qual atitude tomar diante da possibilidade alternativa.

Os dicionaristas não melhoram as coisas. Para Francisco Fernandes (Dicionário Brasileiro Contemporâneo, p. 407) dúvida é a falta de certeza sobre a realidade de fato ou sobre a verdade de uma asserção; vacilação; indecisão; suspeita; diiculdade em crer; cepticismo; escrúpulo; objeção. Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso (Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, p. 43), Afonso Telles Alves (Dicionário Moderno da Língua Portuguesa, p. 341) e Francisco da Silveira Bueno (Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, p. 366) seguem nessa linha de pensamento.

Desses sinônimos reproduzidos, é possível ixar-se em uma das concepções da dúvida: ela é disposição de não aceitar o fato, elemento subjetivo. Exemplo, em relação à incapacidade para o trabalho de um segurado, o médico pode formular as seguintes posições: a) certeza — disposição de aceitar a incapacidade; b) incerteza — disposição neutra; e c) dúvida — disposição de negar a incapacidade.

Essa concepção é distinta da dúvida referente à hesitação em adotar uma posição dentre duas ou mais possíveis.

Álvaro Magalhães dá enfoque ilosóico: “Estado de indeterminação da inteligência, que consiste na suspensão de um julgamento, na ausência de airmação e de negação, seja porque não existem motivos para uma ou para outra, seja porque os motivos se equilibram. A dúvida pode ser real ou metódica: é real quando a suspensão do julgamento se impõe ao espírito, independentemente da vontade; é metódica quando a suspensão é provisória e ictícia, dependente da vontade e tem por objetivo controlar ou demonstrar o valor de um conhecimento tido como verdadeiro” (Dicionário Enciclopédico Brasileiro, p. 584).

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Dúvida não é desconhecimento; também não corresponde exatamente à incerteza, oposta à certeza. Desconhecimento é desconformidade entre o substrato da realidade e a ideia concebível sobre ela. E se a incerteza prossegue ad ininitum? Quando absoluta ela equivale, do ponto de vista lógico e jurídico, à dúvida, cabendo ou não aplicar o princípio.

Dúvida não se confunde com ignorância do fato, quando impossível a apuração. No dizer de Alcides Munhoz Netto (A Ignorância da Antijuridicidade em Matéria Penal, p. 4), a “ignorância não se confunde com a dúvida, porque aquela pressupõe a ausência de qualquer representação e, na dúvida, há mais de uma representação, uma das quais conforme à realidade”. Exempliicativamente, se um segurado desaparece junto com navio naufragado, há falta de informações quanto ao seu paradeiro, mas há solução na lei (PBPS, art. 78). Vige, in casu, a presunção de morte do segurado.

Se um médico considera estar incapaz o segurado e outro proissional, de mesmo nível hierárquico, não estar, há incerteza quanto à incapacidade. Ela deve ser desfeita por terceiro facultativo, eleito desempatador. Mas se o segurado, por outro motivo, falece antes de ser examinado por esse terceiro médico? A incerteza chega à dúvida e impõe-se aplicação ou não do princípio. No caso, a morte — os corolários seguintes e os pressupostos admissíveis — indicam a necessidade da proteção.

Se um trabalhador rural, empregado de empresa agroindustrial ou agrocomercial, presta serviços no setor agrário e no setor industrial (ou comercial), indistintamente, instalando-se dúvida quanto a se sujeitar a regime previdenciário rural ou urbano, entende-se estar abrigado pelo último (Decreto n. 83.080/79, art. 5º, VIII). Não se trata de aplicação do princípio em foco ou não, mas de regra de interpretação da norma mais favorável.

Na revisão de inquérito administrativo, a dúvida favorece a manutenção de conclusão de inquérito (Formulação da COLEPE n. 70. In: Resolução IAPAS n. 63/80).

Nesses dois últimos exemplos, não são aplicáveis os princípios interpretativos porque a própria norma, exegética, aponta a solução.

Dúvida não se confunde com ausência de provas. Se a prova não é plena, não há prova. Inexiste direito, se ele dependia de prova. Wilson de Souza Campos Batalha põe-se...

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