Princípios de governança corporativa

AutorJorge Lobo
Páginas141-154

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I - Introdução

"Os códigos de governança corpora-tiva estão proliferando. Contudo, os escândalos corporativos continuam surgindo. O que pode e deve ser feito?" (John Plender e Avinash Persaud).1

Anualmente, nos quatro primeiros meses seguintes ao término do exercício social, as sociedades limitadas, com mais de dez sócios, e as sociedades anónimas, pequenas, médias e grandes, qualquer que seja o número de acionistas, são obrigadas a realizar assembleias gerais ordinárias com a finalidade precípua de (a) tomar as contas dos administradores, (b) examinar, discutir e votar as demonstrações financeiras, (c) deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício e a distribuição de dividendos e (d) eleger os gestores, quando for o caso, ocasião em que, ademais, os sócios das sociedades limitadas e os acionistas das sociedades anónimas têm aopor: tunidade de verificar se os administradores, por eles selecionados e eleitos, cum-priram à risca os "Códigos de Conduta Ética", difundidos em todo mundo sob a denominação de "Códigos de Governança Corporativa".

Mas, têm-se indagado, com insistência: o que significa e para que serve a "Governança Corporativa"?

Governança Corporativa é o conjunto de normas, consuetudinárias e escritas, de cunho jurídico e ético, que regulam os deveres de cuidado, diligência, lealdade, informação e hão intervir em qualquer operação em que tiver interesse conflitante com o da sociedade; o exercício das funções, atribuições e poderes dos membros do conselho de administração, da diretoria executiva, do conselho fiscal e dos auditores externos, e o relacionamento entre si e com a própria sociedade, seus acionistas e o mercado em geral.

Surgida há mais de um século na Inglaterra, no alvorecer do capitalismo moderno rios países aíiglo-saxões e praticamente hibernada durante décadas, a governança corporativa reapareceu, com força e vigor, rias:décadas de 70 e 80 do século XX e, nos últimos" dez anos, passou a ser assunto do cotidiano de políticos, empresários, administradores de empresas, economistas, juristas è auditores, no país e no ex-

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terior, em virtude de gravíssimas crises e falências de empresas nacionais e multinarr cionais, provocadas por gestão temerária e ruinosa, escândalos financeiros, fraudes contábeis falsificação e deturpação de dados e documentos, manipulação de balanços, dilapidação de ativós patrimoniais, etc

Processos bilionàrios (em dólares americanos) de fusões e aquisições (F&A), que se multiplicaram na década de 90 do. século passado e no limiar deste novo milénio, aliás em número crescente e deveras impressionante, estão invariavelmente repletos de "armadilhas", das quais sobressaíram sempre ò superfâturaménto e supe-restimativas de sinergia eVóutrossim, falhas de governança corporativa, não detectadas por due diligence pré-aquisição, como ficou patente nos litígios Sunbeam/Coleman, MCI/WorldCom, Cendant e AOL/Time Warner.

Falhas de governança corporativa são comuns, também, quiçá sobretudo, na fase de integração pós-aquisição, quando aumentam os riscos de fraudes e de perda da garantia dos direitos dos acionistas minoritários, com a agravante de essas falhas poderem ocorrer no curto prazo, durante o período de transição, e no longo prazo, sendo certo que, "enquanto os efeitos do curto prazo podem ser custosos e traumatizantes, os de longo prazo podem serfatais" (Lau-rence Capson e Karen Schnatterly).

A reiteração das falhas pré e pós-aqui-sição e a sequência de quebras de mega-companhias transnacionais produziram uma 'pletora de obras sobre governança corporativa, redigidas, nos últimos vinte anos, por professores de direito, administradores de empresas e economistas, e, outrossim, uma série de "Códigos de Condutas", por alguns vistos com ceticismo, porquanto imporiam um exercício apenas retórico e assaz burocrático de cumprimento de normas, pois "muitos códigos são exercícios cínicos de relações públicas",2 enquanto, para outros, as companhias "devem elevar seus padrões de governança corporativa e reconhecer que a ética nos negócios é a opção mais lucrativa".3

No firme propósito de colaborar no rdebate, organizei o seguinte decálogo de "Princípios de Governança Corporativa": eticidade; moralidade; ativismo societário; protèção ao acionista minoritário; tratamento equitativo; transparência e divulgação de informações; independência dos administradores; responsabilidade dos administradores; razoabilidade ou proporcionalidade e função social da empresa, e deles tratarei à seguir.

II - Princípio da éticidade

"Falta ética e decência" (Des. Raul Celso Lins e Silva).

No auge da crise mundial da Parmalat - "um escândalo contábil cada vez mais complicado"4 a auditora-chefe da Comissão Europeia afirmou, com ares de previsão, que "estamos no início de uma onda de novos escândalos financeiros na Euro para, a seguir, advertir: "não adiantam normas se não houver ética por parte dos executivos".5

Em virtude dos escândalos da Parmalat, Arthur Andersen, Enron, WorldCom e tantos outros, hoje, mais do que nunca, aqui e no exterior, fala-se, escreve-se, discute-se sobre "a ética na política", "a ética ambiental", "a ética na mídia", "a ética nos esportes", "a ética nos negócios" e, até mesmo, "a ética da felicidade", e, por conseguinte, sobre o "princípio da eticidade" e os valores que ele encerra e busca realizar.

O princípio da eticidade, autêntico paradigma das normas sobre governança

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corporativa, impõe que se dedique "o homem a fazer a cousa certa" (Sartre e Kier-keggard), através de "comportamentos valiosos, obrigatórios e inescapáveis" (Adolfo Sanchez Vazquez).

A partir dessa concepção, a melhor doutrina estrangeira vem pregando, de forma reiterada e candente, nos EUA, na Europa e na Ásia, que as informações, de qualquer natureza e espécie, em especial quanto aos balanços e demonstrações financeiras, veiculadas pela mídia impressa ou televisiva, devem primar pela veracidade como uma "escolha ética e política da empresa",6 para evitar "erros que levem a fraudes",7 em prejuízo da sociedade, seus acio-nistas, empregados, credores e consumidores, o que levou a Lei Sarbanes-Oxley a estabelecer que as companhias de capital aberto devem informar se criaram um Código de Conduta Ética - CCE - para dire-tores financeiros de primeiro escalão; na falta de um CCE, são obrigadas a declinar as razões e a justificar-se.

É curial que a companhia não é obrigada a divulgar determinadas informações, mas, se decidir fazê-lo, deve dizer toda a verdade, sob pena de responsabilidade dos diretores e funcionários que se comunicam com analistas de mercado e investidores, privados ou institucionais, prevendo a regra Ob, do Securities Êxçhange Act de 1934, primeira disposição antifraude americana sobre valores mobiliários, aplicável, inclusive, a atos praticados fora dos Estados Unidos, que devem ser punidos os autores de relatórios inexatos e os responsáveis por omissões de fatos materiais significativos, que levem a decisões equivocadas com base em informações distorcidas.

Determinadas matérias, de relevante interesse para a companhia, seus acionis-tas e credores, como, por exemplo, o processo de auto-avaliação (assessment) dos membros do conselho de administração, em especial seu desempenho; a remuneração dos executivos; os planos de opção de ações como estímulo à maximização dos lucros; as doações políticas; a destituição de administradores por má-performance, por erros acidentais (errors) e por irregularida-des (irregularities), devem reger-se por um rigoroso código de conduta ética.8

A par da transparência e veracidade das informações, o princípio da eticidade inspira e orienta a atuação diuturna dos administradores de empresas, pautando o exercício de suas funções, atribuições, poderes e, em especial, de seus deveres fiduciários, o que os compele a agir com discrição e cautela e jamais se porem em situações de conflito de interesses potencial ou real.

A propósito, relembre-se que a nossa Lei de Anónimas sabiamente coíbe a conduta antiética do acionista controlador, que induz o administrador à prática de ato ilegal ou a descumprir os deveres próprios de seu cargo (LSA, art. 117, § Ia, alínea c).

III - Princípio da moralidade

"Os escândalos financeiros são con-seqiiência de comportamentos desonestos" (Hélène Ploix).9

Como a palavra justiça ultrapassa os limites estreitos e frágeis do direito e abarca e engloba preceitos de ordem ética e moral, os Princípios da Eticidade e da Moralidade vão muito além das normas dos "Códigos de Governança Corporativa" ou "Códigos de Conduta'Ética", editados no país. e no exterior.

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Ao iniciar este estudo pelos Princípios da Eticidade e da Moralidade, tenho por finalidade precípua deixar patente que tão ou mais importante do que as regras, escritas e cohsuetudinárias,- dè Governança Corporativa, que visam; sem dúvida, à realização da Justiça é do Direito, são as ideias, impregnadas de valores perenes, que nos legou a cultura grega, de "homem bom e justo", de "homem prudente e; tempe-rante", das virtudes, que ornam a sua personalidade e o seu caráter, e dos vícios, que a maculam.

Embora o cientificismo pregue, com estrépito, que nada existe de permanente e que tudo muda ao longo da história, os problemas essenciais da Filosofia - e também os do Direito - permanecem os mesmos; a desafiar a ciência dos especialistas num mundo que se pauta pela praxis e que segue o lema primun vivere, deinde philoso-phari (primeiro viver, depois filosofar).

Por isso, só o...

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