Princípios especiais do direito coletivo do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1542-1578

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I Introdução

O Direito do Trabalho, como já exposto, engloba dois segmentos, um individual e um coletivo, cada um deles contando com regras, institutos e princípios próprios1.

Conforme visto, toda a estrutura normativa do Direito Individual do Trabalho constrói-se a partir da constatação fática da diferenciação social, econômica e política básica entre os dois sujeitos da relação jurídica central desse ramo jurídico específico — a relação de emprego.

De fato, em tal relação o sujeito empregador age naturalmente como um ser coletivo, isto é, um agente socioeconômico e político cujas ações, ainda que intraempresariais, têm a natural aptidão de produzir impacto na comunidade mais ampla. Em contrapartida, no outro polo da relação inscreve-se um ser individual, consubstanciado no trabalhador que, enquanto sujeito desse vínculo sociojurídico, não é capaz, isoladamente, de produzir, como regra, ações de impacto comunitário. Essa disparidade de posições na realidade concreta fez despontar um Direito Individual do Trabalho largamente protetivo, caracterizado por métodos, princípios e regras que buscam reequilibrar, juridicamente, a relação desigual vivenciada na prática cotidiana da relação de emprego.

O Direito Coletivo, ao contrário, é ramo jurídico construído a partir de uma relação entre seres teoricamente equivalentes: seres coletivos ambos, o empregador de um lado e, de outro, o ser coletivo obreiro, mediante as organizações sindicais. Em correspondência a esse quadro fático distinto, emergem, obviamente, no Direito Coletivo, categorias teóricas, processos e princípios também distintos.

No estudo global dos princípios justrabalhistas é importante respeitarse a diferenciação entre Direito Individual e Direito Coletivo. Entretanto é também fundamental que na análise particularizada de qualquer um dos

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dois segmentos sempre se preserve a perspectiva referenciada ao outro segmento justrabalhista correlato. Direito Individual e Direito Coletivo são, afinal, partes integrantes de uma mesma realidade jurídica especializada, o Direito do Trabalho.

O Direito Coletivo atua, porém, de maneira intensa sobre o Direito Individual do Trabalho, uma vez que é cenário de produção de um destacado universo de regras jurídicas, consubstanciado no conjunto de diplomas autônomos que compõem sua estrutura normativa (no Brasil, notadamente, a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho). Desse modo, o Direito Coletivo do Trabalho pode alterar o conteúdo do Direito Individual do Trabalho, ao menos naqueles setores econômico-profissionais em que incidam seus específicos diplomas. Desde a Constituição de 1988, a propósito, ampliou-se o potencial criativo do Direito Coletivo do Trabalho, lançando ao estudioso a necessidade de pesquisar os critérios objetivos de convivência e assimilação entre as normas autônomas negociadas e as normas heterônomas tradicionais da ordem jurídica do País.

II Princípios especiais do direito coletivo — tipologia

O Direito Coletivo do Trabalho, enquanto segmento jurídico especializado, constitui um todo unitário, um sistema, composto de princípios, categorias e regras organicamente integradas entre si. Sua unidade — como em qualquer sistema — sela-se em função de um elemento básico, sem o qual seria impensável a existência do próprio sistema. Neste ramo jurídico a categoria básica centra-se na noção de relação jurídica coletiva, a que se acopla a de ser coletivo, presente em qualquer dos polos da relação jurídica nuclear deste Direito. Ser coletivo empresarial (com ou sem representação pelo respectivo sindicato) e ser coletivo obreiro, mediante as organizações coletivas da classe trabalhadora — especialmente os sindicatos.

Os princípios do Direito Coletivo do Trabalho constroem-se, desse modo, em torno da noção de ser coletivo e das prerrogativas e papéis assumidos por tais sujeitos no contexto de suas relações recíprocas e em face dos interesses que representam.

A tradição autoritária da história brasileira ao longo do século XX comprometeu, significativamente, o florescimento e maturação do Direito Coletivo no País. Isso levou até mesmo a que se chegasse a pensar (e teorizar) sobre a inexistência de princípios próprios ao Direito Coletivo. Esse viés teórico (compreensível, em vista da longa cristalização autoritária no plano das relações coletivas no Brasil) não deve prejudicar, contudo, hoje, o desvelamento dos princípios informativos do ramo coletivo negociado, uma vez que, desde a Constituição de 1988, essa pesquisa e revelação tornaram cruciais para o entendimento do novo Direito Coletivo do Trabalho em construção no País.

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Mais: o desconhecimento sobre os princípios especiais do Direito Coletivo do Trabalho irá certamente comprometer o correto e democrático enfrentamento dos novos problemas propostos pela democratização do sistema trabalhista no Brasil. A não compreensão da essencialidade da noção de ser coletivo, da relevância de ser ele representativo e consistente para de fato assegurar condições de equivalência entre os sujeitos do ramo juscoletivo trabalhista, simplesmente dilapida toda a noção de Direito Coletivo do Trabalho e de agentes coletivos atuando em nome dos trabalhadores.

Tipologia de Princípios — Os princípios do Direito Coletivo do Trabalho podem ser classificados em três grandes grupos, segundo a matéria e objetivos neles enfocados2.

Em primeiro lugar, o rol de princípios assecuratórios das condições de emergência e afirmação da figura do ser coletivo obreiro. Trata-se de princípios cuja observância viabiliza o florescimento das organizações coletivas dos trabalhadores, a partir das quais serão tecidas as relações grupais que caracterizam esse segmento jurídico específico.

Neste rol, estão os princípios da liberdade associativa e sindical e da autonomia sindical.

Logo a seguir, destacam-se os princípios que tratam das relações entre os seres coletivos obreiros e empresariais, no contexto da negociação coletiva. São princípios que regem as relações grupais características do Direito Coletivo, iluminando o status, poderes e parâmetros de conduta dos seres coletivos trabalhistas.

Citam-se neste segmento o princípio da interveniência sindical na normatização coletiva, o da equivalência dos contratantes coletivos e, finalmente, o da lealdade e transparência nas negociações coletivas.

Há, por fim, o conjunto de princípios que tratam das relações e efeitos perante o universo e comunidade jurídicas das normas produzidas pelos contratantes coletivos. Este grupo de princípios ilumina, em síntese, as relações e efeitos entre as normas produzidas pelo Direito Coletivo, por meio da negociação coletiva, e as normas heterônomas tradicionais do próprio Direito Individual do Trabalho.

Neste rol, encontram-se princípios como o da criatividade jurídica da negociação coletiva e o princípio da adequação setorial negociada.

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III Princípios assecuratórios da existência do ser coletivo obreiro

O primeiro grupo, como visto, diz respeito aos princípios que visam a assegurar a existência de condições objetivas e subjetivas para o surgimento e afirmação da figura do ser coletivo.

O enfoque aqui centra-se no ser coletivo obreiro, isto é, na criação e fortalecimento de organizações de trabalhadores que possam exprimir uma real vontade coletiva desse segmento social. Trata-se, pois, do surgimento e afirmação de entidades associativas obreiras que se demarquem por efetivo potencial de atuação e representação dos trabalhadores, globalmente considerados.

Tais princípios não se formulam, portanto, direcionados à criação e fortalecimento do ser coletivo empresarial. Este já existe, necessariamente, desde que haja a simples figura da empresa. O ser coletivo empresarial não depende de indução ou garantias externas especiais, provindas de norma jurídica; ele já existe, automaticamente, desde que exista organização empresarial no mercado econômico. É que o empregador, como se sabe, é, por definição, necessariamente um ser coletivo (excetuado o doméstico, é claro). Trata-se de natural (e poderosíssimo) ser coletivo por consistir em um agregador e direcionador dos instrumentos de produção, distribuição, consumo e de serviços, sendo, por isso mesmo, por sua própria natureza (ou, pelo menos, tendencialmente), uma organização. Além dessa sua fundamental característica, o empregador também regularmente pratica, com o simples exercício de sua vontade particular, atos de repercussão comunitária ou social3.

Em contraponto a isso, os trabalhadores somente se tornam uma organização caso se estruturem, grupalmente, nesse sentido. E somente serão capazes a produzir, com regularidade, atos de repercussão comunitária ou social caso se organizem de modo racional e coletivo para tais fins. Por todas essas razões, os princípios do Direito Coletivo do Trabalho que visam assegurar o surgimento e afirmação social do ser coletivo trabalhista enfocam seu comando normativo em direção às entidades organizativas e representativas dos trabalhadores.

O presente grupo de princípios engloba, portanto, diretrizes que têm na liberdade e autonomia associativas sua...

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