Princípios do direito do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas218-255

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I Introdução

A palavra princípio traduz, na linguagem corrente, a ideia de “começo, início”, e, nesta linha, “o primeiro momento da existência de algo ou de uma ação ou processo1.

Mas traz, também, consigo o sentido de “causa primeira, raiz, razão” e, nesta medida, a ideia de aquilo “que serve de base a alguma coisa2.

Por extensão, significa, ainda, “proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos” e, nesta dimensão, “proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio3.

A palavra, desse modo, carrega consigo a força do significado de proposição fundamental. E é nessa acepção que ela foi incorporada por distintas formas de produção cultural dos seres humanos, inclusive o Direito.

Assim, princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade.

Nessa acepção, princípios políticos, morais ou religiosos, por exemplo, importariam em proposições fundamentais, ideais, resultantes de determinado contexto político, cultural ou religioso, que se reportam à realidade como diretrizes de correspondentes condutas políticas, morais ou religiosas. Em tal sentido, os princípios seriam elementos componentes da visão de mundo essencial que caracteriza as pessoas e grupos sociais, resultando de suas práticas cotidianas e sobre elas influindo. Na dinâmica das pessoas e sociedades, os princípios atuariam como enunciados que refletem e informam — em maior ou menor grau — as práticas individuais e sociais correspondentes.

Nas ciências, a palavra princípio é apreendida com sentido similar. Aqui, os princípios correspondem à noção de proposições ideais, fundamentais, construídas a partir de uma certa realidade e que direcionam a compreensão da realidade examinada. Ou “proposições que se colocam na base de uma

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ciência, informando-a” (Cretella Júnior). Os princípios atuariam no processo de exame sistemático acerca de uma certa realidade — processo que é típico às ciências —, iluminando e direcionando tal processo.

1. Ciência e Princípios

Enquanto proposições diretoras da análise e compreensão de certa realidade, os princípios têm sido gravemente questionados no âmbito das ciências. A validade científica da ideia de princípios, como instrumento de análise da realidade, tem sido contestada acerbadamente. A esse respeito o filósofo Nicola Abbagnano discorre que “na filosofia moderna e contemporânea, a noção de princípio tende a perder sua importância. Ela inclui, com efeito, a noção de um ponto de partida privilegiado: e não relativamente privilegiado, isto é, com relação a certos escopos, mas absolutamente em si. Um ponto de partida deste gênero dificilmente poderia ser admitido no domínio das ciências”4.

De fato, as Ciências Físicas, Biológicas e Sociais têm seu objeto, fundamentalmente, firmado em torno de fenômenos concretos, empíricos. Em síntese, debruçam-se sobre fatos e atos ocorridos ou que potencialmente venham a ocorrer. Definindo-se como “o estudo sistemático e objetivo dos fenômenos empíricos e o acervo de conhecimentos daí resultante”5, tais ciências examinam o concreto empírico, sobre ele refletindo, de modo a construir leis (ou leis tendenciais) e hipóteses explicativas a respeito desse concreto empírico.

Os princípios, realmente, não conseguem se harmonizar a essa dinâ-mica de atuação e construção das ciências. Ao contrário, a assunção de posições preestabelecidas acerca do objeto a ser investigado (assunção inerente à ideia de princípios) limitaria o próprio potencial investigativo sobre a realidade, conformando o resultado a ser alcançado ao final do processo de investigação. Desse modo, a submissão a princípios (isto é, conceitos preestabelecidos), pelo cientista, no processo de exame da realidade, importaria em iniludível conduta acientífica: é que a resposta buscada, na realidade, pelo investigador, já estaria gravemente condicionada na orientação investigativa, em função do princípio utilizado.

2. Direito e Princípios

Contudo, o anátema lançado pelas ciências contra os princípios não pode prevalecer no âmbito dos estudos jurídicos. De fato, na Ciência Jurídica — enquanto estudo sistemático a respeito dos fenômenos jurídicos,

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com o conjunto de conhecimentos resultantes —, os princípios sempre hão de cumprir papel de suma relevância, sem comprometimento do estatuto científico desse ramo especializado de conhecimento. Essa peculiaridade decorre da posição singular que a Ciência do Direito ocupa perante os demais ramos científicos existentes.

É que a Ciência Jurídica tem objeto estruturalmente distinto daquele que caracteriza as ciências em geral. Estas, como visto, debruçam-se sobre o exame dos fatos e atos ocorridos ou potencialmente verificáveis — aquilo que poderia genericamente ser designado como ser. Em contrapartida, a Ciência do Direito debruça-se sobre a análise dos institutos jurídicos e da norma (e dos próprios princípios jurídicos), que se constituem em modelos de conduta ou de organização — e que correspondem a fenômenos que genericamente poderiam ser designados como dever-ser6.

A Ciência Jurídica, portanto, tem objeto singular, consistente em realidades essencialmente conceituais, realidades ideais e normativas, que se desdobram em proposições ou modelos de comportamento ou de organização. Seu dado central e basilar consiste no dever-ser (elemento nitidamente ideal, em suma) e não no ser (elemento nitidamente concreto-empírico). Nesse sentido, a direção emergente da noção de princípio — isto é, proposição diretora à compreensão de uma certa realidade — surge como um condutor importante à compreensão do sentido da norma e do instituto jurídico, do sentido do dever-ser jurídico. Noutras palavras, a premissa orientativa consubstanciada no princípio favorece à correta percepção do sentido do instituto e da norma no conjunto do sistema normativo em que se integra. Por essa razão, os princípios, na Ciência Jurídica, não somente preservam irrefutável validade, como se destacam pela qualidade de importantes contributos à compreensão global e integrada de qualquer universo normativo.

A importância dos princípios na Ciência do Direito, entretanto, não tem obviamente o condão de transformá-los em axiomas absolutos e imutáveis. Ao contrário, sua validade se preserva apenas caso considerados em seus limites conceituais e históricos específicos, enquanto sínteses de orientações essenciais assimiladas por ordens jurídicas em determinados períodos históricos. Os princípios jurídicos despontam, assim, como sínteses conceituais de nítida inserção histórica, submetendo-se a uma inevitável dinâmica de superação e eclipsamento, como qualquer outro fenômeno cultural produzido.

Em conclusão, para a Ciência do Direito os princípios conceituam-se como proposições fundamentais que informam a compreensão do fenômeno

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jurídico. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após inferidas, a ele se reportam, informando-o.

II Princípios de direito: funções e classificação

No Direito, os princípios cumprem funções diferenciadas. Atuam, na verdade, até mesmo na fase de construção da regra de Direito — fase pré-jurídica ou política. Mas será na fase jurídica típica, após consumada a elaboração da regra, que os princípios cumprirão sua atuação mais relevante.

1. Fase Pré-jurídica ou Política

Na fase pré-jurídica, que é nitidamente política, voltada à construção das regras e institutos do Direito, os princípios despontam como proposições fundamentais que propiciam uma direção coerente na construção do Direito. São veios iluminadores à elaboração de regras e institutos jurídicos. Os princípios gerais do Direito e os específicos a determinado ramo normativo tendem a influir no processo de construção das regras jurídicas, orientando o legislador no desenvolvimento desse processo. Nesse momento, os princípios atuam como verdadeiras fontes materiais do Direito, na medida em que se postam como fatores que influenciam na produção da ordem jurídica.

Essa influência política dos princípios é, contudo, obviamente limitada. É que as principais fontes materiais do Direito situam-se fora do sistema jurídico, consubstanciando-se fundamentalmente nos movimentos sociopolíticos e correntes político-filosóficas e econômicas que provocam e condicionam a elaboração normativa.

2. Fase Jurídica

Na fase propriamente jurídica, os princípios desempenham funções diferenciadas e combinadas, classificando-se segundo a função específica assumida. Surgem, nesse caso, em um plano, os princípios descritivos (ou informativos), que cumprem papel relevante na interpretação do Direito. A seu lado, os princípios normativos subsidiários, que cumprem papel destacado no processo de integração jurídica (normas supletivas). Por fim, os princípios normativos próprios ou concorrentes, que atuam com natureza de norma jurídica, independentemente da necessidade de ocorrência da integração jurídica.

Ressalte-se que não há um grupo de princípios...

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