Os princípios do código civil e o direito de empresa

AutorWilges Bruscato
Páginas50-75

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"Não é, em verdade, a rigidez ou a suposta invulnerabilidade dos princípios que devem sufocar os fatos da vida social, porque, ao invés, são estes que fundamentam aqueles." (António Martins Filho)

1. Introdução

Com a nova ordem instalada a partir da vigência do Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002), algumas mudanças foram introduzidas no cenário jurídico nacional.

Interessam-nos, neste breve estudo, o suporte valorativo orientador do novo diploma e as alterações no direito comercial - ambos atrelados entre si, desde então.

A justificativa para a elaboração de um Código novo, ao invés da modificação do Código de 1916, está - segundo o Coordenador da sua Comissão Organizadora -justamente na orientação filosófica e ideológica que se quis dar à nova lei. A reforma do Código antigo não acomodaria, a contento, a novaprincipiologia concebida pela Comissão Organizadora,1 "à luz de outros paradigmas de ordem ética e política".2

Assim, os princípios norteadores do Código Civil de 2002 são a socialidade, a eticidade e a operabilidade.

A par disto, uma porção significativa da legislação comercial foi levada para o bojo do Código Civil, sob o título "Direito de Empresa", revogando-se a Parte I do Código Comercial.

Tal inovação desdobra-se em várias outras, subsequentes: a limitação parcial da autonomia legislativa do direito comercial, a unificação de obrigações civis e empresariais, a adoção da teoria da empresa, a aplicação da diretriz filosófica do novo Códi-

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go a questões de direito comercial - entre outras.

A preocupação central desta reflexão refere-se, de modo exato, ao tratamento ju-rídico-judicial que se dará às obrigações tipicamente comerciais a partir de agora.

Sem qualquer ponderação, poderia parecer que as obrigações assumidas pelos empresários devem, pelo comando axioló-gico do Código de 2002, ser tratadas da mesma forma que as obrigações civis. Esta é a conclusão a que se chega, sem o amadurecimento necessário, pela simples interpretação jurídica, que é o supedâneo para se chegar ànorma de decisão3 no caso concreto.

Porém, na aplicação da norma há que se levar em consideração, obviamente, como premissa menor, o fato e sua consequência jurídica.4

O que se mostra alarmante, então, é tratar igualmente fatos de natureza civil e fatos de natureza empresarial.

Há peculiaridades nos fatos empresariais que determinam um tratamento diferenciado. Frise-se: "diferenciado", não "licencioso".

Esta afirmação, à primeira vista, pode parecer sectária e prepotente, em favor da classe empresária do país. Ainda mais se nos lembrarmos do posicionamento ideológico que se procurou imprimir ao Código Civil.5

Todavia, nossa inquietação não se origina no desejo de criar privilégios descabidos a indivíduos determinados, para desi-gualá-los dos demais naquilo em que sejam iguais.

É exatamente por reconhecer a impera-tividade da diretiva da socialidade - princípio que justifica a adoção dos outros dois, eticidade e operabilidade - que se entende necessário delinear como, em matéria de obrigações empresariais, se dará atendimento a tal comando, para que a lei cumpra sua função de harmonizadora das relações sociais e não se causem prejuízos indeléveis à economia; ou seja, que a aplicação se faça de modo a atender, realmente, aos interesses da sociedade, e não em detrimento do desenvolvimento nacional, anseio de todos, inserido na Constituição Federal como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3-, II).

As relações económicas são muito sus-cetíveis à falta de segurança e certeza jurídica. Daí, num país que vem lutando arduamente para vencer os desafios da pobreza, nossa preocupação.

Para a análise a que se propõe este breve estudo, será importante conhecer o tripé axiológico do Código de 2002 e discorrer sobre a natureza do direito de empresa, antes de se passar à apreciação do tema, propriamente dito.

2. Princípios norteadores do Código Civil

Conforme se disse, a justificativa para a elaboração de um Código completamen-te novo centrou-se na necessidade de se atua-lizar a orientação filosófica e ideológica da lei civil, já que a simples reforma do Código antigo não atenderia a esse desiderato - ou seja, foi necessária a "alteração geral do Código atual [de 1916] no que se refere a certos valores considerados essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e de operabilidade".6

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Ora, num certo sentido, o impacto psicológico da existência de um novo Código Civil legitima tal iniciativa legislativa, vez que há uma distância enorme entre aprovar leis que modificam o Código e aprovar um novo Código. Basta constatar quanto se tem escrito e discutido a respeito da nova codificação, o que não se daria com a mesma intensidade e relevância se se tratasse apenas de sua alteração. Não só a comunidade jurídica se volta a apreciar e comentar o Código novo, mas toda a população se movimenta, cada qual dentro de suas possibilidades e limitações, no sentido de se inteirar da ocorrência.

Então, se se pretende introduzir uma nova ordem valorativa, é preciso que todos atentem para isso; e a melhor estratégia é o anúncio da inovação completa.

No entanto, ao que se pode constatar, a novidade foi relativa, e não total. Jacy de Souza Mendonça chama a atenção para o fato de que "magníficos trabalhos [foram] publicados, comparando o Código novo com o anterior, [e] mostram que não houve alteração geral. Talvez uma grande quantidade de alterações, mas não uma alteração geral. Nem se substituiu um Código pelo outro, nem 90% do Código anterior pelo novo".7

Assim, o que se tem, de concreto, é a alteração do Código anterior, agora em roupagem mais glamourosa, tingida pelos novos princípios.

2. 1 Princípio da socialidade

A nosso ver, a socialidade é o carro-chefe axiológico do Código de 2002, trazendo a reboque os outros dois princípios.

A socialidade revela-se como a prevalência dos valores coletivos sobre o individual.

Não é nossa intenção, aqui, aprofundar a discussão a respeito da sobreposição dos valores coletivos - geralmente indicados por expressões como "bem comum", "interesse coletivo", "justiça social", "interesse público" e outras correlatas, e perigosamente amplas -, centralizados na figura do Estado, sobre o valor do cidadão. É útil lembrar, todavia, que a opressão da coletividade sobre o indivíduo não deixa de ser opressão...

"Nossa época se preocupa especialmente com o cidadão e a cidadania, e, quando nos preocupamos com a cidadania, estamos nos preocupando em conscientizar o cidadão de que ele tem deveres, mas tem também direitos intocáveis pelo Estado. Vivemos uma época que fez uma Declaração Universal dos Direitos do Cidadão, em sentido diametralmente oposto à ideia de dar ao social a prevalência sobre o individual. Não se está (...) pretendendo ignorar sua dimensão social [do indivíduo]. Todo direito, ao traçar o caminho da realização da pessoa, não a vê como isolada. Não existe problema de direito para um indivíduo isolado; só existe problema jurídico no relacionamento (...), dentro de uma comunidade, de uma sociedade. O social está sempre presente no Direito, é o parâmetro que indica o rumo do procedimento justo. (...). O ilícito, que queremos reprimir no Direito, corresponde à perturbação da dimensão social da pessoa humana. Não somos pessoas senão num contexto, num todo, dentro de uma comunidade. Mas isso não significa predomínio do social; o predomínio é sempre da realização do cidadão; o Direito existe para possibilitar ao cidadão a realização de sua plenitude como pessoa. Embora o homem só possa se realizar dentro de uma comunidade, em harmonia com a sociedade em que vive, não há predomínio da sociedade, o predomínio é sempre da pessoa."8

Ademais, a própria Lei de Introdução ao Código Civil, datada de 1942, é clara em determinar que, na aplicação da lei, o

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juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências dobem comum. Desse modo, a orientação para asocialidade já estava presente entre nós. Tanto que, em linhas toscas, é aí que se baseia o movimento conhecido como "Direito alternativo", no Brasil.

A Constituição Federal conduz também a uma conclusão semelhante: todos os atores sociais devem dar sua contribuição para o atingimento dos objetivos da República. Mas não há que se confundir a busca da construção de uma sociedade mais justa com os superados valores do Socialismo ortodoxo, alimentando ódios entre classes. "Socialidade" não significa "igualdade".

A igualdade está além da utopia. A igualdade é impossível, a não ser de modo transitório, pela simples razão de que as pessoas não são iguais. Então, se se concebe o atendimento ao social como um ideal de igualdade, a história recente demonstra a impossibilidade de sua manutenção perene.

A socialidade, então, é a atenção que todos os membros de uma determinada sociedade devem dar às exigências de sua existência como coletiva, por ser esta - a convivência - uma necessidade humana. Porém, isso não pode pressupor a desconsideração aos direitos e interesses individuais.9

Para reforçar a introdução da socialidade, aponta-se o caráter individualista do Código de 1916.10 O reconhecimento e o respeito aos valores individualistas são tidos como um dos fundamentos do Capita-lismo e, por isto, reprovados por orientações socialistas.

Ambas as ideologias têm seus males e suas perversidades.

Tudo parece indicar que a sociedade atual optou pelo modelo capitalista...

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