O princípio da segurança jurídica como razão para a tomada de decisão baseada em regra

AutorTatiana Aguiar
CargoEspecialista em Direito Tributário pelo IBET, em Direito Público pela UFRN e Mestranda em Direito do Estado pela PUC/SP. Advogada
Páginas229-247

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Ver Nota1

Antes de apreciarmos o princípio Asobre o qual nos propomos estudar, imprescindível se faz que penetremos na Teoria Geral dos Princípios, trazendo à baila conceitos e diretrizes importantes que poderão nos auxiliar na tarefa de apontar a natureza jurídica do instituto da segurança jurídica, até mesmo para aferirmos se estamos efetivamente diante de um princípio constitucional ou de uma outra espécie de norma, ou até, para termos certeza se assim podemos denominá-lo, isto é, se se trata de uma norma propriamente dita.

Acerca da importância de tal estudo não poderíamos deixar de transcrever as palavras do mestre Humberto Ávila, que com a sua pequena grande obra acerca deste tema, tornou-se referência no assunto: "Hoje, mais do que ontem, importa construir o sentido e delimitar a função daquelas normas que, sobre prescreverem fins a serem atingidos, servem de fundamento para a aplicação do ordenamento constitucional (...) a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico. Importa ressaltar, no entanto, que notáveis exce-ções confirmam a regra de que a euforia do novo terminou por acarretar alguns exage-ros e problemas teóricos que têm inibido a própria efetividade do ordenamento jurídico".2

A busca pela essência do instituto da segurança jurídica se justifica pela verdade inafastável de que a extração das normas jurídicas a partir dos textos legais exige a construção de conteúdos de sentido, capazes de lhe conferir fundamentação, os quais precisam ser claros, e, principalmente, porque somente gozando de tal característica (clareza), é que através dos conceitos jurídicos se pode alcançar a previsibili-dade do Direito.

Decidimos perseguir o caminho da clareza dos conceitos, por estarmos situados em um Estado Democrático de Direito, no qual o controle da própria atividade estatal pelo povo deve ser constante e intensa e esta só se torna possível se os destinatários dos preceitos legais puderem compreendê-los, para só então exigir a sua efetiva aplicação.

Partimos da premissa básica de que normas não são textos, mas sim são sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Portanto,

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os dispositivos se constituem objetos da interpretação e as normas são o seu resultado.

Aliás, o princípio da segurança jurídica não poderia ser melhor exemplo da premissa que firmamos acima, já que se examinarmos todo o texto constitucional não encontraremos um só dispositivo que o trate explicitamente, só nos sendo possível afirmar que este é assegurado pelo nosso ordenamento jurídico, a partir do exame de vários dispositivos que garantem a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade das leis, por exemplo. Assim, poderíamos dizer que é possível existirem normas jurídicas sem que haja dispositivos específicos que lhes dêem suporte físico, da mesma forma que o contrário, também é bem possível no nosso ordenamento jurídico.

Assim, podemos dizer que o princípio da segurança jurídica é uma espécie de norma jurídica, que pode ser extraída do nosso ordenamento jurídico a partir da interpretação sistemática de diversos dispositivos presentes explícita ou implicitamente em nossa Carta Magna.

Se aceitarmos esta premissa de que as normas são construídas pelo intérprete, não é difícil atingirmos a idéia defendida pelo professor Humberto Ávila de que não se pode dizer ante a um dispositivo legal se se está diante de uma regra ou de um princípio, haja vista que, como diz ele: "Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete".3

Porém, é de se ressaltar, que tais conexões não são arbitrariamente construídas, mas sim balizadas pelo próprio ordenamento jurídico, o qual deixa claro os fins por ele perseguidos e os valores que devem ser preservados em tal persecução.

Para demonstrar a pertinência de seu raciocínio, com o qual concordamos, o doutrinador em análise lança uma série de exemplos, dentre eles, expõe que o dispositivo constitucional donde se extrai que se houver instituição ou aumento de um tributo, só poderão ser abrangidos fatos geradores ocorridos após o início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado, tanto pode ser aplicado como regra, se o aplicador entendê-lo como a exigência de publicação da lei antes da ocorrência do fato gerador do tributo; como pode ser aplicado como princípio, se o for concretizado com a finalidade de realizar o valor segurança jurídica, com o escopo de evitar o aumento de tributo no meio do exercício financeiro em que a realização do fato gerador periódico já se iniciou.

Diante de tal demonstração, bem se ver que não é a estrutura hipotética-condi-cional que diferencia os princípios das regras, vez que tanto os primeiros, quanto as segundas podem ser construídos com uma hipótese e uma conseqüência, mas sim, os argumentos utilizados no ato da sua aplicação, que fazem refletir a sua natureza jurídica. Por conseguinte, mesmo que os princípios não descrevam comportamentos, estes indicam, ainda que em um plano abs-trato, os comportamentos possíveis dentro dos limites que impõem.

Pelos mesmos fundamentos, o professor Humberto Ávila se posiciona contrariamente aos argumentos de Robert Alexy para quem as regras impõem obrigações definitivas, à medida que não se sujeitam à força de uma norma contraposta, em detrimento dos princípios, que por poderem ser superados no momento da aplicação por outros princípios que com aqueles colidam, só albergam obrigações prima facie.

Discorda, ao nosso ver, acertadamen-te, o ilustre doutrinador gaúcho de tal distinção, por entender que como o modo de aplicação das normas não está determinado pelo texto do qual aquelas são extraídas, mas sim pelas já mencionadas conexões axiológicas feitas no momento da interpretação, as quais são capazes de inverter o modo de aplicação, primariamente

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estabelecido, uma norma inicialmente tida como regra, pode ser aplicada como princípio e vice-versa. Assim, em alguns momentos se perceberá a necessidade de se considerar todas as circunstâncias que envolvem a norma no momento da sua con-substanciação, o que exige um processo complexo de ponderações de razões e con-tra-razões, teoricamente, típico dos princípios. Noutros, se sentirá que a ocasião clama pelo caráter absoluto, teoricamente, característico das regras, com seus limites objetivos.

Diante desse novo modo de enxergar os princípios e as regras, resta claro que poucas distinções existem entre tais espécies de normas, ou melhor, a única diferença palpável se restringe ao grau de abstra-ção de ambos, mas ainda assim, observado anteriormente à interpretação. Já que os princípios, por não se vincularem imediatamente a uma situação específica têm um maior grau de abstração quando comparados às regras de comportamento, à medida que nestas, as conseqüências são instantaneamente perceptíveis. Todavia, há que se frisar que tal distinção não é das normas em si, mas das proposições normativas a partir das quais elas são construídas, já que a abstração é medida anteriormente a interpretação daquelas e a norma só nasce efe-tivamente após esta atividade exegética.

Daí porque, partindo-se dessas mesmas premissas, o professor Humberto Ávila nos chama atenção para a pouca importância prática de tal critério distintivo, vez que no momento da aplicação, constata-se que as regras dependem da interpretação sistemática dos princípios que com elas se relacionam, ao mesmo tempo que esses só se complementam através das regras.

Um bom exemplo disso é a célebre regra (usada fartamente por Schauer em sua obra que a seguir apresentaremos) que proíbe a entrada de cão em estabelecimento fechado, a qual, no momento da aplicação, deve o intérprete, para concretizá-la plenamente (o que não quer dizer satisfatoriamente), não se limitar aos conceitos lá presentes, mas sim buscar as justificativas que lhe deram nascimento, sob pena de se impedir a entrada de um cão empalhado ou de um cão policial, e de se permitir a entrada de ursos, que podem perturbar ainda mais os clientes, o que é exatamente o que tal regra visa impedir, como exemplifica Humberto Ávila. Esse exemplo demonstra que uma regra, no ato de sua concretização, pode seguir o mesmo raciocínio utilizado pelo intérprete, quando da aplicação de um princípio.

Enfim, conclui-se que as regras e princípios se relacionam de forma tão íntima e simbiótica que não há como apartá-los de forma absoluta e definitiva, ou melhor, não há qualquer proficuidade em assim fazê-lo. Tanto as regras, quanto os princípios possuem o mesmo conteúdo de dever-ser. A única distinção é quanto à determinação da prescrição de conduta que resulta da sua interpretação: as proposições normativas que revelam os princípios não a determinam diretamente, apenas estabelecem fins normativamente relevantes, a serem concretizados através das regras.

Coerentemente com todas as premissas estabelecidas em sua obra e aqui analisadas, Humberto Ávila nos apresenta as regra e princípios a partir de expressões relativas, evitando assim incorrer nos equívocos praticados pelos doutrinadores por ele criticados, os quais pecaram por tentar estabelecer conceitos absolutos e imutáveis que não se coadunam com a natureza mutante das normas ante às conexões axio-lógicas adotas pelo intérprete no momento da aplicação.

Assim, tem as regras como: "normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectiva e com pretensão de decidibi-lidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axio-logicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos".

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E, tem por princípios: "normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão...

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