O Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana e a Proibição à Discriminação por Orientação Sexual

AutorRodrigo Leonardo de Melo Santos
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas89-113

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3.1. Reconhecimento, direito e dignidade

De acordo com Honneth, a ediicação da identidade humana depende da experiência do reconhecimento intersubjetivo, uma vez que a compreensão do eu como agente individuado, calcada numa relação bem-sucedida do sujeito consigo mesmo, decorre do confronto entre indivíduos que, progressivamente, atestam de forma recíproca as suas autonomias358.

Nessa esteira:

(...) a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais359.

Sob esse enfoque, Honneth identiica três formas básicas de reconhecimento que, no processo de individuação, conirmam paulatinamente novas dimensões identitárias e convergem, assim, para a capacidade do sujeito de se referir positivamente a si mesmo, como um integrante autônomo da sociedade. São elas: o amor, o Direito e a estima social360.

Por meio do reconhecimento oriundo das relações primárias emotivas, como o amor e a amizade, os sujeitos, conirmando-se enquanto seres carentes, estruturam uma autoconiança baseada na percepção mútua de que, embora autônomos, podem contar com a dedicação afetiva de um para com o outro361. Já pelo reconhecimento pertinente às relações jurídicas, os indivíduos, vendo-se mutuamente na condição de agentes moralmente imputáveis,

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sedimentam o seu autorrespeito, podendo se identiicar como sujeitos de direitos e deveres da comunidade política362. Por derradeiro, é pelo reconhecimento atrelado às relações de estima social que as formas de autorrealização de cada pessoa têm seu valor social conirmado, possibilitando aos indivíduos estruturar um sentimento de autoestima363.

Se o desenvolvimento progressivo de diferentes modos de reconhecimento confere integridade à identidade humana e permite ao indivíduo construir uma imagem positiva de si mesmo, na contramão, a vivência da recusa de reconhecimento estremece a autorrelação prática da pessoa e se desdobra em modalidades igualmente especíicas de desrespeito. A autoconiança, por exemplo, é minada por meio das violações à integridade física, atacando o mais basilar senso de autonomia do indivíduo; o autorrespeito, por sua vez, corrói-se pela exclusão de direitos ou pela privação do sujeito das condições para gozá-los e participar da formação pública da vontade de forma paritária; e a autoestima, inalmente, se esfacela pela experiência da ofensa e da degradação, tolhendo o valor social da forma de vida que o sujeito encontra para se realizar364.

A experiência com o desrespeito, todavia, apesar de nociva à formação identitária, pode tornar-se motor de transformação social. Com efeito, a injustiça decorrente da negativa de reconhecimento acede à consciência por meio de emoções negativas como a vergonha365 e a raiva, gerando uma tensão afetiva que só pode se dissipar na medida em que se converta em ação (reação) voltada a modiicar e a ampliar os padrões sociais de reconhecimento366. É nesse sentido que, para Honneth, a evolução moral da sociedade pode ser vista como resultado da luta permanente por reconhecimento, travada a partir da vivência do desrespeito367.

Sob uma perspectiva deontológica e crítica à concepção identitária das relações de reconhecimento traçada por Honneth, que estariam irmadas em juízos éticos sobre a boa vida e os pressupostos da autorrealização, Fraser aborda as reivindicações por reconhecimento como uma exigência de justiça368.

Nesse rumo, sustenta que o reconhecimento deveria ser encarado como uma questão de status, o que implica apreender as lutas por reconhecimento não como demandas pela valoração positiva de identidades sociais (estima), a im de permitir aos indivíduos o pleno desenvolvimento da subjetividade, mas sim como reivindicações dos membros de determinados grupos para que se lhes reconheça integralmente a condição de parceiros na interação social, remediando situações de subordinação que os privem da possibilidade de uma participação paritária na vida em comunidade:

Entender o reconhecimento como uma questão de status signiica examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre

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a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões constituem os atores como parceiros, capazes de participar como iguais, com os outros membros, na vida social, aí nós podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando, ao contrário, os padrões institucionalizados de valoração cultural constituem alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros” ou simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de status369.

Segundo Fraser, a adoção do modelo de status, mantendo a discussão sobre o reconhecimento no campo da moral (correto) e afastando-a do campo da ética (bom), para o qual se inclinaria o modelo identitário defendido por Honneth, além de evitar a essencialização de identidades sociais e a imposição sectária de concepções de bem (que, em geral, não são compartilhadas por todos), é vantajosa por se sustentar em uma concepção tridimensional de justiça (justiça esta entendida como paridade de participação), que permite articular redistribuição, reconhecimento e representação370.

Se compreendida como resultado de estruturas sociais que forneçam condições aos seus integrantes para interagir uns com os outros como iguais, a realização da justiça passa a depender, assim, do atendimento de três condições cumulativas: em primeiro lugar, a garantia da independência econômica dos indivíduos, que se alcança por meio de uma melhor distribuição de recursos materiais; em segundo lugar, a construção de padrões institucionalizados de valores que, em substituição a padrões de subordinação do diferente, promovam o reconhecimento e o respeito recíprocos de todos os membros da comunidade política como parceiros integrais na interação, independentemente de concepções individuais sobre o que seriam as melhores formas de se viver371; e, em terceiro lugar, no campo da política, o aperfeiçoamento da representação, para que as demandas por reconhecimento e redistribuição possam ser apresentadas e respondidas, de forma paritária, pelas instituições — o que se faz por meio do aprimoramento das estruturas e procedimentos de tomada de decisão, bem como dos critérios empregados para enquadrar sujeitos como membros da comunidade política, com legitimidade para formular demandas por justiça372.

Seja sob o enfoque deontológico de Fraser ou sob a perspectiva ética de Honneth, cumpre notar que o Direito se torna forma autônoma de reconhecimento somente a partir da modernidade, sobretudo quando, sob o paradigma do constitucionalismo e dos direitos humanos, distancia-se das relações de honra tradicionais e emerge como “expressão dos interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, de sorte que ele não admita mais, segundo sua pretensão, exceções e privilégios”373.

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Mas o Direito só pode efetivamente assumir essa conotação universalizante (e, assim, convolar-se em arena de luta ou reivindicação por reconhecimento) se cada indivíduo puder aquiescer conscientemente às normas jurídicas, compreendendo-se como um integrante livre e igual da comunidade política, apto a contribuir para a formação racional da vontade. É por isso que, na perspectiva contemporânea, o Direito passa a se ancorar na premissa da igual imputabilidade moral de todas as pessoas, porquanto detentoras de uma qualidade intrínseca que lhes caracteriza enquanto seres humanos: a dignidade374.

Essa mesma premissa se encontra na base da concepção de justiça esposada por Fraser, que pressupõe o consenso de que o igual valor moral de todo ser humano é o que fundamenta a participação de cada sujeito na interação social como parceiro. E, nesses termos, mais do que um abalo à esfera psíquica, a negativa de reconhecimento de que padecem algumas pessoas é, desse modo, expressão de injustiça social375.

A despeito das diferenças de perspectiva, como se vê, os dois modelos convergem para uma preocupação nuclear do Direito contemporâneo para com essa qualidade intrínseca à pessoa humana e às capacidades dela decorrentes, expressando-se pela adjudicação de direitos básicos que a assegurem e promovam o seu desenvolvimento. A luta por reconhecimento nas relações jurídicas, em assim sendo, é uma luta pela conirmação cada vez mais complexa e alargada do sentido de dignidade. A dignidade se apoia na premissa do igual valor de toda pessoa humana para postular a ampliação de direitos e a inclusão paritária de grupos marginalizados, expandindo o horizonte de propriedades que deinem e resguardam o agente moralmente imputável376.

E cabe falar em disputa por alargamento e complexiicação da ideia de dignidade, na perspectiva jurídica das relações de reconhecimento, porque se trata de um conceito multidimensional, mutável, com delimitações imprecisas e elementos até mesmo redundantes, em certa medida. Ainal, se ela evoca o igual valor de cada ser humano, ao mesmo tempo, representa a qualidade distintiva que os caracteriza enquanto humanos377.

Mas, em que pese seja difícil lhe precisar uma deinição, a noção de dignidade instintivamente vem à mente como algo quase palpável, nas situações concretas em que é vilipendiada. A violação física e psicológica, a humilhação, a marginalização socioeconômica, a injusta negativa de participação...

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