Princípio da retenção do risco na fonte

AutorCléber Nilson Amorim Junior
Ocupação do AutorAuditor Fiscal do Trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Maranhão. Especialista em Segurança e Saúde no Trabalho pela Universidade Estácio de Sá
Páginas174-195

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"Uma pessoa inteligente resolve um problema, um sábio o previne." Albert Einstein

O princípio da retenção do risco na fonte tem por objetivo eliminar na raiz os problemas que ameaçam a saúde, a segurança e integridade física dos trabalhadores, em vez de se tentar contornar apenas as suas consequências danosas.

Neste capítulo será apresentada a mudança de paradigma da abordagem do acidente, visto, inicialmente, como fatalidade, passando, posteriormente, por uma visão monocausal, até se chegar ao entendimento de que na sua gênese existe uma multicausalidade. Também é demonstrada a adoção do mencionado princípio como medida prioritária de prevenção e a necessidade de sua efetivação prática.

7.1. Acidente, morte e fatalidade

Nada mais sorrateiro, e por que não dizer até traiçoeiro, que a morte resultante de acidente. Ela surge como uma espécie de ceifeiro que chega do nada e colhe o que quer. De súbito, quem falava e trabalhava há pouco cai inerte sem voz, sem gesto. Em agosto de 2011, dois acidentes, um na cidade de Salvador e outro em São Luís, chamaram a atenção para a falta de segurança nos elevadores tracionados a cabo dos canteiros de obra no Brasil. Nove operários morreram com a queda em Salvador e em São Luís o acidente resultou na morte de um trabalhador e outros seis sofreram graves lesões.

Uma cena nem tanto incomum no ramo da construção civil. A vida que se expressava nas faces e nos corpos destes trabalhadores desmanchou-se como que tomada por uma repentina e inesperada rajada de vento. O relatório de investigação de acidente da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego na Bahia - SRTE/BA, apresentado no capítulo sobre o princípio do risco mínimo regressivo, confirmou que o acidente que matou os nove operários, no referido canteiro de obras de Salvador, foi causado por falta de inspeção e manutenção no elevador a cabo. O auditor fiscal do trabalho da SRTE/BA, que investigou o acidente, afirmou que: "A ruptura (do freio) poderia ser detectada com antecedência, porque foi constatado indício do processo de trinca no equipamento, que poderia ser evitado com inspeção e manutenção no eixo do motor e freio de emergência".290

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Esse evento é apenas um dentre outros que compõem uma estatística assustadora. Segundo dados do Instituto de Seguridade Social - INSS, verifica-se, através do Anuário Estatístico do INSS, 291 que o número total de acidentes de trabalho nos últimos anos tem apresentado uma tendência crescente, a saber: em 1999 foram registrados 370 mil acidentes, em 2004 foram 465 mil, em 2005 foram 499 mil, em 2006 foram 512 mil, em 2007 foram 653 mil e em 2009 foram registrados 723 mil. Essa média foi mantida sem desvio estatístico significativo nos anos de 2012, 2013 e 2014, que registraram, respectivamente 713, 725 e 704 mil acidentes.292 As estimativas do Ministério da Previdência apontam para três mil mortes anuais no ambiente de trabalho, o que, se for considerada a questão da subnotificação, deve levar a um número bem mais expressivo. Atualmente, no Brasil, a cada dia, quase dois mil trabalhadores se acidentam, defendendo o pão da família. Desses, 43 não retornam mais ao trabalho, ou porque ficaram incapacitados para sempre, ou porque morreram. Em média, 7 pessoas perdem suas vidas por dia trabalhando.293

Ora, números como estes lembram baixa de guerra, com a diferença que quem vai para o fogo cruzado de uma batalha sabe que lá está para matar ou morrer, mas quem, pela manhã, sai ao trabalho espera fazê-lo unicamente para viver.

O problema é que, em várias atividades, a vida parece se equilibrar numa corda bamba, ameaçada a todo o tempo pelas condições inseguras que oferecem alguns trabalhos dentro de determinadas empresas. Aqui a construção civil figura como um dos ramos produtivos mais perigosos, principalmente pela ausência de uma política de segurança em muitas construtoras. 294 Os trabalhadores conhecem o perigo, tentam ocultar o medo, mas são obrigados a conviver com ambos, quando não são forçados a lidarem com o fantasma de um ou outro acidente que colhe a vida de algum companheiro com quem compartilharam o trabalho e as brincadeiras típicas da construção civil.

No discurso e nas representações mentais dos trabalhadores, pode-se perceber a extensão do medo que responde, em nível psicológico, a todos os riscos que não são controlados pela prevenção coletiva. São frequentes frases como todo mundo sabe que trabalhamos sobre um barril de pólvora, quando endereçadas especialmente às indústrias químicas e petroquímicas, representando a ênfase do

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sentimento penoso de que a fábrica é suscetível de, a qualquer momento, escapar ao controle dos operadores ou a convicção de que a fábrica oculta uma violência própria, explosiva e mortal. 295

Também chama a atenção a ideologia defensiva funcional que tem como objetivo mascarar, conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave. Tal ideologia age como um mecanismo de defesa elaborado por um grupo social em particular, notadamente, o conjunto dos trabalhadores da construção civil. A especificidade da ideologia defensiva da vergonha resulta da ansiedade a conter, do medo a superar, ao executar atividades, por exemplo, em coberturas, andaimes, periferias de andares de edificações e outros locais elevados. Não raras vezes, o batismo do trabalhador que acabou de ingressar nesse ramo de atividade é a sua rejeição ao uso de equipamentos de proteção individual, tentando provar que não tem medo, pois seria vergonhoso assumir tal angústia no exercício do trabalho perigoso. Esse mecanismo de defesa coletivo age de forma silenciosa para que o domínio mínimo da realidade ameaçadora seja assegurado, tentando vencer o medo em ambientes de trabalho inseguros. 296

Assim, se o medo não for neutralizado, os trabalhadores não poderão continuar suas tarefas por muito tempo.

Por isso, as atitudes de negação e de desprezo pelo perigo são uma simples inversão da afirmação relativa ao risco. Conjurar o risco exige sacrifícios e provações. E é por isso que os trabalhadores às vezes acrescentam ao risco do trabalho o risco de performances pessoais ou de verdadeiros concursos de habilidade e bravura. Criar uma situação e agravá-la significa, de certo modo, dominá-la.

Esse estratagema tem um valor simbólico que afirma a iniciativa e o domínio dos trabalhadores sobre o perigo e não o inverso. Portanto, essa aparente falta de consciência e percepção do perigo resulta, na realidade, de um sistema defensivo destinado a controlar o medo. A eficácia simbólica dessa estratégia defensiva somente é assegurada pela participação de todos. Ninguém pode ter medo. Ninguém deve demonstrá-lo. Ninguém pode ficar à margem desse código profissional. Ninguém pode recusar sua contribuição individual para o sistema de defesa. Nunca se deve falar em perigo, risco, acidente, nem do medo de cair ou de explodir a fábrica, pois os trabalhadores não gostam de ser lembrados do que tão penosamente procuram esconjurar. 297

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Essa ideologia necessita de sacrifícios e mártires. Se ele morreu é porque queria, procurou isto. Exagerou. Ora, isso permite, sobretudo, que os outros trabalhadores pensem que não querer é o suficiente para não ser vítima, uma fórmula altamente eficiente para se acalmar o medo. Se um trabalhador não consegue incorporar a ideologia defensiva de sua profissão num canteiro de obras, por conta própria, se não consegue superar a própria apreensão, será obrigado a parar de trabalhar e procurar outro ramo de atividade econômica. Seu grupo profissional, armado da ideologia defensiva, elimina aquele que não consegue suportar o risco. 298

Todavia, enfrentando ou fugindo do perigo e do medo, uma coisa parece certa: não há como driblar a morte. Para os trabalhadores, a morte não pode, em hipótese alguma, ser tida como esperada. Então, mesmo diante da necessidade de se conviver com o perigo, a morte será sempre percebida como surpresa, obviamente, nada desejada. E diante da impossibilidade de explicá-la e compreendê-la, é preciso ao menos justificá-la. Então, na busca de algum sentido plausível e aceitável, os indivíduos tendem a vê-la como fatalidade.

Nesse sentido, o fatalismo seria um mecanismo adaptativo, uma estratégia de sobrevivência, que permite ao trabalhador subsistir em condições desfavoráveis.

No plano conceitual, o que é o fatalismo senão uma compreensão da existência segundo a qual o destino de todos está de antemão predeterminado? Nesse caso, "aos seres humanos não resta outra opção senão acatar seu destino, se submeter à sorte que lhe está determinada".299

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define fatalismo como:

doutrina segundo a qual os acontecimentos são fixados com antecedência pelo destino; atitude moral ou intelectual segundo a qual tudo acontece porque tem de acontecer, sem que nada possa modificar o rumo dos acontecimentos; atitude dos que acreditam nessas ideias; doutrina filosófica que professa um rígido determinismo, equivalente à curva mítica ou religiosa na inexorabilidade do destino. 300

A doutora Izabel Cristina Borsoi assevera que é diante de condições sobre as quais há a consciência do perigo e, ao mesmo tempo, há também a necessidade material e existencial de viver uma espécie de faz de conta no sentido de negar o risco, até mesmo para permanecerem trabalhando, que os operários da construção tendem a explicar de modo fatalista a própria tragédia e a dos outros. Desse modo, a queda livre do elevador de uma altura considerável, em virtude da qual

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vários trabalhadores morreram, ao mesmo tempo que é relatada por um trabalhador acidentado, um dos sobreviventes na ocasião, como sendo resultado de ausência de manutenção do equipamento e da falta de atendimento das normas de...

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