Princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador

AutorCléber Nilson Amorim Junior
Ocupação do AutorAuditor Fiscal do Trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Maranhão. Especialista em Segurança e Saúde no Trabalho pela Universidade Estácio de Sá
Páginas34-72

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"Eis aqui o que eu vi, uma boa e bela coisa: comer e beber, e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, em que trabalhou debaixo do sol, todos os dias de vida que Deus lhe deu, porque esta é a sua porção." Eclesiastes, 5:18.

Este capítulo apresenta a evolução do direito à saúde do trabalhador e contextualiza, no sistema constitucional brasileiro, a proteção ao meio ambiente do trabalho. Depois, demonstra que a saúde do trabalhador é um direito indisponível, e, como tal, impõe limites à vontade das partes no contrato de trabalho, notadamente, limitando a negociação coletiva e o exercício do direito de propriedade do empregador.

2.1. Evolução do direito à saúde do trabalhador

A noção de que saúde constitui um direito humano e fundamental, passível de proteção e tutela pelo Estado, de modo geral, e, pelo empregador, no caso do meio ambiente do trabalho no Brasil, é resultado de uma longa evolução na acepção não apenas do direito, mas da própria ideia do que seja saúde considerada em si mesma.

Apesar de o objetivo do presente trabalho não ser a análise cronológica desses conceitos, convém se realizar um breve histórico do assunto, a fim de permitir uma compreensão mais abrangente do que hoje se define como direito à saúde e, sobretudo, do conteúdo desse direito.

Nesses termos, a literatura especializada indica que a primeira acepção de saúde apareceu estritamente ligada a uma explicação mágica da realidade, em que os povos primitivos viam o doente como vítima de demônios e espíritos malignos, mobilizados talvez por um inimigo.30

Essa concepção foi questionada na antiguidade grega, sobretudo por estudos de Hipócrates, cujas observações empíricas não se limitaram ao paciente, estendendo-se ao ambiente onde vivia. A partir disso ele passou a discutir os

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fatores ambientais ligados à doença, defendendo existir uma multicausalidade na gênese das doenças.31

Posteriormente, os rituais deram lugar ao uso de ervas e métodos naturais. Platão ainda defendeu a noção de equilíbrio interno entre alma e corpo, depois ampliada para afirmar o equilíbrio do homem com a organização social e com a natureza, compreendendo-se aí a concepção da saúde.32

A passagem para a Idade Média, todavia, consolidou um sério retrocesso na área sanitária. A doença voltou a ser vista como castigo divino, resumindo-se os cuidados sanitários à preocupação de afastar o doente do convívio social para evitar o contágio e a visão da própria doença.33 O único contraponto se deu pelo fortalecimento da caridade, com o surgimento dos primeiros hospitais, mais apropriadamente hospícios, ou asilos, nos quais os pacientes recebiam, se não o tratamento adequado, pelo menos conforto espiritual.34

O Renascimento recrudescendo o conhecimento clássico greco-romano é, na área da saúde, um período polarizado entre as duas tradições anteriores, opondo-se o misticismo medieval e as práticas exotéricas reminiscentes ao progresso das ciências, às descobertas sobre o corpo humano, ao pensamento e aos métodos científicos.35

No século XVI as ideias de Hipócrates são recuperadas pelos estudos de Paracelso, médico e alquimista suíço-alemão, que mostrou a importância do mundo exterior, leis da física, da natureza e dos fenômenos biológicos na compreensão do organismo humano, demonstrando a interferência do ambiente de trabalho dos mineiros no desenvolvimento de certas doenças.36

Bernardino Ramazzini, em 1700, na Itália, efetuou a primeira sistematização de doenças do trabalho, em sua obra De Morbis Artificum Diatriba, marco histórico no estudo dessas enfermidades. Essa obra relacionava os riscos à saúde ocasionados por produtos químicos, poeira, metais e outros agentes encontrados por trabalhadores em 52 ocupações. Esse foi um dos trabalhos pioneiros e a base da medicina ocupacional, que desempenhou um papel fundamental em seu desenvolvimento.37

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De fato, desse critério de classificação empírica utilizado por Ramazzini é possível pinçar as bases para uma sistematização da patologia do trabalho, na qual, no primeiro grupo, estariam as doenças profissionais ou tecnopatias, e, no segundo, as doenças adquiridas pelas condições especiais em que o trabalho é realizado, ou as mesopatias. Essa classificação é utilizada até hoje para fins médico-legais e previdenciários em muitos países, inclusive no Brasil.

Outra contribuição da obra de Ramazzini é a sua visão das inter-relações entre patologia do trabalho e o meio ambiente, quando estuda a doença dos químicos. Neste estudo ele descreve a utilização potencial de registros de óbito para o estudo dos impactos da poluição ambiental sobre a saúde das comunidades. Essa estratégia metodológica é utilizada até hoje.38

No século XIX, Engels, ao estudar as condições de vida dos trabalhadores ingleses à época da Revolução Industrial, também concluíra que a cidade, o tipo de vida dos habitantes e os diferentes ambientes de trabalho são responsáveis pelo nível de saúde das populações.39

A Revolução Industrial acarretou um grande movimento de urbanização, com a migração populacional do campo para as cidades e a formação de cinturões ao redor das fábricas que, pela proximidade espacial e absoluta falta de higiene, permitiam a rápida proliferação de doenças entre os operários, patrões e familiares. Tais fatos foram decisivos à reivindicação por melhores condições sanitárias, dada a necessidade de resguardo à saúde dos operários, seja pela manutenção dos níveis de produção das fábricas, seja pela proteção da saúde dos próprios patrões; assim como pelo atendimento às reclamações dos operários, já organizados em movimentos de luta social, que exigiam o estabelecimento de melhores condições sanitárias para si e respectivos familiares.

Como o Estado nada mais era do que instrumento do empresariado, mostrou-se relativamente simples a transferência dessas reivindicações, assumindo o Estado a função de garante da saúde pública.40

No século XX, a proteção sanitária seria finalmente tratada como saber social e política de governo. Desde a Segunda Guerra Mundial essa noção foi ampliada, estabelecendo-se a responsabilidade do Estado pela saúde da população, bem como reforçando-se a lógica econômica, a partir da evidente interdependência entre as condições de saúde do trabalhador e a atividade produtiva. Instituíram-se os sistemas de previdência social e, posteriormente, de seguridade social, a

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abarcar os subsistemas de assistência, previdência e saúde públicas - tal como hoje se encontra previsto pela Constituição brasileira. O seguro social trouxe assistência médica à população enquanto direito adquirido por meio do trabalho e que também permitiu a disponibilidade de mão de obra sadia, melhor dizendo, menos doente.41

Deve-se lembrar, contudo, que o sistema de proteção ao meio ambiente do trabalho no Brasil impõe ao empregador as principais obrigações relacionadas à saúde do trabalhador, restando para o Estado, via de regra, as atribuições de produção normativa e fiscalização de sua aplicação.

Desse modo, os trabalhadores devem exigir um meio ambiente de trabalho seguro e saudável de seus empregadores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, devendo o Estado complementar essa ação nos moldes da legislação nacional vigente.

2.2. Proteção ao meio ambiente do trabalho e sua contextualização no sistema constitucional brasileiro

O florescimento do direito à saúde do trabalhador é consequência da valorização do trabalho, como objeto de tutela jurídica. A elevação do trabalho enquanto valor a ser defendido por toda sociedade é refletida na produção legislativa, na interpretação das leis, conciliando o mundo do direito com a realidade fática a ele subjacente.

O trabalho considerado indigno em tempos remotos, com a escravidão e o servilismo, torna-se mercadoria lucrativa após a Revolução Industrial. A partir do século XX, todavia, adquire nova feição, ganhando valor dignificante, merecendo crescente proteção do legislador. Aliás, esta é a ideia sintetizada no art. 427, 1, do Tratado de Versailles, ao asseverar que "[...] o trabalho não pode ser considerado como mercadoria."

A busca de uma nova ética de segurança e saúde como pressuposto indispensável para alcançar o trabalho digno e decente é assim sinalizada pela OIT:

A Agenda da OIT para o Trabalho Digno constitui uma resposta concreta aos desafios atuais. Entende-se por trabalho digno o direito a um trabalho produtivo em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. O trabalho digno é indispensável em tempos de crise. O trabalho só pode ser digno se for seguro e saudável. Um trabalho bem remunerado, mas desenvolvido em condições pouco seguras,

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não é digno. Um trabalho exercido livremente, mas que expõe trabalhadores a perigos para a saúde, não é digno. Um contrato de trabalho equitativo que preveja a realização de tarefas prejudiciais ao bem-estar do trabalhador não é um trabalho digno. O trabalho digno é necessariamente um trabalho seguro.42

O destaque da dignidade como valor supremo do constitucionalismo contemporâneo ampliou o conceito do direito à vida. A Constituição não só protege o direito à vida, mas pretende assegurar o direito de viver com dignidade.

A dignidade da pessoa humana se espraia por todo o ordenamento jurídico nacional e é princípio estruturante do estado democrático de direito, como se pode inferir do ensino da ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha:

A constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana modifica, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda a...

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