O princípio da confiança e sua harmonização com o princípio da liberdade de trabalhar: questionamentos sobre a validade da cláusula contratual de fidelização da relação de emprego com previsão indenizatória, nos programas de capacitação ou aprimoramento profissional

AutorRosemary de Oliveira Pires
Páginas122-129

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Considerações iniciais

A capacitação ou aprimoramento profissional dos trabalhadores há muito passou a integrar a pauta das preocupações capitais de empresas de médio e grande porte, diante de sua necessidade em suprir o déficit de mão de obra qualificada necessária a atuar em postos que exigem elevado conhecimento e atualização das ciências e das tecnologias, cujos avanços vêm se processando em ritmo surpreendente.

Esse déficit, não se olvida, é mero retrato reflexo de uma questão maior: a de que o Estado vem se mostrando incapaz ou descomprometido com seu dever de promover e incentivar a educação de todos os cidadãos, mediante a oferta de oportunidades de formação e desenvolvimento das capacidades individuais, bem como sua qualificação para o trabalho (art. 205, CR). Desprestigia, com isso, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1º, IV, CR) e descumpre, por consequência, os objetivos fundamentais da República de construir uma sociedade justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, I e II, CR).

Nesse quadro, as empresas, calcadas na disposição constitucional de que a educação é também promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, mas sempre com vistas ao seu particular interesse, propõem aos seus empregados, que lhes pareçam mais aptos à determinada capacitação ou aprimoramento profissional, a sua inclusão em programas a tais fins destinados, em área de conhecimento por elas desejado.

Obviamente, tratando-se de empresas inseridas num mundo capitalista em que prevalece a finalidade do lucro, o custo é calculado na proporção do benefício almejado. Não se propõem, pois, genericamente a capacitar trabalhadores, mas apenas capacitar seus empregados, daí seu claro e inequívoco interesse em mantê-los no quadro de pessoal, pelo tempo que as convier, assim sustentadas no direito de livre-iniciativa, mantido seu direito potestativo de, a qualquer tempo, pro-mover a rescisão arbitrária ou imotivada, como lhes assegura a lei.

Independentemente da crítica ideológica ou ética que se possa ter quanto a tais posturas, a realidade é que, visando à manutenção da relação de emprego com aqueles contemplados com o programa de capacitação ou aprimoramento oferecido e custeado, as empresas buscam mecanismos contratuais para cercar-se da garantia pretendida, dificultando ou impedindo seu recrutamento por parte de outras empresas que normalmente ostentam condição de concorrentes no mercado.

Usualmente, a fórmula adotada é a elaboração de um aditivo contratual contendo cláusula de compromisso do empregado de se manter no emprego por determinado período - em regra, por tempo igual ou superior à duração do programa -, normalmente sendo prevista pena de multa e/ou indenização no caso de rompimento pelo empregado antes da data aprazada. Também, via de regra, ali não há fixação de qualquer obrigação ao empregador que lhe impeça de pro-mover ruptura imotivada ou arbitrária em semelhante lapso.

Poder-se-ia pensar, em um exame ligeiro, na justeza de tal aditivo, dada a mencionada natureza lucrativa das empresas, além do custo investido no programa e o caráter oneroso e sinalagmático do contrato de trabalho que implicaria em uma contrapartida obrigacional pelo empregado pelo curso de que se beneficiou. Também se poderia sustentar que tal garantia decorreria da confiança que o empregador teria depositado no empregado, não podendo ser contra ela quebrada com ato de suposta deslealdade do obreiro em se demitir, dirigindo-se para outra empresa com melhor oferta salarial ou indo atuar autonomamente. Tudo isso, sinalizaria, em princípio, o entendimento do uso de mecanismos jurídicos pela empregadora para sua proteção ou compensação de seu investimento.

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Por outro lado, a par do princípio da proteção à confiança, é de consagração constitucional o princípio da liberdade de trabalhar, conforme ditame expresso contido no art. 5º, XIII, da CR, sendo certo que o ordenamento jurídico há muito rechaçou o trabalho escravo, inclusive pelo rigor da via penal, não obstante a existência ainda dessa chaga em cenários mais primitivos do nosso panorama laboral contemporâneo, como dão mostras vários relatórios de entidades nacionais e inter-nacionais.

Vista sob a ótica desse último princípio, poder-se-ia questionar, em favor do empregado, acerca da legalidade da mencionada cláusula que cerceia seu direito de trabalhar para quem e quando desejar, seguindo ele também seus próprios interesses, tal como a empresa assim pretende?

E na hipótese em que não é dada ao empregado outra opção senão aderir ao programa proposto pela empresa, às vezes em sacrifício de seus interesses particulares e familiares imediatos, pena de ser relegado ou dispensado pela empresa, ainda que se possa considerar que, de algum modo, ele venha se beneficiar profissionalmente da participação no programa?

Poder-se-ia apreciar o problema também pelo prisma da confiança que o empregado teria depositado em seu empregador, no sentido de que este lhe reconheceria o período de esforço com a consequente melhoria de sua capacitação, garantindo-lhe condições laborais (aí incluídos o aumento de seu salário, promoção funcional, etc.) compatíveis com seu novo status, semelhantes às ofertadas pela empresa concorrente? Por quem e como teria efetivamente falhado a confiança no sentido de que a relação de trabalho se perpetuaria por razoável tempo, ante a obtenção da capacitação/aprimoramento profissional seguida de um pedido de demissão ou a dispensa injusta?

E se a ruptura contratual se desse no curso da capacitação ou aprimoramento profissional, por uma das partes?

Todas essas questões são instigantes. Mas o estudo ora apresentado fixar-se-á tão somente na cláusula de fidelização da relação de emprego, atrelada à obrigação de indenizar do empregado, no caso de rompimento contratual por sua iniciativa.

Por meio dela, cabe o exercício doutrinário de aplicação harmônica do princípio da proteção à confiança com o princípio da liberdade de trabalhar, este mais familiar à teoria justrabalhista, embora ainda necessitando de sua reflexão na prática cotidiana das relações laborais, tão acostumada apenas aos direitos consagrados expressamente na legislação heterônoma da CLT, tendo no contrato um instrumento padronizado e de adesão, repetindo como cláusulas contratuais basicamente o que é previsto pela legislação, sem qualquer cunho transacional, mas apenas enfeixando manifestações de vontades aptas a concluir o pacto laboral.

O estudo, pois, desdobra-se em três partes: na primeira e na segunda, uma exposição dos princípios da proteção à confiança e da liberdade de trabalhar, respectivamente; e na terceira e conclusiva, a tentativa de imbricação desses dois princípios a dar algumas respostas à questão desafiadora posta como tema da pesquisa.

1. O princípio da proteção da confiança

A progressiva complexidade das relações humanas vivenciada no mundo atual apresenta o aparente paradoxo de o mundo jurídico despertar interesse pelo tema da salvaguarda da confiança, em movimento crescente de construção dogmática a partir da segunda metade do século XX.

Nas palavras de MENEZES CORDEIRO:

(...) A consciência do fenômeno - e portanto a possibilidade de o fazer intervir activamente na busca de soluções novas e melhores e de aumentar a sua incidência no próprio pré-entendimento dos problemas - seria propiciada, apenas nos finais do século passado, através dos estudos de EUGEN HUBER sobre a Gewere. Come-çou, então, por ser entendido como uma legitimação formal, atribuída por norma específica, para o exercício de determinado direito que, em abstracto, não teria sido conferido pelo ordenamento.1

LUHMANN, em visão sociológica desse fenômeno, afirma que a razão está em que a expansão da complexi-dade requer novos mecanismos para a redução dessa mesma complexidade do mundo, assim aumentada muito mais pela dimensão social que se mostra na consciência do homem, não como algo simplesmente objetivo, mas sim como um alter ego2.

Em outros termos, o autor afirma que, com o aumento da complexidade, existe um crescimento correspondente da necessidade de garantias, o que se dá pela confiança no presente a reduzir a incerteza no futuro, ou seja, como "um intento para conceber o futuro".3

É sabido que o Direito nasce para satisfazer uma necessi-dade de certeza e de segurança nas relações por ele tuteladas, estabilizando-as e permitindo, assim, a vida em sociedade4, sendo ínsita na ideia de ordem jurídica "a missão indeclinável de garantir a confiança dos sujeitos, porque ela constitui um pressuposto fundamental de qualquer coexistência ou cooperação pacíficas, isto é, da paz jurídica"5.

Daí nenhuma estranheza, mas mera confirmação da necessidade, deconstrução de um aparato jurídico protetor da confiança.

Entretanto, releva destacar que a definição do que seja confiança para fins de tal proteção, possibilidade de modula-ções de grau e respectivas consequências sancionadoras, ainda

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estão exigindo debruçado e consistente estudo doutrinário, mostrando-se mais incipiente a construção jurisprudencial e legal quanto a tal tema.

Aponta o civilista português CARNEIRO DA FRADA que a dificuldade de uma reflexão dogmática a respeito da confiança reside na ausência de uma definição legal do que seja "confiança", havendo, além da escassez de referências normativas explícitas a propósito.

Para o autor:

(...) o seu conceito apresenta-se fortemente indeterminado pela pluralidade ou vaguidade de empregos comuns que alberga, tornando difícil traçar com ele as fronteiras de uma investigação jurídica.6

De todo modo, o teórico lusitano formula um conceito de confiança, considerando...

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