Primeiro Diálogo

AutorPiero Calamandrei
Ocupação do AutorJornalista, Jurista, Político e Docente universitário italiano
Páginas27-81

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Neste, discute-se a opinião que os ho-mens de negócios têm acerca dos processos civis e dos maus hábitos que uma lei processual defeituosa pode incutir nos juízes e nos advogados.

O ingênuo. — Cinco juristas de primeira fila, reunidos em agradável conversação e, o que é mais interessante, cinco velhos amigos com os quais posso falar sem papas na língua... Não se apresenta, todos os dias, uma ocasião tão propícia: tanta confiança para interrogá-los, tanta ciência e experiência para me responder! Permitam-me, pois, caríssimos amigos, que peça, com o coração na mão, que me satisfaçam uma curiosidade...

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O teórico. — Estamos todos à disposição.

O ingênuo. — Trata-se da justiça, isto é, de uma coisa de que todos vocês entendem, porque fazem dela profissão, da mesma maneira que eu me dedico ao comércio de máquinas. Quanto a mim, tendo tido só uma experiência, formei, dos processos civis, uma ideia que não pode ser mais repugnante: devo dizer que os considero como passatempos de desocupados ou como armadilhas para incautos, e ainda não seria suficiente... primeiro AdvogAdo. — Agradecemos o eufemismo...

O ingênuo. — Pois bem: tenho lido, estes dias, nos jornais, que logo entrará, em vigor, o novo Código de Processo Civil, pelo qual a justiça se converterá em um mecanismo de precisão, que se moverá por si só, sem ruídos e sem paradas. Caros amigos, digam-me ao pé do ouvido: é absolutamente verdade que o novo Código conseguirá operar este milagre?

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O teórico. — Os milagres são feitos pelos santos, não pelos Códigos. Somente um técnico, como você, pode dizer que os processos através dos quais se administra a justiça possam comparar-se às máquinas, cujo rendimento, sempre que seja exata a folga das velas ou a relação das engrenagens, chega-se a calcular, antecipadamente, com exatidão matemática. No processo, meu querido fabricante de motores em série, é necessário fazer o cálculo, em cada caso, levando em conta o humor dos personagens que têm parte no drama: os juízes, os advogados, os litigantes, as testemunhas... Cada um desses é um animal vivo, um unicum que reage a seu modo aos estímulos externos: de maneira que, ainda quando as leis processuais estejam feitas com a máxima sabedoria, há sempre que se descartar algo imprevisível no seu funcionamento prático, tornando aleatórios e aproximados os cálculos do seu resultado; as leis aparecem, como boas ou más,

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segundo as acompanhe ou as abandone a boa vontade dos homens...

o ingênuo. — Você falou de “animais vivos”; agora compreendo por que, na única experiência pessoal que tive de um pleito civil, ficou-me a impressão de que todo o processo civil se reduz a um sistema de barreiras e cancelas colocadas para impedir, aos interessados, ver-se e entender-se: precisamente o mesmo que se costuma verificar nos cativeiros dos animais ferozes, reclusos cada um na sua gaiola...

primeiro juiz. — Verdadeiramente, tenho visto

a gaiola apenas nos processos penais...
o ingênuo. — Já disse que falo por experiência pessoal; tenho tentado, sempre, em tantos anos que estou à frente do meu estabelecimento, evitar os processos, porque penso que o pior tempo gasto na vida é aquele utilizado para litigar.

O teórico. — Gostei de ouvir este pensamento, expressado por um capitão da indústria como você. Tenho aqui

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a prova confortante do declínio constante em que se encontra, entre os ho-mens de negócios, aquele espírito de sórdido litígio que tem sido sempre um indício de baixa civilidade; esta difusão, nos grupos sociais, da repugnância pelos litígios é, sem dúvida, o sinal de uma confiança crescente na conciliação...

O ingênuo. — Admitamos assim, se te agrada; mas tenho a leve suspeita de que se trata, no entanto, de crescente desconfiança na justiça. Pela minha parte, posso assegurar que, desde que experimentei uma vez na minha pele as delícias de um processo civil, precisamente este sentimento de desconfiança na justiça apoderou-se de mim, de tal maneira que hoje preferiria sofrer, sem protesto, qualquer equívoco, a fim de não me envolver com os tribunais.

Mas a este extremo de clarividência não havia chegado ainda faz dois anos, quando, diante da malandragem de um

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fornecedor sem-vergonha que, de qualquer maneira, queria me enfiar uma partida de mercadorias avariadas, deixei-me levar pela minha inexperiência e abri um processo judicial. E por isso fui cair, naquela ocasião, nas mãos dos advogados...

segundo AdvogAdo. — ... e dos juízes...

O ingênuo. — Advogados e juízes, com licença, todos são a mesma raça: to dos estão de acordo em reduzir a justiça a um jogo complicado e difícil, a uma espécie de “cabra cega” para adultos, no que parece que o mérito consiste em esconder-se detrás dos Códigos para conseguir que não se encontrem as pegadas da verdade.

primeiro juiz. — Mas, em definitivo, e deixando de lado as comparações irreverentes, que lhe fizemos de ruim, os pobres juízes e advogados, para que nos ataque assim? Em síntese, de que nos acusas?

o ingênuo. — Vou explicar em quatro palavras. Antes da experiência que me abriu

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os olhos, havia acreditado sempre que, também nos processos, o melhor modo para fazer valer as próprias razões seria o que seguimos nós nos negócios, quando nos parece que as gestões enviadas por correspondência vão com muita lentidão: nesse caso, nós, gente prática, sabemos que, para superar todos os obstáculos e todas as dúvidas, não há nada melhor que tirar do meio os intermediários e o papel escrito, e tomar o primeiro trem, ou o primeiro avião, indo tratar o assunto pessoalmente: quem quer que vá... Com um quarto de hora de colóquio, logra-se mais do que com um mês de gestões epistolares: ainda quando não se chegue a um acordo imediatamente, consegue-se sempre encontrar o x da questão, que já é meio caminho andado. Pois bem, eu acreditava, ingenuamente, que nos juízos se fazia o mesmo: ir pessoalmente ao juiz, encontrar-se cara a cara com a parte contrária, expor as próprias razões, contestar as objeções, pôr os pingos nos

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ii... e se dispor a ouvir a sentença. Como se faz com o médico: que quando te interrogou bem e escutou e examinou por inteiro, te diz, na mesma consulta, de que doença deves morrer.
primeiro juiz. — Mas também os juízes, se você observar bem, procedem pouco mais ou menos assim.
o ingênuo. — “Pouco mais ou menos”? Absolutamente o contrário, quis dizer! Quando comecei meu processo, estava seguro de que com um colóquio de meia hora conseguiria demonstrar, ao Tribunal, minhas boas razões; e pedia, ao meu advogado, que fixasse o mais rapidamente possível o dia em que o juiz poderia me receber e escutar. Mas o advogado sorria com ar compassivo e me dizia que os juízes têm mais coisas a fazer que perder o tempo com as cerimônias dos litigantes. E então, digo eu, se os juízes não foram feitos para isto, para que foram feitos?

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O teórico. — Estes são, você vai me desculpar, discursos de analfabeto. Se a justiça não tem que se reduzir a arbítrio e a favoritismo, é necessário que, no processo, se respeite, em primeiro lugar, o começo da contradição, pelo qual, antes que o tribunal possa decidir, cada parte deve ser posta em condições de conhecer e de rebater, com pleno conhecimento, as razões, boas ou más, aduzidas pela parte adversa: audiatur et altera pars. Pois bem, a fim de que isto possa ocorrer, é necessário que as razões dos dois contraditores cheguem ao juiz segundo uma ordem preestabelecida, em forma rigorosamente fixada. Essa justiça sem procedimento, que todos os ignorantes, como você, invocam, teria querido dizer, naquele caso, simplesmente o seguinte: que se o adversário tivesse se apressado mais que você a correr à casa do juiz, teria podido contar-lhe, contra você, as mais absurdas mentiras, e vencer a ação sem que

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você estivesse em situação de poder dizer nenhuma palavra na sua defesa.

O ingênuo. — Reconheço, de boa vontade que sou, em matéria jurídica, um perfeito ignorante; e me descubro perante este começo da “contradição”, ao que você se refere com tanto respeito. Faço-lhe observar, porém, que eu não pretendia ser recebido pelo Tribunal em segredo, sem que meu adversário o soubesse: pelo contrário, esperava poder encontrar-me cara a cara com ele, na presença dos juízes, para expressar-lhe minhas razões e para envergonhá-lo perante eles. Mas meu advogado me explicou que, nas ações civis, os litigantes não têm o que ele chamava aperitio oris: enquanto o cliente deve estar com a boca fechada e com proibição absoluta de falar da sua pretensão, corresponde ao advogado (que da questão sabe, obviamente, menos do que ele), reduzir a escrito suas razões, e encher páginas e páginas de longuíssimas cartas di-

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rigidas ao Tribunal: como se os juízes residissem na América e para entrar em contato com eles não existisse meio mais adequado que o epistolar... primeiro AdvogAdo. — Não se tratam de cartas ou hieróglifos! Tratam-se, simplesmente, de escritos de defesa, que na lingua-gem judicial se chamam “alegações”, nas quais nós, os advogados, depois de ter escutado com grande paciência as divagações de nossos clientes, traduzimos, em termos jurídicos, com ordem e com clareza, as circunstâncias essen-ciais que bastam para ganhar o pleito. Também vocês, os fabricantes de máquinas, têm sua linguagem técnica, que a nós, profanos em Álgebra e Mecânica, nos produz o efeito de um jargão incompreensível; e lhes basta uma fórmula para expressar, entre vocês, o que em nossa linguagem ordinária exigiria muitas páginas. O mesmo fazemos nós, os advogados, para entender-nos com os juízes, que são juristas como nós;

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e se estas considerações jurídicas nós preferimos apresentá-las de forma escrita, em lugar de expô-las em viva voz, se faz assim para dar ocasião aos juízes de meditar sobre elas, lendo-as e relendo-as até entendê-las perfeitamente: trata-se, com frequência, de argumentos sutis que, de senti-los em viva voz, não seria sempre...

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