Primeiras linhas acerca do tratamento jurídico do assédio de consumo no brasil

AutorMarcos catalan - Yasmine Uequed Pitol
CargoDoutor summa cum laude em Direito pela Faculdade do Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo - Mestranda em Direito e Sociedade no Unilasalle
Páginas137-160

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RESUMO

Este artigo busca refletir acerca dos contornos jurídicos do assédio de consumo no Brasil. Ele encontra sua justificativa não apenas na iminência do regramento do tema - previsto em dois projetos de lei em trâmite na Câmara dos Deputados - mas, também, na incipiência de estudos acerca do assunto no país. Dessa constatação emerge o objetivo desta investigação: esboçar alguns dos contornos dogmáticos de uma figura ignorada pelo direito brasileiro. Transitando, metodologicamente, nos trilhos pensados pelas correntes pós-positivistas de compreensão do fenômeno jurídico, tenta identificar as características mais salientes da sociedade de consumo para, posteriormente, desenhar uma singela proposta de tratamento jurídico das patologias havidas nesta seara. E esse resultado permite sustentar, ao final, a possibilidade - mesmo na ausência de lei ou de regra específica sobre a matéria - de tutela dos consumidores, eventualmente, assediados pelo mercado.

RESUMEN

En este artículo se busca pensar los contornos del acoso de consumo en Brasil. El texto encuentra su justificación en el virtual reglamento del tema - existen dos proyectos de ley pendientes en la Cámara de los Diputados - y en la ausencia de estudios sobre el contenido del acoso de consumo. El objetivo de esta investigación consiste en delinear los contornos de una figura dogmática ignorada por la legislación brasileña. Metodológicamente impulsado por las corrientes post-positivistas de análisis del fenómeno jurídico, identifica las características más destacadas de la sociedad de consumo y delinea una propuesta dogmática para el encuadre del acoso de consumo o que permite, al final, defender la posibilidad - incluso en ausencia de ley o regla específica - la protección de los consumidores acosados por el mercado.

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1. A título de introito: o assédio de consumo no Brasil

O calendário mal havia indicado o início do mês de outubro de 1988 quando - depois de aproximadamente vinte meses de intenso e expectado labor legislativo - a constituição Federal foi apresentada à sociedade brasileira. Com ela, entremeio a importantíssimas conquistas, também foi regrada a imperiosidade de tutela dos consumidores, a ser instrumentalizada naquele momento por meio da edição de regras e princípios imantados pela identificação da vulnerabilidade de seus destinatários.

A preocupação com a proteção dos consumidores alçou o referido direito - tão necessária quanto especial - à categoria de fundamental4 e, para além disso, promoveu a sua reimpressão, no mesmo texto legal, visando a explicitar seu papel de vetor conformador do exercício da livre iniciativa5, especificando, ainda, sem precisar grafá-lo, não haver licitude em condutas que destoem das molduras concebidas visando à tutela dos consumidores no Brasil.

Todo consumidor é vulnerável. E não se trata de presunção. A vulnerabilidade há de ser significada como o axioma que justifica e legitima a existência de um código incontestavelmente protetivo6, um código que ocupa lugar de destaque na prevenção e tratamento de muitas das patologias que permeiam as relações de consumo no Brasil. Um apotegma que explica - por meio da intervenção no universo da autonomia privada, da imputação objetiva do dever de reparar, da tutela de vícios aparentes, da desnecessidade de observância de alguns ônus probatórios ou, ainda, da internalização da ideia de actio nata, dentre outras tantas técnicas - muitos dos porquês atados à densificação da igualdade.

Uma percepção que cresce quando se identifica que as relações de consumo são vividas cotidianamente na "dinâmica do fornecimento e do abastecimento de bens e serviços"7, ao mesmo tempo em que são marcadas - e, em alguma medida, isso permite pensá-las em conjunto - pela perene e ininterrupta atuação do mercado na construção e readequação de estratégias e assunção de técnicas que se propõem a fomentar desejos tão incomensuráveis quanto insaciáveis.

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Ainda, assim, a harmonia ecoa com algo factível na seara das relações de consumo. Um constructo normativamente imposto8a permear a conformação jurídica do hoje. Prevenção, precaução e respeito ao consumidor, também o são. Mapas que indicam os caminhos de prospecção do amanhã.

Aliás, ao refletir acerca das possibilidades contidas no porvir - buscando, de alguma forma, antecipá-las - exsurge a imperiosidade de explicitar que qualquer tentativa de antecipação do futuro que Chronos talvez, e apenas talvez, tenha reservado ao direito do consumidor brasileiro deva, necessariamente, tangenciar os projetos de lei 281/2012 e 283/2012 - atualmente em trâmite na câmara dos Deputados, eis que aprovados no senado, a sua casa legislativa de origem -, projetos que visam a promover a atualização do código de Defesa do consumidor, vigente há um quarto de século. Propostas legislativas inspiradas em alguns dos pontos inseridos expressamente na United Nation guidelines for consumer protection do final do ano de 20159, embora conhecidas há mais de uma década.

Entre elas, a figura do assédio de consumo, objeto destas reflexões, a respeito da qual a Emenda 45 ao Projeto de lei do senado 283/201210 dispõe em dado instante:

Art. 54-c. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: [...] v - assediar ou pressionar o consumidor, principalmente se idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada, para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, inclusive à distância, por meio eletrônico ou por telefone, ou se envolver prêmio.

De forma mais ampla - talvez menos pontual - o Projeto de lei 281/1211se propõe a ampliar o rol de direitos básicos do consumidor, ao dispor que, entre eles, deva constar o inciso Xii, assegurando "a liberdade de escolha, em especial frente a novas tecnologias e redes de dados" e vedando "qualquer forma de discriminação e assédio de consumo". Uma proposta legislativa que, explicitamente, busca alargar a moldura que envolve a tela sobre a qual foram delineados alguns dos parâmetros considerados minimamente aceitáveis pela comunidade

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jurídica brasileira, muitas vezes desenhados com traços que saltam aos olhos por terem sido grafados com tons carmins, cores capazes de capturar - e revelar, pelo menos, aos olhares mais sensíveis - uma pequena parcela da crueldade que permeia o cotidiano de inúmeros consumidores brasileiros12.

É oportuno registrar, antes de encerrar este não tão breve introito, que a fonte de inspiração que, aparentemente, motivou a redação das propostas legislativas destacadas parece ter sido encontrada em uma diretiva europeia13sobre práticas comerciais desleais.

Enfim, é tempo de informar o leitor que esta investigação encontra sua justificativa não apenas na iminência do regramento do tema no Brasil, mas, também, na incipiência de estudos sobre o assunto. Aliás, daí emerge o objetivo de uma pesquisa que busca delinear alguns dos contornos dogmáticos de uma figura que, embora ignorada em suas especificidades, parece ser vedada pelo direito brasileiro.

O problema que a imanta questiona a possibilidade de se prevenir e (ou) de se combater, com base no instrumental disponível no direito pátrio, o assédio de consumo, e a hipótese que o informa leva a crer que a resposta é positiva. Uma conclusão, é evidente, tão efêmera e provisória quanto o são os momentos de felicidade experimentados em meio ao turbilhão de emoções difusamente escondidas nos palcos da sociedade de consumo.

É TEMPO DE INFORMAR O LEITOR QUE ESTA INVESTIGAÇÃO ENCONTRA SUA JUSTIFICATIVA NÃO APENAS NA IMINÊNCIA DO REGRAMENTO DO TEMA NO BRASIL, MAS, TAMBÉM, NA INCIPIÊNCIA DE ESTUDOS SOBRE O ASSUNTO

É preciso informar que ao longo deste texto buscou-se (a) delinear algumas das características da sociedade de consumo, (b) compreender, dogmaticamente, o assédio de consumo no Brasil e (c) ao final, refletir acerca da possibilidade (ou não) de tutela de consumidores eventualmente vitimados por práticas qualificadas como assédio de consumo. Uma investigação que, ao ser metodologicamente orientada pela assunção de postura crítica - portanto, mais construtiva e menos descritiva -, é atada às correntes pós-positivistas de compreensão do direito14e, intencionalmente, alinhavada a partir do diálogo com Gerd Bornhein15.

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2. Sedução e violência: facetas da sociedade de consumo

Há pouco mais de duas décadas, Giacomo rizzolati - um cientista italiano - estudava primatas buscando compreender a organização cerebral do comportamento motor. Sua pesquisa identificou que a área do cérebro responsável pela organização dos movimentos era estimulada quando macacos pegavam os alimentos que lhes eram oferecidos, bem como quando observavam outros símios alimentando-se.

O mais surpreendente, porém, deu-se quando um integrante de sua equipe entrou no laboratório com um sorvete: à medida que levava o alimento à boca, o computador conectado ao cérebro de um dos macacos utilizados na pesquisa capturava a excitação cerebral do animal, que assistia à cena. Isso levou o pesquisador a concluir que alguns neurônios subjugam o pensamento racional, estimulando a reprodução do comportamento do(s) outro(s) ou, ao menos, o desejo de fazê-lo16.

Sabe-se, ademais, que tais neurônios não agem isoladamente, pois, em paralelo à sua atuação, a dopamina - substância química ligada ao prazer - inunda o cérebro no exato instante em que se materializa a aquisição de algo, criando uma dimensão "quase orgástica" contra a qual mentes racionais não têm como resistir17. Os efeitos experimentados são semelhantes aos vivenciados pelos apaixonados, ao frenesi provocado pelo uso de drogas ou aquele experimentado...

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