A prevalência da vontade da assembléia-geral de credores em questão: o cram down e a apreciação judicial do plano aprovado por todas as classes

AutorCarolina Soares João Batista/Paulo Fernando Campana Filho/Renata Yumi Miyazaki e Sheila Christina Neder Cerezetti
Páginas202-242

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1. Introdução

A aprovação de um plano de recuperação proposto pelo devedor em uma recu-peração judicial depende, nos termos dos arts. 45 e 58 da nova Lei de Falências brasileira (Lei n. 11.101/2005, a "LRE"), do consentimento das três classes de credores indicadas no art. 41: (i) a de detentores de créditos trabalhistas ou decorrentes de aci-

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dente de trabalho, (ii) a de credores com garantia real, e (iii) a de credores quiro-grafários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinado.

A aceitação do plano pela classe dos credores trabalhistas e detentores de créditos decorrentes de acidente de trabalho se dá com a aprovação pela maioria simples dos credores presentes no ato da votação, independentemente do valor dos créditos. Nas outras classes, exige-se que a maioria simples também concentre mais da metade do valor total dos créditos presentes no ato.

Além disso, a LRE permite que o magistrado, em algumas circunstâncias, conceda a recuperação mesmo quando uma das classes rejeita o plano.1 Esse mecanismo, denominado eram down pelos norte-ame-ricanos, destina-se a permitir que o juiz interfira no processo de avaliação do plano de reorganização, desde que observados os requisitos e critérios estabelecidos na lei.2 A recente introdução na lei brasileira da possibilidade de o juiz, com vistas à homologação do plano, superar o veto de uma classe de credores merece estudos detalhados, na medida em que constitui assunto inédito no direito nacional e não foi tratado de forma completa pelo legislador.

Apesar de a lei conceder ao juiz o importante poder de superação do veto de uma classe, ela confere atribuições muito restritas para que ele intervenha no mérito dos planos de reorganização nos casos em que todos os grupos de credores concordaram com a proposta do devedor. A possibilidade de intervenção, contudo, não pode ser tão restrita porque a conduta do devedor e dos credores pode revelar situações injustas a demandar a atuação do Estado-juiz. Em primeiro lugar, pode haver um plano de reorganização aprovado por todas as classes e que (i) estipule o tratamento diferenciado de credores pertencentes à mesma classe ou (ii) inverta a ordem de pagamento, favorecendo as classes hierarquicamente subordinadas. Nesses casos, pode-se questionar se o juiz é obrigado a aprovar esse plano, mesmo que ele esteja em dissonância com a regra da par condido creditorum. Em segundo lugar, é possível que um credor participe de mais de uma classe e abuse do seu direito de voto em seu benefício e em detrimento daqueles que detêm pouca representatividade. Em situações como essa, cabe indagar se o juiz pode intervir para proteger os credores prejudicados ou se deve apenas homologar o plano sem proceder a qualquer análise.

Todos esses questionamentos envolvem um tema central que diz respeito à possibilidade de o juiz, após balizada análise do tratamento conferido aos credores pelo plano de recuperação, não homologar a decisão da assembléia-geral de credores acerca do plano. Esse assunto envolve tanto a discussão acerca da proteção da classe dissidente à aprovação do plano quando da superação do seu veto por meio do mecanismo do eram down (item 3 infra) quanto a proteção de cada um dos credores afeta-dos nas situações em que todas as classes concordam com o plano em voga (item 4 infra).

Essas são as duas matérias que o presente estudo busca tratar. Pretende-se, ainda, contribuir para a interpretação dos dispositivos legais relacionados a cada uma dessas matérias. Da mesma forma, procura-se, mediante a exposição de novas interpretações, trazer coerência à LRE, permitindo que o objetivo de preservação da empresa declarado no seu art. 47 encontre reflexos nas regras relacionadas à aprovação do plano de recuperação judicial.

Cabe ressaltar, ainda, que as soluções interpretativas apresentadas no presente trabalho devem ser consideradas em conjunto, sendo que a utilização parcial das pro-

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postas abaixo indicadas pode levar a resultados prejudiciais.

Parece importante, assim, iniciar a abordagem mediante o estudo do assunto sob o ponto de vista do direito comparado.3

2. A aprovação do plano de reorganização e o tratamento conferido aos credores à luz do direito estrangeiro
2. 1 O Direito norte-americano: o "Chapter 11 do Bankruptcy Code"

Nos Estados Unidos, o Bankruptcy Code de 1978 prevê cinco tipos diferentes de processos falimentares, geralmente indicados pelo número do capítulo que os prevê. O Chapter 7 regula os processos de liquidação (liquidation) e o Chapter 11 prevê os processos de reorganização (reor-ganization), mediante a apresentação de um plano, que pode, entretanto, prever a liquidação dos bens do devedor de forma diferente da prevista no Chapter 7. O Chapter 12 cuida de processos envolvendo family farmers efishermen, o Chapter 13 regula as reorganizações de consumer debtors4 e o Chapter 9 trata da reorganização de municípios. Tratar-se-á, aqui, dos dispositivos relativos à aprovação do plano de reorganização previstos no Chapter 11.

O § 1.112(b) do Bankruptcy Code permite que um tribunal rejeite um processo aberto com base no Chapter 11 (reor-ganization) ou o converta em um processo regido pelo Chapter 7 {liquidation), se essa providência for feita no melhor interesse dos credores e do espólio insolvente (in the best interest of creditors and the estate). Além disso, o § 1.112(b) estabelece um rol exemplificativo com dez razões para rejeitar uma reorganização ou convertê-la em uma liquidação.5 O motivo mais comum para a rejeição ou conversão do plano pelos tribunais é o património do devedor sofrer perdas constantes e não haver uma perspectiva razoável de recuperação.6 A ocorrência de um dos motivos arrolados no § 1.112(b) não acarreta necessariamente, porém, a rejeição do processo de reorganização ou a sua conversão em liquidação, o que significa que os tribunais têm margem de discricionariedade para decidir.7

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Além disso, o § 1.129(a) do Bank-ruptcy Code estabelece uma lista de requisitos para que um plano de recuperação, uma vez aprovado pelos credores, seja confirmado por um tribunal.8

Um desses requisitos de confirmação é a obrigatoriedade de o plano passar no teste denominado best-interest-of-credi-tors, previsto no § 1.129(a)(7). Esse dispositivo estabelece que o plano é confirmado pelo juiz caso todos os credores da classe o aprovem ou recebam ou retenham sob o plano um valor que não seja menor do que o que seria recebido ou retido se o devedor fosse submetido a um processo de liquidação. Ao estipular que cada membro de uma classe deva receber no mínimo o

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valor que receberia em caso de liquidação, o b est-intere st-of-cr editors te st protege os credores dissidentes de uma classe concordante.

Outra exigência diz respeito à concessão de tratamento especial aos detentores de créditos prioritários, a não ser que eles desistam de tal tratamento. O plano também deve ser feasible, o que significa que a sua aprovação não será seguida de falência (exceto quando o próprio plano previr a liquidação) ou da necessidade de nova reorganização, demonstrando-se, assim, que os envolvidos foram realistas quando do tratamento de suas diferenças.9

A aprovação de um plano de reorganização apresentado sob o procedimento da reorganization previsto no Chapter 11 depende, ainda, da aquiescência das diferentes classes de credores10 afetadas (impaired classes) pelo plano proposto, nos termos do § 1.129(a)(8).11 Contudo, conforme abaixo comentado, esse requisito pode ser flexibilizado mediante o instituto do eram down, caso ao menos uma das classes tenha concordado com o plano.

Para que o juiz aprove um plano por meio do eram down, é necessário que todos os outros requisitos sejam cumpridos e que o plano não discrimine injustamente (does not discriminate unfairly) e seja justo e equitativo (is fair and equitable) com relação a cada classe de créditos ou interests que não o tenha aprovado. Destarte, nas situações em que uma classe de credores afetada pelo plano não concorda com a sua aprovação, o plano pode ser confirmado desde que os interesses da classe dissidente estejam protegidos (distinto, portanto, do best-interest-of-creditors, que protege in-: dividualmente os interesses dos credores). Nesses casos, o proponente do plano pode pedir que o magistrado confirme o plano, o que será feito "if the plan does...

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