Os limites da ação do poder judiciário na tutela das pretensões ao fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo

AutorAna Paula Andrade Borges de Faria; Marcelo Beal Cordova
Páginas2-38

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Introdução

O objetivo deste trabalho é delinear as fronteiras da atuação do Poder Judiciário na tutela das pretensões individuais ao fornecimento estatal gratuito de medicamentos não contemplados nos protocolos clínicos dos programas de assistência farmacêutica editados pelas várias esferas de Governo.1

Não será analisada a questão da tutela jurisdicional do direito subjetivo ao fornecimento de medicamentos que integram programas de fornecimento gratuito implementados pelo Poder Público.

Isto porque, se o medicamento cujo fornecimento é postulado judicialmente consta da lista de um programa de fornecimento gratuito editado por certa pessoa política, e é indicado, segundo o protocolo clínico administrativo, para o tratamento da doença que acomete determinado indivíduo, este tem inegável direito subjetivo ao fornecimento do remédio, já que todos os pressupostos para o exercício do direito estão previstos em normas legais e regulamentares que concretizam o enunciado do artigo 196 da Constituição Federal. Logo, uma decisão judicial que determine o fornecimento do remédio na hipótese apenas aplica um comando regulamentar editado pelo próprio Poder Executivo, não havendo interferência do Poder Judiciário na esfera das políticas públicas.

Diversamente, se o medicamento não está previsto na lista de um programa estatal de fornecimento gratuito, ou, ainda que esteja previsto, se não é indicado, pelo protocolo clínico administrativo, para o tratamento da patologia que acomete certo indivíduo, este, ao postular uma tutela jurisdicional que determine ao Estado a obrigação de lhe fornecer o medicamento, pressupõe, para satisfazer sua pretensão, que o Poder Judiciário interfira na política de saúde pública criada pelo Poder Executivo, fazendo eclodir uma série de questionamentos jurídicos que serão abordados no presente estudo. Page 3

A importância da investigação é inegável, pois, é fato notório a crescente multiplicação de demandas individuais em que se postula ao Poder Judiciário que determine ao Poder Executivo a entrega de medicamentos excepcionais e de alto custo que não são fornecidos pelos programas oficiais de assistência farmacêutica, e os Juízos e Tribunais têm sido sensíveis ao anseio da população, concedendo tutelas antecipadas, medidas cautelares e liminares que geram distorções no funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS2 .

Não foi outro o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 566471 RG/RN, ocorrido em 15 de novembro de 2007, decidiu que: "Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo" (grifo nosso).

Ademais, a participação do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas tem sido especialmente focada na área de assistência farmacêutica, reforçando a corrente jurisprudencial inaugurada no início da década de noventa, com a acolhida de pedidos de tutela jurisdicional para o tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - SIDA, forte na Lei Federal n. 9.313/963, corrente esta que se expandiu para amparar pretensões individuais de tratamento de outras patologias, ainda que ausente uma legislação específica relacionada4.

Para realizar a pesquisa foram consultadas obras doutrinárias editadas no Brasil e em Portugal especialmente nos campos do Direito Constitucional, dos Direitos Humanos e do Direito Administrativo, além de artigos e textos publicados na rede mundial de computadores, com abrangência interdisciplinar nas áreas do Direito e da Saúde Pública. Ainda, foram acessadas as páginas eletrônicas do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para coletar acórdãos e decisões monocráticas sobre o tema.

A seqüência de capítulos foi organizada para propiciar ao leitor o acesso gradual a noções e conceitos importantes para compreender com clareza as conclusões alcançadas.

Assim, e considerando que as decisões do Poder Judiciário que tutelam pretensões individuais ao fornecimento de medicamentos têm como principal fundamento o comando do artigo 196, da Constituição Federal, define-se, inicialmente, a classificação das normas constitucionais segundo sua estrutura, eficácia e efetividade, para, em seqüência, situar o direito social à saúde como direito fundamental e interpretá-lo à luz do princípio dignidade da pessoa humana e da teoria do mínimo existencial. Page 4

Então, passa-se à análise da competência discricionária do Poder Executivo para concretizar o direito à assistência farmacêutica, situando essa competência institucional no contexto do princípio da Separação de Poderes, da reserva do possível (fática e jurídica) e do conflito entre direitos fundamentais, para evidenciar as objeções freqüentemente apresentadas à interferência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Por fim, destacam-se os fundamentos de acórdãos e decisões monocráticas proferidas sobre o tema, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a fim de iluminar as conclusões finalmente alcançadas no derradeiro capítulo do estudo onde são traçados os limites da atuação jurisdicional na tutela das pretensões individuais ao fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo.

1 - Classificação Das Normas Constitucionais Segundo A Sua Estrutura, Eficácia E Efetividade

O estudo da estrutura das normas jurídicas tem inegável relevância para a interpretação e aplicação dos comandos da Lei Maior, porém, a doutrina constitucionalista é controvertida sobre a classificação dos preceitos da Constituição segundo o apontado critério.

JOSÉ AFONSO DA SILVA compreende as normas jurídicas como proposições definidoras de direitos e obrigações, hábeis a criar posições subjetivas ativas ou passivas, enquanto que os princípios seriam "disposições que se irradiam e imantam os sistemas de normas".5

LUÍS ROBERTO BARROSO assinala que as normas jurídicas subdividem-se em normas-disposição, que regem situações específicas, e normas-princípio, ou princípios, que possuem grande teor de abstração e posição hierárquica superior no sistema normativo, porque sintetizam os valores mais relevantes da ordem jurídica6.

Sobre o tema, entre as alternativas ofertadas pela doutrina, adota-se a concepção de J.J. GOMES CANOTILHO7, segundo a qual a Constituição contém duas espécies de normas jurídicas: as regras e os princípios.

As regras possuem um grau de abstração reduzido e aptidão para aplicação direta, porque contêm comandos imperativos, proibindo, permitindo ou impondo determinados comportamentos, concretizando-se mediante subsunção, sob a lógica do tudo ou nada, uma vez que o legislador define a hipótese de incidência e a conseqüência jurídica respectiva, de modo que, sempre que a previsão normativa da regra realizar-se no mundo dos fatos, incidirá a conseqüência jurídica por ela estipulada para reger a Page 5 situação concreta. Havendo conflito aparente entre regras jurídicas, este há de ser solucionado pelos critérios cronológico, da especialidade e da hierarquia8.

Diversamente, os princípios são dotados de elevado grau de abstração, com conteúdo vago e indeterminado, encerrando verdadeiros "standards" fundados na noção de Justiça e na idéia de Direito. Por isso, têm papel fundamental no sistema normativo, ocupando posição hierárquica privilegiada no sistema de fontes, e, em certas hipóteses, desempenhando função estrutural do ordenamento jurídico9.

Daí a conclusão de que os princípios seriam normas jurídicas impositivas de uma otimização, concretizável em variados graus, dependendo de condicionamentos fáticos e jurídicos. Isso significa que a aplicação de certo princípio para regular uma situação concreta pode impor o balanceamento de valores e interesses na contingência de existirem outros princípios conflitantes igualmente aplicáveis. Assim é que, será preciso harmonizar os vários princípios, segundo o seu peso, para dimensionar o campo de incidência de cada qual, sobre o conflito de interesses a ser regulado10.

Sob outro enfoque, HUMBERTO ÁVILA11 assevera que "se o conteúdo normativo de um princípio depende da complementação (positiva) e limitação (negativa) decorrentes da relação dialética que mantém com outros princípios, parece inconcebível a ocorrência de efetivas colisões entre eles". Na verdade, os princípios, em razão do elevado grau de abstração lógica, são fluidos e imprecisos, e não veiculam hipóteses de incidência nem conseqüências jurídicas determinadas, de modo que "o problema que surge na aplicação dos princípios reside muito mais em saber qual deles será aplicado e qual relação mantêm entre si"12.

Completando o raciocínio, JUAN CIANCIARDO13 esclarece:

[...] a rigor, não se trata da primazia de um princípio sobre outro, mas apenas da inaplicabilidade do princípio eventualmente afastado, funcionando como suposto de fato da regra de decisão que, então, necessariamente, se formula as circunstâncias do caso e, como sua conseqüência jurídica, a que se extrai do princípio de maior peso.

Como se denota, considerando que a norma constitucional veiculada sob a forma de princípio, de conteúdo indeterminado e abstrato, não revela, por si mesma, a abrangência de sua hipótese de incidência normativa, deverá o intérprete, valendo-se do método tópico-problemático, definir o suposto normativo a partir do caso concreto Page 6 de modo que, segundo o magistério de J.J. GOMES CANOTILHO14:

[...] a interpretação da constituição...

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