Presunção de Inocência, Kant e o Utilitarismo

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A presunção de inocência somente pode ser entendida através da interpretação sistêmica advinda de uma análise dialética entre liberdade e dignidade. Se por um lado tem-se a pretensão punitiva do Estado contra o indivíduo personagem da persecução penal, por outro existe a suposição de que, emblematicamente, o acusado responde pelo seu crime quando transitada em julgado a sentença condenatória, que de fato comprovará o dolo, atestando pela via judiciária a prisão fática do autor do delito. Enquanto os atos processuais e a plenitude de defesa caminham, o princípio da presunção de inocência simboliza a preservação da pessoa em sua integridade, de não ser acolhida em cárcere quando ainda é possível que seja reconhecida insuspeita sua participação diante do ilícito a ela imputado, inicialmente.

Entretanto, liberdade e dignidade são valores que se complementam. Mesmo que a afirmativa da liberdade seja forte, existem casos em que a sanção é imposta pela privação dessa liberdade. Obstar pela privação antes da sentença condenatória é função do advogado e presumir o acusado inocente é exigido do julgador, em conservação da dignidade do propenso réu. Uma vez negada a importância da liberdade pelo julgador, por uma interpretação legislativa que mitigue princípios

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inalteráveis ou rígidos, há uma troca de valores que deslegitima o sujeito dotado de dignidade, surrupiando de certa forma a sua liberdade. No entanto, negar a liberdade ao suspeito que não perfaça os moldes do artigo 312 do Código de Processo Penal1, que legitima a prisão preventiva, significa repudiar a sua dignidade e não enxergá-lo como um indivíduo dotado de racionalidade, dignidade e merecedor de respeito.

Para isso Immanuel Kant (1724-1804) apresenta uma propos-ta influente: a fundamentação de que a liberdade não é presente divino aos seres humanos, mas sim que estes são merecedores dela pela racionali-dade que é atributo do ser, meritório de dignidade e respeito. Enxerga o filósofo alemão que o homem deve ser entendido como um fim em si mesmo em respeito à dignidade da pessoa. Dessa forma é errôneo o pensamento de que usar pessoas em prol de um bem-estar geral seria o mais acertado. Para Kant, o agir moral requer que se enxergue acima de tudo a dignidade da pessoa, inerente ao homem. Dessa forma, prender a acusado em favor de um princípio como in dubio pro societate significa realizar uma ação por um motivo exterior às suas causas e não por ser o certo a se fazer, e ainda sugere a uma maioria, alheia ao sistema penal e sua seletividade, que o sistema está cumprindo a sua parte do acordo no trato social, que é prender.

Para Bauman a sociedade parte de um princípio que vem se amoldando com o passar dos tempos: o medo do outro. Esse temor reverencial é notado tanto em ambientes públicos de interação social, na convivência com a sociedade em geral, quanto nos altos muros e grades que separam e divisam vidas e coexistência:

...a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo. Caminhamos porém, hoje, rumo à privatização dos meios de garantir/assegurar/firmar a liberdade individual, e se isso é uma terapia para os males atuais, é um tratamento fadado a produzir doenças iatrogênicas dos tipos mais sinistros e atrozes: destacando-se a pobreza em massa, a superfluidade social e o medo ambiente.2

Passam então os estranhos, diferentes e minorias a ser transformados em seres supérfluos caracterizados como dispensáveis, ou selecionáveis penalmente. Essa tendência de segregação parte do discurso da segurança social, em que excluir os visitantes e o diferente é meio para sobrevivência, criando assim nas cidades os espaços do medo, onde essas diferenças não são permitidas. Assim, grandes condomínios são erguidos com suas cercas que não apenas protegem o indivíduo do mundo externo, mas também o isolam. Para aqueles que estão do lado de fora, esse é um grupo de pessoas intocáveis, impossíveis de contato. Para essas pessoas que fazem parte dos “muros-prisões condominiais”, os dessemelhantes são qualquer um que não esteja incluído em seu ciclo de convivência diário. Não obstante, o diferente ou estrangeiro passa a ser um mero “ser mitológico” encontrado apenas no centro das cidades. Esses espaços de proteção criados envoltos por grades, câmeras e segurança revelam uma forma de comportamento que é fruto da diversidade cultural que encontramos nas metrópoles, considerada por Bauman como mixofobia que simboliza a “reação previsível e generalizada perante a inconcebível, arrepiante e aflitiva variedade de tipos humanos e de costumes que coexistem nas ruas das cidades3.

Esse pavor atroz faz com que se defina, de certo modo, aqueles que devem ser mantidos distantes do trato social, sendo a privação do convívio o primeiro passo. Dessa forma, enxergar um direito penal estreito a todas essas transformações sociais, do medo do outro e das angústias pós-modernas, significa atrelá-lo a essas constantes mudanças, pois ele, o direito, também se transforma. Imaginar os ministros do Supremo Tribunal Federal realizando votos contrários ao estipulado pela Constituição, que é a carta magna de toda uma ordem jurídica, é alienar anos de promoção humana. Os estudos kantianos afirmaram, em sua obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1776), o impulso moral das revoluções que viriam em seguida (Americana em 1776 e Francesa em 1789), fornecendo bases resistentes para o que os revolucionários viriam a denominar como os direitos do homem (século XVIII) e que na aurora do século XXI viemos a contemplar como direitos humanos4.

Ao inserir uma nova interpretação e uma reformada ordem, os ministros enxergam a ideologia da defesa social como base para todo o direito penal, ancorando a política criminal num legalismo dogmático e positivista ao extremo, que tende a criminalizar sempre que possível. Para Vera Regina P. de Andrade, ao mesmo tempo que o Estado Moderno encontra no sistema penal um dos seus instrumentos de violência e poder político, de controle e domínio, necessitou formalmente desde seu nascimento de discursividades (“saberes”, “ideologias”) tão aptas para o exercício efetivo deste controle quanto para a sua justificação e legitimação.5

Alessandro Baratta, jurista italiano, por sua vez entende que a ideologia da punição pode se legitimar através da ideologia da defesa social6 que “se apresenta e se define por meio de princípios”; estes se ratificam ostentando ideologicamente as bases para igualar todos perante a lei, tendo o direito penal como o epíteto da igualdade, não prevendo as diferenças sociais e econômicas existentes em uma sociedade7.

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Essas interpretações e impulso punitivo ao extremo do Estado são provenientes do medo excessivo e da sociedade do espetáculo em que se vive nos dias de hoje8, onde há a mídia que transforma o processo penal numa epopeia em busca da audiência, criando cada vez mais adeptos da criminalização de mais e mais condutas.

Para isso, a interpretação paradigmática dos ministros vai contra a interpretação zetética que movimenta investigações construtivas da realidade, através de questionamentos, utilizando fontes como a sociologia e a antropologia para tomar decisões de tamanha importância como o fim de um princípio antes ativo e modelador do processo penal.

Interpreta-se também, por fim, pelo utilitarismo. Jeremy Bentham (1748-1832) inaugurou a filosofia numa ideia central muito simples: o objetivo maior é maximizar a felicidade do número maior de pessoas. Considerando que a soma das satisfações de uma maioria deve ser acatada como bem-estar geral, tal argumento pode ser cruel com o indivíduo isolado, bestializado, estereotipado e rotulado.

Para Bentham, todo o argumento moral deve de forma implícita inspirar-se na ideia da maximização da felicidade pesando as preferências de todos, sem as julgar. Dessa forma, o retrato que se tem é que o prazer maior para uma maioria das pessoas maximiza o princípio da maior felicidade. O autor não atribui o valor devido à dignidade humana e aos direitos individuais, reduzindo de fato, equivocadamente, tudo o que teria importância moral a uma singela escala de prazer e...

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