Pressupostos para uma concepção completa e para a realização dos direitos humanos

AutorJosé Claudio Monteiro De Brito Filho
Páginas51-76

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Meu objetivo neste capítulo é mostrar que, além da dignidade da pessoa humana, fundamento dos Direitos Humanos, há outros elementos que são necessários para uma ideia completa relativa a esse conjunto, até para a sua realização.

Defendo, então, que, ao lado da dignidade, deve-se ter dois ideais políticos, ou princípios, como são denominados no Direito, a que se deve dar importância equivalente (entre os dois): a liberdade e a igualdade. Além disso, entendo que somente em um modelo específico de justiça distributiva é possível pensar na obrigação de conceder a todos os indivíduos os direitos que são indispensáveis para que tenham uma vida digna e possam dar curso às ações necessárias para o cumprimento de seu plano de vida.

Para isso, todavia, antes de discutir os pressupostos, para além da dignidade, creio que é necessário discutir, no âmbito da Filosofia Política, qual a teoria da justiça que melhor sustenta uma ideia completa, ou quase, de Direito Humanos.

A justiça como equidade, de John Rawls, com apoio da igualdade de recursos, de Ronald Dworkin, como a teoria da justiça que melhor sustenta a ideia de direitos humanos

Antes de iniciar a apresentação e defesa do liberalismo de princípios, quero indicar, de forma rápida, pois é o que este texto comporta, as razões pelas quais

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rejeito a utilização, para a defesa que quero fazer, de algumas teorias importantes a respeito da distribuição de bens valiosos, ou, adotando a denominação que o Direito consagra, de bens fundamentais, porque incapazes de sustentar uma ideia completa de Direitos Humanos.

Começando com o libertarismo, sua defesa de um Estado mínimo e sem funções distributivas, além de sustentando, também, ou por via de consequência, somente as liberdades, faz com que essa teoria não seja capaz de reconhecer direitos humanos para além da 1ª dimensão, o que a torna incompatível com uma noção ampla de Direitos Humanos.

Isso é possível depreender, facilmente, com Robert Nozick, expoente do libertarismo, que afirma:

[a]s principais conclusões que retiramos acerca do estado são as de que um estado mínimo, limitado às funções estritas da proteção contra a violência, roubo, fraude, execução de contratos, e por aí em diante, justifica-se; e que o estado mínimo, além de correto, é inspirador. Duas implicações dignas de nota são a de que o estado não pode usar os seus instrumentos coercitivos com o objetivo de obrigar alguns cidadãos a ajudar outros, ou de proibir determinadas atividades às pessoas para o próprio bem ou proteção delas3.

Da mesma forma o marxismo, embora sob um ângulo oposto. É que, no marxismo, além de a liberdade não ser um ideal importante, não haveria espaço para considerações a respeito dos direitos da pessoa sob o aspecto individual, pelo que, mesmo a distribuição dos recursos sociais estaria prejudicada pela ótica sempre coletiva que é dada a esses bens, e que gera uma incompletude, pois, até os direitos sociais são fruídos sob o ponto de vista individual4.

Ainda a respeito do marxismo, é preciso indicar, uma vez que estou a tratar de teorias da justiça que, literalmente falando, essa doutrina nem possui uma teoria da justiça, pois um dos pressupostos das teorias da justiça é a existência do que Rawls denomina circunstâncias da justiça5, que este autor sintetiza da seguinte forma: “as circunstâncias da justiça se verificam sempre que pessoas apresentam reivin-

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dicações conflitantes em relação à divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada”6, e que não são reconhecidas em uma teoria que elimina em boa medida os conflitos, senão, no plano ideal, todos, ao criar modelo que impede a luta de classes. Além do mais, como indica Samuel Fleischacker, Marx não era um defensor da ideia de justiça distributiva por “acreditar que o comunismo traria uma abundância de bens e de reconhecer, como Hume, que questões de justiça surgem apenas onde há escassez”7.

Aliás, a incompatibilidade do marxismo para dar conta de uma ideia de Direitos Humanos, especialmente no tocante à liberdade, pelo fato de gerar regimes clara-mente autoritários, ao menos em um período de transição – isso em teoria, porque esse período, na verdade, jamais se encerra –, fica óbvia, do ponto de vista da realidade, na fala de Göran Therborn, claramente um autor identificado com essa corrente teórica:

dois regimes comunistas menos importantes mantêm-se até hoje, por estratégias de sobrevivência muito diferentes. O isolamento nacionalista transformou a Coreia do Norte comunista em poder dinástico, inteirado por mísseis e pobreza em massa. Cuba preservou a integridade revolucionária do regime, embora dificilmente seja menos personalista e autoritária que o sistema coreano8.

Seguindo adiante, devo dizer que tampouco o utilitarismo, essa doutrina tão utilizada pelos governos, é adequada para sustentar a noção de Direitos Humanos.

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A respeito do utilitarismo, ensina Álvaro de Vita que:

[O] utilitarismo é uma teoria ética teleológica, isto é, uma teoria que define o que é correto ou justo fazer em função de uma concepção da boa vida humana. Essa concepção, no caso do utilitarismo, é vazia de conteúdo próprio, já que resulta da agregação de preferêndias e desejos de facto dos agentes, sem que a motivação ou a validade dessas preferências e desejos sejam colocadas em questão9.

Já Will Kymlika indica que, na forma mais singela, o utilitarismo “afirma que o ato ou procedimento moralmente correto é aquele que produz a maior felicidade para os membros da sociedade”10. Mais adiante, o mesmo autor afirma que, no utilitarismo, as preferências dos indivíduos não são satisfeitas quando contrárias ao que “maximiza a utilidade de maneira geral”11.

Essas duas passagens, mais a anterior, de Álvaro de Vita, deixam claras algumas questões próprias do utilitarismo: a predominância do bem sobre o justo, sendo o resultado o que indica o ato como moralmente correto, bem como o fato de que, no utilitarismo, as preferências dos integrantes dos grupos minoritários são ignoradas, desde que se maximize a utilidade e se contemple a maior parte dos indivíduos.

Ora, em assim sendo, não há como usar o utilitarismo para definir uma justa distribuição dos Direitos Humanos em favor de todos, pois, por essa doutrina, não se atinge a totalidade dos indivíduos, havendo o sacrifício de alguns para o bem-estar de outros. Como afirma Sandel, “[s]e você acredita em direito humanos universais, provavelmente não é um utilitarista. Se todos os seres humanos são merecedores de respeito, não importa quem sejam ou onde vivam, então é errado tratá-los como meros instrumentos da felicidade coletiva”12.

Lançando mão de um exemplo que também sempre utilizo, é o que acontece, por exemplo, quando um governo afirma, normalmente de forma triunfante, que a medida que vai adotar possibilitará, por exemplo, que 90% das crianças tenham educação básica. Aparentemente tem-se aqui uma boa medida, pois a maioria das crianças será alfabetizada. O problema é que, na verdade, o que se está a dizer é que, por causa da medida adotada para cumprir uma obrigação essencial do Estado, 10% de todas as crianças serão excluídas do direito de ter educação formal, que é um direito indispensável do ser humano, atingindo essa exclusão, via de regra, as mais necessitadas.

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Falando agora de Rawls, cuja teoria é a que elegi para sustentar a defesa de uma ideia completa, ou quase, dos Direitos Humanos, esse autor rejeita o utilitarismo por diversos argumentos, podendo ser citado o fato de o utilitarismo – ao contrário da justiça como equidade, que afirma que os princípios de justiça são objeto de um consenso original – estender “à sociedade o princípio da escolha feita por um único ser humano”. Para Rawls, não há sentido em haver a regulação de uma associação de pessoas, em uma sociedade plural e em que as pessoas têm interesses distintos, a partir da “extensão do princípio de escolha para um único indivíduo”13.

De outro lado, Rawls se opõe diretamente ao que já foi mencionado aqui, linhas atrás, ou seja, de que no utilitarismo o bem é especificado independentemente do justo, e em que este, o justo, é maximizador do bem, propondo, ao contrário, uma teoria deontológica, em que ocorre o inverso: há prioridade do justo sobre o bem14.

Por fim, deveria falar do comunitarismo. Ocorre que essa corrente de pensamento da Filosofia Política será discutida no Capítulo 5, quando for tratar da universalidade dos Direitos Humanos. Por ora, é suficiente rejeitar a sustentação dos Direitos Humanos no comunitarismo pelo fato de que essa corrente rejeita a ideia de valores universais e, por isso, em princípio, não pode aceitar a própria ideia de Direitos Humanos.

Rejeitadas todas essas teorias da justiça, quero agora apresentar as razões que justificam minha escolha da teoria da justiça como equidade, de John Rawls, com apoio, em parte, da teoria de igualdade de recursos, de Ronald Dworkin, como a mais adequada para sustentar uma concepção adequada de Direitos Humanos. Para isso, primeiro é preciso apresentar as noções básicas do pensamento desenvolvido por Rawls, em Uma teoria da justiça15.

Para Rawls, “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais”, pelo que, caso injustas, mesmo leis e instituições eficientes e bem organizadas devem ser eliminadas, assim como nem todo o bem-estar da sociedade pode justificar a violação da liberdade de uma pessoa16.

Isso já deixa claro que, para Rawls, o resultado, e que é decorrente da concepção de bem, ainda que seja da própria comunidade, não pode sobrepor-se à concepção do que é justo, como já indicado.

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Firma também o entendimento de que, para Rawls, o indivíduo, singularmente considerado, tem uma importância primordial no estabelecimento de...

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