Precisamos falar sobre a sanção

AutorMônica Sette Lopes
Páginas142-164
Precisamos falar sobre
a sanção
“Não sei ao certo porque o incidente banal desta tarde
acabou provocando em mim a vontade de lhe escrever.
O fato é que, desde que nos separamos, o que mais sin-
to falta, acho, é chegar em casa e ter a quem contar as
curiosidades narrativas do meu dia, do jeito como um
gato às vezes larga um camundongo aos pés do dono,
as pequenas, modestas oferendas com que os casais se
brindam, depois de revolver quintais diferentes”66.
A narrativa do direito, os oficiais
de justiça e os carcereiros
Se falamos do direito, se queremos conhecê-lo bem,
como escolher os temas de que precisamos nos ocupar nas vá-
rias escalas da epistemologia jurídica? Esta é a pergunta que
este texto pretende fazer. Mas ele pretende tocar em algo que
é preciso escandir: a forma como a teoria do direito relata os
66
SHRIVER, 2007, p. 9.
A CRÔNICA DA JUSTIÇA • 143
aconteceres de seu processo de aplicação. Para isso para de um
livro que virou lme.
Em Precisamos falar sobre Kevin67 , de cujo primei-
ro parágrafo foi extraído o trecho que vem como pórtico desse
artigo, a mãe-personagem não tem limites quanto ao que pode
dizer-pensar e encurrala o leitor que pretende fazer um juízo
sobre ela, sobre seu lho, sobre sua família, sobre os fatos. O de-
sejo de entender porque um adolescente matou tantas pessoas
num colégio cede lugar à estupefação de percorrer o somatório
das contingências no uxo, apenas aparentemente bastante, da
historicidade. E, discutindo sua própria culpa, escreve cartas ao
marido rasgando-se em sentimento e exposição. O rato que o
gato joga aos pés do dono. A história na narrativa miúda. O
livro virou lme, mas a intenção analógica apropria-se aqui da
carpintaria da escrita, porque ela condensa a narrativa escanca-
rada e o desenlace de todas as certezas e dúvidas de uma mãe
que sobreviveu aos crimes que o lho cometeu. Retomando o
lugar comum, o livro é melhor do que o lme: nem tudo o que
acontece se traduz na ação, nem tudo é visível, audível. A lin-
guagem epistolar, porém, é tradução da minúcia não acessível
aos sentidos na experimentação do mais vivenciado, do mais
sincero. A intimidade substancial. A explicitação do sentir no
ângulo mais aberto. A liberdade de exposição é absoluta entre
os que se conhecem tão bem e compartilham as boas e as más
viradas da vida.
No arrevesado das possibilidades de narrar o coti-
diano do direito, esse é um bom mote. É preciso falar sobre a
sanção. É preciso que nos apropriemos dela com curiosidade
narrativa, como se escavássemos um quintal e depois contás-
semos a história de cada resto reencontrado. Jogar o rato, re-
colhido no dia vivenciado, aos pés do dono é um movimento
fundamental dos que somos os caçadores do direito e dos que o
experimentamos na realidade que não nos autoriza devaneios
67
SHRIVER, 2007. O título em inglês é We need to talk about Kevin, mesmo
do lme de 2011, dirigido por Lynne Ramsay.

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