O precedente sobre a ausência de responsabilidade do Estado na terceirização diante dos princípios da jurisprudência

AutorWilliam Pugliese
Páginas124-131

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1. Introdução

Em 26 de abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 760.931,2 por maioria de votos, e alterou o posicionamento da jurisprudência acerca da responsabilidade da Administração Pública quando do descumprimento das obrigações trabalhistas do empregador. Em síntese, a decisão do recurso extraordinário representativo de controvérsia, com repercussão geral, afastou a Súmula n. 331, V, do Tribunal Superior do Trabalho, e consignou nova tese a respeito do tema.

A relevância da decisão e, principalmente, da alteração do posicionamento prévio, dispensa grandes incursões, especialmente em uma coletânea destinada justamente para a questão da terceirização, magistralmente organizada pelo Prof. Marco Aurélio Serau Jr. Ocorre, porém, que esta decisão proporciona uma excelente oportunidade para se examinar a observância, pelos tribunais, do previsto no art. 926, do Código de Processo Civil, que consolida normativas de estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência.

Não se nega que uma Corte Superior, como o STF, pode reformar entendimentos consagrados pela jurisprudência. Afinal, tem o Supremo a função de guardar a Constituição da República Federativa do Brasil, a qual vem sendo compreendida contemporaneamente como a competência para definir a interpretação da Carta. Esta tese não será enfrentada neste ensaio. O que se pretende, aqui, é examinar se esse rompimento com entendimentos anteriores atende às exigências do próprio Direito, ou seja, se a decisão que rompe com os precedentes anteriores é adequada, do ponto de vista da argumentação jurídica (coerência e integridade), e se ela demonstra preocupação com a mudança do regime jurídico (estabilidade).

De modo a atender aos objetivos propostos, o ensaio se estrutura da seguinte maneira. Em primeiro lugar, serão examinados os principais pontos da decisão do Supremo Tribunal Federal, com especial enfoque nos argumentos que culminaram com a tese vencedora. Em seguida, realiza-se uma breve exposição sobre os princípios da jurisprudência, necessários para o enfrentamento do tema proposto. Ao final, o conteúdo da decisão será examinado à luz desses princípios, de modo a permitir uma reflexão crítica sobre a decisão da Corte.

2. A decisão do Supremo Tribunal Federal e a tese de repercussão geral de que a responsabilidade do Poder Público não é automática na terceirização

O Supremo Tribunal Federal admitiu recurso extraordinário interposto pela União Federal contra acórdão da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, no qual fora negado provimento a agravo de instrumento igualmente interposto pela União. A questão discutida é a existência e a natureza da responsabilidade da Administração Pública em virtude de débito de obrigações trabalhistas dos empregados terceirizados. Até então, o entendimento corrente sobre o tema encontrava-se consolidado nos incisos IV e V do enunciado da Súmula n. 331, do TST, cujo conteúdo é o seguinte:

IV– O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V– Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

O argumento da União Federal decorria da declaração de constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei n. 8.666/1993, pelo próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADC n. 16. Na decisão recorrida, porém, o TST afastou a incidência do referido

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dispositivo, com fundamento na Súmula n. 331, e considerou a União subsidiariamente responsável em relação aos deveres do tomador de serviços terceirizados. Pela confirmação da constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei n. 8.666/93, a União sustentou que a responsabilidade subsidiária não é imediata nem presumida, dependendo da prova da culpa in vigilando.

A relatora designada para o feito foi a Min. Rosa Weber, cujo voto integrou a divergência. Com ela, votaram os Ministros Celso de Melo, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Roberto Barroso. Do outro lado, a tese vencedora foi relatada pelo Min. Luiz Fux, acompanhado dos Ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio (com divergência acerca da tese fixada pela Corte). Trata-se, portanto, de um caso de maioria simples, ou bare majority, o que por si só suscita a preocupação da doutrina do Direito Constitucional.3

As próximas linhas compilam os argumentos da decisão, com enfoque na tese vencedora. O ponto central, portanto, é o voto do Min. Luiz Fux, relator designado para o acórdão.

A tese vencedora é mais objetiva e direta que a tese que restou vencida. Tanto é assim que o voto do Min. Luiz Fux tem apenas cinco laudas. Isto se deve ao fato de que a racionalidade da decisão decorre, justamente, de uma interpretação mais literal e de respeito à legislação e a um precedente do próprio Supremo Tribunal Federal. Na síntese do próprio Min. Luiz Fux, o STF julgou constitucional o art. 71, § 1º, da Lei n. 8.666/1993, que assim dispõe:

A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.

Na ótica do Min. Luiz Fux, se o referido dispositivo é constitucional e a decisão que confirmou sua constitucionalidade transitou em julgado, admitir uma interpretação contrária nas hipóteses de terceirização representaria uma contradictio in terminis. Isto se deve ao fato de que, ao se considerar que o dispositivo citado não é aplicável às questões trabalhistas e de terceirização, estar-se-ia afirmando sua inconstitucionalidade, ainda que parcial. Esta inconstitucionalidade não foi considerada quando do julgamento da ação declaratória de inconstitucionali-dade do art. 71, de modo que o entendimento que admite a responsabilidade da Administração Pública perante os empregados terceirizados viola coisa julgada da própria Corte.

O primeiro argumento do STF, portanto, é formal: há coisa julgada em favor da constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei n. 8.666/1993, do Supremo Tribunal Federal. Inviável, assim, a declaração parcial de inconstitucionalidade que se faz necessária para preservar o entendimento do enunciado de Súmula n. 331, do TST.

O segundo argumento também tem um ponto de partida formal. É que o art. 71, da Lei n. 8.666/1993, recebeu um § 2º, por força da Lei n. 9.032/1995. Este parágrafo admite a responsabilidade solidária da Administração Pública em relação aos encargos previdenciários, sem nada mencionar sobre obrigações trabalhistas. A razão para tanto é destacada pelo Min. Luiz Fux: “ela já cumpre, no momento da licitação, a observância da aptidão orçamentária e financeira da empresa contratada”. Em outras palavras, prever a responsabilidade subsidiária da União ou de outro ente público pelo pagamento das obrigações trabalhistas implica o duplo pagamento dessas obrigações por parte da Administração Pública: uma, na execução regular do contrato; outra, se o contratado não cumpre seus deveres. Ademais, se a previsão de responsabilidade subsidiária é explícita para os encargos previdenciários, não se pode presumir outras espécies de subsidiariedade não previstas em lei. Esta é, nas palavras do STF, a mens legis.

Ao argumento formal, soma-se uma questão de ordem econômica. Noticia-se no acórdão que os débitos oriundos de responsabilidade subsidiária dos entes da Administração Pública são “estratosféricos”. Não há, propriamente, uma conclusão a respeito deste ponto, mas o emprego do argumento parece significar que o STF não pretende contribuir para a majoração da dívida pública.

O pensamento do Min. Luiz Fux pode ser sintetizado pela seguinte passagem: “entendo que realmente foi intenção do legislador excluir a responsabilidade subsidiária, exatamente para evitar o descumprimento deste preceito que foi chancelado pelo Supremo Tribunal Federal”. Ele prossegue e conclui: “prestando essa deferência ao Legislativo, que me pareceu que houve aqui, na verdade, uma omissão eloquente para não criar a responsabilidade subsidiária, eu me encaminho no sentido de dar provimento ao recurso da União”.

A discussão prosseguiu, em outra sessão de julgamento, para definir a tese firmada em razão do julgamento. A questão que se colocou, nesta oportunidade, foi o cabimento de uma cláusula de excepcionalidade ao que foi

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decidido. Em outras palavras, discutiram os ministros se há alguma hipótese em que a Administração Pública possa ser responsabilizada. Por observação da Min. Rosa Weber, o STF resgatou que, quando do julgamento do art. 71, da Lei de Licitações, ficou consignada a possibilidade de responsabilização caso se constate culpa da Administração Pública. Ainda, frisou que “essa questão era muito pacífica”.

Em meio às discussões, vale destacar a manifestação do Min. Ricardo Lewandowski, que manifestou sua preocupação justamente com o...

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