A precarização do trabalho dos profissionais da área da saúde. O projeto mais médicos para o Brasil, a residência médica e a atuação dos órgãos de proteção ao trabalhador

AutorHenrique Correia - Vivian Ferraz de Arruda Salvador
CargoProcurador do Trabalho (MPT). Professor de Direito do Trabalho no Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS) - Graduanda da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
Páginas307-335

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Introdução

Ganhou destaque no cenário nacional a questão da precarização das relações de trabalho dos proissionais da área da saúde, especialmente após a polêmica que envolveu o Programa Mais Médicos, cuja iniciativa engloba o Projeto Mais Médicos para o Brasil, consistente na chamada de médicos - brasileiro e estrangeiros - para a atuação em regiões prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS).

Inserido nesse contexto, o presente artigo propõe a abordagem de dois assuntos intimamente relacionados ao direito à saúde e, portanto, de estrema importância ao Poder Público. São eles: o Projeto Mais Médicos para o Brasil e a Residência Médica.

Ressalta-se, inicialmente, que todas as políticas públicas voltadas ao sistema de saúde devem ser valorizadas e implementadas. A criação de novas vagas de especialização, bem como a destinação de médicos para o interior dos estados e periferia de grandes cidades são medidas muito importantes para toda a sociedade.

O presente estudo não questiona essas excelentes intenções e programas. A inalidade dessas medidas é incontroversa. Entretanto, não há interesse público que contrarie a legislação. Não se pode utilizar do fundamento de que é atividade essencial à população para afrontar normas básicas da Constituição, da legislação e, ainda, colocar em risco direitos básicos dos trabalhadores.

Portanto, questiona-se se o Projeto Mais Médicos, moldado como curso de especialização, mediante a integração ensino e serviço, estaria a camular típica relação de trabalho com a Administração Pública, sem, contudo, a realização de concurso público, em patente descumprimento do art. 37, inciso II, da Carta Magna.

E não é só. Críticos apontam que o Projeto, ao intermediar a parti-cipação dos médicos cubanos, estimula a terceirização de mão de obra, prática historicamente rechaçada pela ordem jurídica laboral brasileira, ante sua íntima relação com a precarização dos direitos do trabalhador. Ade-mais, nesse compasso, registram que o tratamento conferido aos proissionais cubanos consubstancia patente afronta à dignidade da pessoa humana.

Assim, como no caso do Programa Mais Médicos, polêmicas acerca da precarização das relações de trabalho dos proissionais da área da saúde são notórias na residência médica. Consubstanciada como modalidade de ensino, sob a forma de curso de especialização, os residentes são subme-tidos à jornada de trabalho excessiva e desgastante e, não raras vezes, aplicados com o im de substituir proissional médico.

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Diante disso, o presente trabalho, considerando o primado da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, enfoca a precarização da atividade médica, especialmente a partir da precarização do Projeto Mais Médicos e da atuação dos residentes médicos, abordando as diiculdades e ilicitudes que rondam esses sistemas.

Analisa, por im, a possibilidade e os limites da atuação do Ministério Público do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Sindicato da Categoria Proissional e da Justiça do Trabalho, com objetivo de tutelar a dignidade e os direitos sociais desses proissionais da saúde, tanto no aspecto coletivo e quanto no individual.

1. Projeto mais médicos para o brasil

Instituído pela Medida Provisória n. 621/13, convertida na Lei n. 12.871/131, o Programa Mais Médicos, a partir do Projeto Mais Médicos para o Brasil, visa, precipuamente, a enfrentar a escassez de médicos em regiões carentes do País2.

A falta de proissionais da área de saúde, especialmente médicos é um dos grandes problemas vividos pelo sistema público de saúde do país.

Nos termos da Lei3, terão prioridade na ocupação das vagas ofertadas no âmbito do Projeto, os médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País, os médicos brasilei-ros formados em instituições estrangeiras com habilitação para o exercício da Medicina no exterior e, por im, os médicos estrangeiros com habilitação para exercício da Medicina no exterior.

O Projeto é polêmico e divide opiniões, especialmente no que tange à constitucionalidade da contratação, desprovida de concurso público, dos médicos estrangeiros pelo Governo Federal; à natureza jurídica desses contratos; às condições de trabalho concedidas aos médicos estrangeiros; e, por im, à contratação diferenciada, intermediada pela Organização Pan Americana de Saúde (Opas), dos médicos cubanos. São pontos que merecem especial atenção.

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1.1. O direito à saúde e o projeto mais médicos

Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, o direito à saúde - que engloba o bem-estar físico, mental e social - consagrou-se como direito social e fundamental, conforme previsto no art. 6º da Carta Magna4.

Com vistas à concretização desse direito, consagrado, no art. 196 da CF/885, como "direito de todos e dever do Estado", o Governo Federal criou, por meio da Medida Provisória n. 621/13, o Projeto Mais Médicos, a im de melhorar o atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando o número de médicos nas regiões carentes do Brasil.

Instituído como uma modalidade de especialização6, o Projeto Mais Médicos para o Brasil consistiria numa etapa de formação proissional do médico, voltada para o aperfeiçoamento do trabalho médico na atenção básica no SUS.

A atenção à proissionalização justiicaria a ausência de direitos trabalhistas destinados aos médicos participantes do Projeto, além da remu-neração de R$ 10 mil por mês em formato de bolsa federal. Nesse cenário, conforme preceitua o art. 17 da Lei n. 12.871/13, as atividades desempe-nhadas no Projeto não criam vínculo empregatício de qualquer natureza.

Contudo, em que pese a tentativa de afastar vínculo com o Governo Federal, o Mais Médicos abarca características de típico emprego ou cargo público, conforme se analisará em seguida.

1.2. A contratação sem concurso público

Alvo de ferrenhas críticas, a Lei n. 12.871/13, instituidora do Programa Mais Médicos, estabeleceu, em seu art. 17, que "As atividades desempe-nhadas no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil não criam vínculo empregatício de qualquer natureza".

A Lei visualizou o Projeto como uma modalidade de especialização, ou seja, de aperfeiçoamento dos participantes, voltado ao trabalho médico de atenção básica no SUS, mediante recebimento de bolsa federal.

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De fato, a jurisprudência trabalhista é pacíica no sentido de afastar o vínculo empregatício nas hipóteses de especialização sob a responsabilidade de instituição de saúde e sob a orientação de médicos de elevada qualiicação ética e proissional.

Assim também o seria no caso do Projeto Mais Médicos para o Brasil, se não houvesse patentes indícios de que a especialização em atenção básica conigura, em verdade, mera aparência para a concretização do real objetivo do Projeto: "enfrentar a falta de médicos em determinadas regiões a partir de políticas de atração de médicos"7.

Nesse sentido, aliás, é a redação do art. 1º, logo em seu inciso I, da Lei instituidora do Programa, in verbis:

Art. 1º É instituído o Programa Mais Médicos, com a inalidade de formar recursos humanos na área médica para o Sistema Único de Saúde (SUS) e com os seguintes objetivos:

I - diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a im de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde; [...].

Assim, os proissionais participantes do Projeto serão selecionados para exercer atribuições precípuas de médicos concursados; a diferença é que aos primeiros caberá a atuação na atenção básica do SUS em regiões do Brasil onde há a carência de proissionais da saúde.

Com isso, tenta-se afastar típica relação de emprego sob o fundamento de que os participantes do Projeto submeter-se-iam a cursos de especiali-zação ofertados por instituição pública de educação superior.

Em que pese a natureza jurídica de especialização conferida ao Projeto pela Lei n. 12.871/13, o que se vislumbra, de fato, é a contratação de proissionais capacitados para a prestação de assistência médica - não há, pois, curso de especialização -, numa jornada de 8 (oito) horas diárias, com intervalo para almoço. Repita-se que estamos diante de típica relação de emprego, em consonância com o princípio da primazia da realidade.

E, de fato, presentes todos os requisitos da relação empregatícia, a saber: pessoa física, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Ora, os médicos participantes do Projeto, pessoas naturais, prestam serviços de forma contínua, mediante remuneração (denominada bolsa-auxílio) e su-bordinados às regras e orientações moldadas pelo Poder Público brasileiro, verdadeiro empregador.

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Frise-se que o Projeto não tem por inalidade complementar a formação do médico dele participante, uma vez que envolve a contratação de médicos devidamente capacitados, experientes e qualiicados para o exercício da medicina em regiões que sofrem com a carência desses proissionais da saúde.

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