Praticas insolentes: Praticas sexuais desviantes e potencia juridico-politica/Impertinent practices: Deviant sexual practices and legal-political force.

AutorFonseca, Angela Couto Machado

1 Introducao: preocupacoes incontornaveis.

Existe abundante bibliografia que trata o Direito como instrumento politico de normalizacao dos corpos e da sexualidade. (1) Assim como a literatura medica, a regulamentacao dos prazeres mediante estruturas juridicas, e pensada como vetor de atuacao do dispositivo da sexualidade (2). Por outro lado, com a ascensao de movimentos sociais feministas e LGBT, sobretudo a partir das decadas de 1960, o direito passou a ser um campo de disputa por aqueles que buscavam maiores liberdades civis no campo reprodutivo e sexual.

Com a onda de libertacao feminina, muitas teoricas fizeram do genero e da sexualidade seu campo de estudo, e trouxeram definitivamente questoes politicas, historicas, culturais e sociais para o que se insistia em manter fechado no campo do biologico ou da natureza. Figuras do masculino e feminino na sociedade, da ruptura com os orgaos sexuais e a relativizacao dos generos se destacaram como verdadeiros problemas de pesquisa nas ciencias humanas, em grande parte alimentadas por correntes construcionistas (3). Alem, mais que objetos de publicacoes, os questionamentos viriam a embasar transformacoes politicas, pautadas na disputa por direitos e na provocacao de reconhecimento tambem pela via legal, visando a garantia minima de igualdade e diversidade no ambito juridico. A dimensao juridica, assim, e disputada por leituras aparentemente diversas, vindo a representar tanto enclausuramento, quanto espaco para alcancar conquistas.

A titulo de exemplo, Roger Raupp Rios (2006), compreendendo as tensoes existentes entre a visao do direito como forma de normalizacao e o direito como objeto de busca e conquistas no que se refere a sexualidade, defende uma leitura constitucional dos direitos sexuais, estruturando-os a partir dos principios fundamentais da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana. Como se vera adiante, nao se faz somente uma leitura da sexualidade conforme os direitos constitucionais, mas uma efetiva ampliacao do ordenamento juridico com base na liberdade sexual com igual respeito e consideracao.

Em outro espaco, destacado do juridico - embora, por vezes, afirmando timidas aproximacoes - teoricos das problematicas de genero, como Paul Preciado, por exemplo, realizam uma critica mais decisiva em face da normalizacao dos corpos, sem mediar a luta por direitos como atuacao que eventualmente possa desarticular os sentidos enclausurantes da normalizacao. Em posicao corajosa porque dissidente, afirma que uma sociedade radicalmente avessa a ideia de genero nao conhece limitacoes a disposicao sexual dos corpos. Assim, contratos contrassexuais poderiam ser livremente celebrados a fim de garantir a relacao consensual na busca do prazer, ainda que se sujeitem ao crivo social das denominadas "praticas desviantes".

Considerando o esbocado acima, entendemos que a tensao vista entre direito como normalizacao e direito como conquista, pode remeter a um dualismo de carater intransponivel, no qual acabamos por estabelecer uma leitura que configura um "ou, ou...", cuja normalizacao ganha carater inexoravelmente negativo e a busca por direitos, carater positivo. Em nossa perspectiva, tal arquitetura nao apenas engessa pela pre-compreensao estabelecida aquilo que a pratica poderia mostrar de dissonante, como tambem propoe leitura simplista da propria nocao de normalizacao.

Nossa proposta seria a de pensar o movimento, a relacao entre normalizacao e busca por direitos, nao fixando-os como contrarios ou contraditorios, mas como realizadores de um circuito. A busca por direitos nao e a saida ou o avesso da normalizacao, e uma forma de contestar os modos da normalizacao para que ela seja reconstruida em outras bases (esperancosamente mais branda, mas ainda normalizacao, ja que e um contorno subjetivo estabelecido). Mais que isso, ser positivo ou negativo nao reside em nenhum proprium do que normalizacao ou busca por direitos sao; reside no que realizam - so se torna visivel em praticas concretas. Procedimentos de normalizacao podem operar de modo positivo ou negativo (novas normalizacoes, ainda que sejam normalizacoes, podem destituir formas previas mais rigidas), assim como a busca por direitos pode ser positiva ou negativa (quando grupos organizados da sociedade civil pressionam para aprovacao de projetos de lei sobre as condicoes de admissibilidade do aborto, por exemplo, essa busca por direitos pode pretender maior controle sobre o corpo feminino).

E, finalmente, sobre a leitura simplista de normalizacao. Temos que se trata de processos de subjetivacao e gestao. O ja celebre tema do controle, geralmente acionado nesse campo de discussao, precisa ser posicionado nao como controle de subjetividades pre-existentes, mas relativo aos procedimentos de producao mesma dessas subjetividades e sua cristalizacao. Assim, a normalizacao apresenta esse carater produtivo (que nao e originalmente nem positivo ou negativo) e pode se realizar tambem na busca por direitos, que ao resistir a certas formas de normalizacao, acabam por propor outras e revelam esse circuito constante de deslocamentos realizados pela relacao entre ambos.

Nesse trilho, expoe-se a seguinte questao-problema: "ha a possibilidade das praticas sexuais minoritarias, em suas demandas por direitos, realizarem resistencia que permita a ressignificacao de subjetividades normativas pela producao normativa? (4).

De antemao, levantamos como principal hipotese a partir da bibliografia trabalhada, que praticas e teorizacoes acerca da sexualidade e genero afetam sobremanera a construcao politico-juridica da sociedade e realizam continuos movimentos nas fronteiras das subjetividades normativas. Acreditamos que o Direito se apresenta como local de disputa de significados e de producao/gestao de praticas, constituindo-se como um observatorio privilegiado da relacao entre normalizacao e suas reconfiguracoes na disputa por direitos, em especial no terreno da sexualidade.

2 Praticas sexuais desviantes: as producoes de conceitualizacao.

Partimos de uma perspectiva foucaultiana a partir da qual conceituar o que se entende por "praticas desviantes" trata menos de um esforco de recobrir um significado proprio e verdadeiro de tais praticas e mais da atencao sobre o proprio conceito como situado no interior de um regime de verdade e praticas de poder. A locucao que reune a nocao de praticas sexuais a qualidade desviante, toca em duas atividades: uma de naturalizacao das praticas sexuais e outra de reconhecimento propiciado por esse lugar natural, de suas formas outras, ditas "desviantes". Os registros dos discursos medico, biologicos e tambem juridicos realizam tais atividades produzindo, sinalizando e tratando uma esfera sexual marginalizada. Mais que isso, se a sexualidade e as praticas sexuais sao retiradas do espaco da natureza, aparece a preocupacao em compreender como suas classificacoes produzem tipos de subjetividades (normais ou desviantes) e como a sexualidade se constitui em criterio de revelacao da verdade sobre o sujeito (FOUCAULT, 1988).

Para Michel Foucault, a sexualidade germina nas palavras pelos idos da antiguidade tardia. Teriam sido os estoicos, mestres na negacao do prazer carnal e na vida levada com austeridade, os primeiros a reprimir a pratica sexual como algo absolutamente imoral. Nesse momento, o individuo que buscasse a verdade deveria se afastar e abdicar de todo gozo. Tem-se, portanto, uma previa negacao da sexualidade com os helenicos. (FOUCAULT, 2004)

Tal interpretacao, contudo, nao desloca a importancia do cristianismo em aprofundar as discussoes etico-filosoficas acerca da sexualidade. Se no periodo romano houve uma censura dual entre prazer versus rigor, a queda do imperio possibilitara uma preocupacao com as praticas de prazer. Isso significa que o discurso se destinara nao apenas ao sexo, mas as praticas sexuais e sua organizacao. Em exposicao sumaria, o confessionario e os mosteiros se apresentam como principais mecanismos para o ensino e a instauracao de uma sociedade pastoral: uma sociedade obediente, com uma moralidade sexual direcionada absolutamente para a reproducao, monogamica e reservada no intimo da familia. Nesse sentido, nao seria uma sexualidade proibida,

mas a colocacao em acao de um mecanismo de poder e de controle, que era ao mesmo tempo um mecanismo de saber, de saber do individuos, mas tambem de saber dos individuos sobre eles proprios e em relacao a eles proprios. (FOUCAULT, 2006, p. 72) Na modernidade, o discurso sexual ganha nova amplitude com o alinhamento das praticas eroticas ao saber medico. Aqui houve um hiperdesenvolvimento do discurso, colocando a sexualidade em patamar de teoria, de ciencia, enfim, como um saber. O nascimento de uma scientia sexualis e o desejo de se descobrir a verdade sobre o sexo, contudo, nao tem em Foucault um carater libertador (FOUCAULT, 1988). Com as incursoes de Freud, acreditou-se que boa parte do sofrimento ocidental advinha da ausencia de se pensar a sexualidade e que os discursos vencidos pela historia se fundavam em mitos irracionais, afetivos e erroneos. Houve uma nova afirmacao e uma intensa producao cientifica na tematica do erotico, mas sobretudo da normalidade e da perversao. (FOUCAULT, 2006)

Ao fundar as praticas sexuais normais, o discurso medico acabou por encaixar uma serie de praticas dissonantes dentro no campo da anormalidade, da perversao e da doenca. A titulo de exemplo, vale lembrar que ate meados dos anos 1990 falava-se em "homossexualismo" e casais gays eram tidos como doentes. Nos moldes da scientia sexualis o saber cientifico coloca num eixo de coerencia sexo, identidade de genero e identidade sexual, como necessario a normalidade e como criterio de medida da anormalidade quando rompida essa sequencia "logica". Nesse sentido, a sexualidade somente poderia se expressar atraves e segundo autoridades de tais saberes.

No ambito politico-juridico, as politicas da sexualidade tiveram como foco os entes...

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