O potencial da ação regressiva acidentária como instrumento de mudança de paradigma: a primazia da prevenção dos infortúnios laborais

AutorAdriano Jannuzzi Moreira e Aline Carneiro Magalhães
CargoMestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos/Doutoranda e Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas17-33

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1. Introdução

A temática relativa à proteção da saúde e segurança não é nova, podendo, inclusive, ter seu fundamento encontrado na Bíblia: "quando você construir uma casa nova, faça um parapeito em torno do terraço, para que não traga sobre a sua casa a culpa pelo derramamento de sangue inocente, caso alguém caia do terraço." (Deuteronomio 22: 9)

A despeito de existirem já há algum tempo no ordenamento jurídico normas sobre saúde e segurança, especificamente, no trabalho, podemos identificar o incremento dos estudos e debates sobre o tema nas últimas décadas, quando se constatou o elevado número dos acidentes do trabalho no Brasil e seus deletérios efeitos - repercussões psicológicas, económicas, sociais e previdenciárias - para a toda a sociedade.

Esta, na contemporaneidade, apresenta características muito peculiares, a exemplo da lógica do descarte, em que bens, pessoas, relacionamentos e valores são passíveis de fácil desfazimento. A sociedade hoje tem traços muito marcantes e se encontra em uma fase de transição entre o despojamento de velhos conceitos, referenciais e paradigmas e a busca de novos2.

Neste contexto, podemos perceber que muitas empresas se valem desta lógica em relação a seus funcionários e aos infortúnios laborais, ou seja, ela utiliza de forma extenuante sua mão de obra e a submete a um ambiente de trabalho insalubre e perigoso e caso o obreiro seja vítima de um acidente do trabalho ela simplesmente o devolve (debilitado) para a sociedade se limitando a pagar indenizações que não trarão de volta a vida, a saúde, a integridade física e mental ou a capacidade para o trabalho.

Esta postura patronal, que vigorou por muito tempo e ainda está presente em nosso cotidiano, paulatinamente vem sendo cada vez menos tolerada pelos atores sociais, cientes de que certos valores e bens - vida, saúde e integridade - não se coadunam com o ressarcimento pelo equivalente pecuniário, mas, ao contrário, precisam ser conservados e protegidos.

Sob este enfoque, começa a ser desenvolvida a ideia de que é preciso evitar a ocorrência do acidente, em especial, porque há estudos que comprovam que a sua maioria é passível de prevenção3.

Delineado o cenário, vêm sendo buscados instrumentos para fazer com que o empregador

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mude sua postura, sendo o desafio a quebra do atual paradigma centrado na monetização da saúde do trabalhador para a adoção de uma gestão de prevenção. Para tanto, utiliza-se exatamente o mesmo móvel económico tão caro à atividade empresarial.

Pela majoração de custos para o empregador desidioso no cumprimento das normas de saúde e segurança pretende-se que ele passe a seguir uma nova postura, adotando medidas para a manutenção de um meio ambiente do trabalho saudável e seguro, livre de infortúnios4.

A Ação Regressiva Acidentaria (ARA) prevista no art. 120 da Lei n. 8.213/91 vem sendo utilizada com esta finalidade e por seu potencial transformador passa a ser objeto de análise e discussão.

O problema dos infortúnios laborais deita seus efeitos na seara previdenciária, diretamente afetada na medida em que custeia os benefícios acidentários e aposentadorias especiais.

A despeito da cobertura destes riscos ser a finalidade desta espécie de seguro social e para isto ele é financiado, inclusive pelas empresas, tal fato não se apresenta como um permissivo para que o empregador passe ao largo das normas de saúde e segurança.

O móvel da referida ação é estimular, pelo aumento de custos, que a empresa adote uma postura preventiva, evitando a ocorrência dos acidentes do trabalho e doenças ocupacionais, promovendo, assim, a saúde e integridade do trabalhador e, em última análise, os princípios da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho insculpidos na nossa Constituição e sob a égide dos quais a legislação infra-constitucional deve ser criada, interpretada e aplicada.

A mudança de paradigma vai ao encontro destes princípios, fundamentais na nossa sociedade, que necessitam de efetividade, ou seja, gerar efeitos concretos no mundo dos fatos.

Assim, traçado esse panorama geral, no presente trabalho analisaremos alguns dados sobre os acidentes do trabalho e suas repercussões. Em seguida, abordaremos a saúde e segurança do trabalhador sob o prisma normativo. No tópico subsequente, analisaremos a Ação Regressiva Acidentaria e, por fim, teceremos algumas considerações sobre a prevenção e traçaremos um paralelo com a referida ação.

Tudo para que, ao final, possamos demonstrar que a ARA é um dos instrumentos previstos na legislação pátria com potencial para gerar uma mudança de mentalidade, a fim de que o empregador passe a adotar uma cultura de prevenção dos acidentes do trabalho, promovendo um ambiente de trabalho seguro e saudável para seus empregados como forma de, em última análise, dar concretude aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho.

2. Dados sobre a infortunística laborai no Brasil e suas repercussões

A análise de dados estatísticos é importante porque nos permite ter uma melhor dimensão de determinado problema e auxilia no direcio-namento de políticas para seu enfrentamento.

No que tange aos infortúnios laborais, o seu tratamento em números é exigência de diversas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificadas pelo Brasil5.

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No nosso país, os números nos mostram o quão grave é o problema, o que faz com que ocupemos a terceira posição dentre os países do G206 em quantidade de acidentes do trabalho, perdendo apenas para China e índia7.

De acordo com os Anuários Estatísticos de Acidentes do Trabalho do Ministério da Previdência Social e do Ministério do Trabalho e Emprego dos últimos anos8, em 2009, em um mercado com 41.207.546 trabalhadores formais, ocorreram 733.365 acidentes do trabalho, sendo 424.498 acidentes típicos, 19.570 doenças do trabalho e 2.560 acidentes fatais9. Em 2010, com 44.068.355 trabalhadores formais, ocorreram 709.474 acidentes do trabalho, sendo 417.295 acidentes típicos, 17.177 doenças do trabalho e 2.753 acidentes fatais. Em comparação com o ano anterior, aumentou o número de trabalhadores formais e caiu o número de acidentes típicos e doenças ocupacionais, entretanto, o número de óbitos foi majorado.

Já, no ano de 2011, o mercado de trabalho contava com 46.310.631 trabalhadores formais e ocorreram 711.164 acidentes do trabalho, sendo 423.167 acidentes típicos, 15.083 doenças do trabalho e 2.884 acidentes fatais. Em comparação ao ano anterior, aumentou o número de trabalhadores formais, o número de acidentes típicos e fatais. A quantidade de doenças ocupacionais apresentou queda.

Por fim, em 201210, foram registrados 705.239 acidentes do trabalho, sendo 423.935 típicos, 14.955 doenças ocupacionais e 2.717 acidentes fatais, todos os números inferiores em comparação ao ano anterior, o que pode representar avanço no trato do problema, mas,

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ainda, não no nível aceitável para o século XXI em um país que vive sob a égide de uma Constituição fundada nos princípios da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho.

Metaforicamente, no que tange ao número de óbitos, é como se todo mês caísse no Brasil um avião com 223 passageiros. Se aqueles números "frios" de vítimas fatais de acidentes do trabalho podem não nos dar uma dimensão concreta do problema, esta metáfora pode, na medida em que conseguimos mensurar plenamente a grandiosidade e consequências de vários desastres aéreos nestas proporções11.

Os acidentes laborais, aqui traduzidos em números, geram deletérios efeitos em toda a sociedade, podendo ser identificadas repercussões psicológicas, económicas, sociais e previ-denciárias.

Os acidentes podem causar estresse pós--traumático e depressão. A vítima começa a se lembrar constantemente do infortúnio e reviver os momentos de dor, medo e tristeza. Ela pode apresentar fadiga, transtornos neuróticos, temores, insegurança, perda da autoconfiança, rebaixamento da autoestima, em especial, quando o acidente provoca lesões estéticas, perda ou redução da capacidade para o trabalho. Os mesmos sintomas são experimentados pelas pessoas que convivem com a vítima de acidente fatal12.

Sob a perspectiva económica, bilhões são gastos em decorrência do infortúnio. A empresa arca com altas indenizações por danos materiais, morais e estéticos, além de multas aplicadas pela fiscalização do trabalho e o pagamento do salário nos primeiros quinze dias de afastamento previdenciário. O Estado gasta com atendimento médico-hospitalar da vítima. A família arca com os custos decorrentes do cuidado com o acidentado e pode ficar em situação financeira delicada pela perda do seu provedor. O acidente gera a interrupção da produção, gastos com o socorro, afastamento e substituição de trabalhadores, perda de equipamentos e materiais. A imagem da empresa fica desgastada perante os próprios empregados e terceiros. De acordo com José Pastore, os acidentes do trabalho geram um custo anual estimado de 71 bilhões de reais13.

As repercussões sociais do infortúnio também são inúmeras, a exemplo, da perda de população economicamente ativa, que sai do mercado de trabalho em virtude de morte ou perda da capacidade laborai. A maior parte dos acidentes tem como vítima, jovens de 25 a 29 anos (e terceirizados, vale a pena ressaltar)14 ou seja, aqueles que estão iniciando e consolidando

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sua vida profissional15 e, de maneira abrupta, são retirados do mercado de trabalho e passam a maior parte...

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