Post Mortem do bem jurídico-penal

AutorAntonio Araújo
Páginas117-136

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Nos idos de 1989, organizou-se primoroso catálogo: Goya and the spirit of Enlightenment (SÁNCHEZ et al., 1989). Esforço admirável, já que a intenção era homenagear o bicentenário à morte de

Carlos III, autêntico “monarca esclarecido” do século XVIII. Esse mesmo catálogo traz um Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) submerso em luz e melancolia, perpassando, transbordando as preocupações racionalistas de seu tempo.

O gênio artístico de Goya se viu numa encruzilhada entre a fé racional -iluminista e a barbárie da guerra (trazida pelo invasor francês, justificada em nome daquela razão). Erguendo-se de um corpo gradativamente absorvido por doenças, sua arte constitui uma das mais importantes reflexões sobre o projeto de racionalidade para o mundo, engendrado pelo século XVIII.

E sobre as peripécias de uma liberdade territorialista, a expelir melodiosos rouxinóis nascidos em cativeiro. Dama que não é balzaquiana, ou A Mulher de Trinta Anos (BALZAC, 1998), só a reencarnação perversa do flautista à Stairway to Heaven (LED ZEPPELIN, 1971): “Then the piper will lead us to reason”.

Goya é um pintor que celebra a razão libertária, elevando-a. E os testemunhos disso são numerosos por sua obra. Como em 1799, quando ele produz uma série de gravuras intitulada Caprichos, fruto de imaginação solta (cf. ARGAN, 1992, p. 40-43). Destaca-se, aqui, A enfermidade da Razão: seus contornos expõem nobreza inútil, presa a brasões, alimentada pelos servos. Já a paisagem arquitetônica imponente e impotente lembra a de castelos (Figura XVII).

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Esse desenho amadureceu, é preparatório à gravura central da aludida série, a mais célebre de todas; e a única que traz uma inscrição (Figura XVIII): El sueño de la razón produce monstruos.

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Como quase nenhum outro intelectual e artífice de seu tempo, Goya também aderiu, personificou em amplitude simbólica o espírito revolucionário (enciclopedista) de consumação latinocriminal da era moderna, embasado no bem neoclássico maior: a liberdade baioneta, padroeira, mensageira, uniformizada. Eis um dos hiperlinks ao Século (XVIII) das Luzes.

Tanta luz, hipérbole, niilismo40ofuscaram, contudo, a envergadura teorética e cosmovisão de Goya: maestro, núncio inquisidor, pastor do moderno ideal libertário. Que, ademais, é tubo de ensaios; uma esfinge, labirinto incógnito de tentativas, erros, desconfianças.

— O que Bazárov é? — sorriu Arkádi.

— Tio, o senhor quer que eu lhe diga?

— Faça-me esse favor, meu sobrinho.

— É um niilista.

— Como? — perguntou Nikolai Petróvitch.

— Ele é um niilista — repetiu Arkádi.

— Niilista — disse Nikolai Petróvitch. — Vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto, essa palavra designa uma pessoa que... que não admite nada?

— Digamos: que não respeita nada — emendou Pável Petróvitch.

— Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico — observou Arkádi.

— E não é a mesma coisa? — indagou Pável Petróvitch.

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— Não, não é. O niilista é uma pessoa que não admite nenhum princípio sem provas. (TURGUÊNIEV, 2004, p. 56)

Não é cômodo, fácil ou aconselhável simplesmente discordar, dissentir do estupefato camarada Ivan Turguêniev, mago que veleja a imensidão turbulenta e sinuosa do romancismo político, singrando aparências ou recipiente probatório fútil, oco, vazio de conteúdos: “Estamos en plena cultura del envase. El contrato de matrimonio importa más que el amor, el funeral más que el muerto, la ropa más que el cuerpo, y la misa más que Dios. La cultura del envase desprecia los contenidos” (GALEANO, 1996, p. 441).

O martírio de Goya evangelizou o que viria a tecer um prevaricador credo racional-iluminista, autoengano daquele monstruoso romantismo ou pós-neoclassicismo autossustentado. E fê-lo postulando o inconsciente coletivo-dominus de então, a velha textura e ordem dos proprietários — liber-dade de se «ter» ideias —, legitimada (ponto de inflexão) não mais através da Providência, mas por intermédio do Progresso: barítono autodidata, que é instrutor ou preceptor de si.

O poder troca de botas: os donos da Criação, e a sua kafkaniana inquisição do pensamento cedem lugar aos da Produção, que também castra, infirma, policia a imaginação criativa. A ponto de vivermos como plágio, pudor, marcha de pupilos autômatos. Ou soldadinhos de chumbo refratários à quelação ética, insubordinados, juridicamente obesos e aquartelados em baia de cavalariça, hípica, cocheira, estribaria, caserna..., alojamento de esbulhos.

Ah, o álibi progressista (liberal) da simpática performance, rentabilidade, produtividade, rendimento, desempenho autopoiesis. Cuja regulação ostensiva, em maior ou menor escala, coube ao Estado Constitucional de Direito e sua laico-chantagem, nos quais liberdade, emancipação, democracia são valores, feudos, haveres ou bens anoréxicos, transgênicos, customizados, regíveis penalmente. Eficácias de alta resolução (disfunção) atlética e imoral, monótonas, que não contemplam ruína ou resquício arqueológico da retratação, remorso, arrependimento eficaz.

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O lisonjeiro dueto Busato & Huapaya (2007, p. 29-39) escreve com aguda precisão e cavalheirismo, influenciado por Bustos Ramírez:

A opinião majoritária considera que a missão do Direito Penal é a de proteger bens jurídicos [...]. Para imposição de uma pena se exige a lesão ou o perigo de lesão a bens jurídicos tutelados pela lei (conceito material de delito). Entretanto, o princípio da necessidade da intervenção corre o perigo de ser demasiado abstrato e vago, pelo que requer uma base concreta de sustentação, que assinale quais são as balizas e limites fundamentais do sistema. Assim, não basta o princípio da necessidade da pena. Resulta indispensável apontar o que é efetivamente protegido, problema que a teoria penal tentou solucionar mediante o desenvolvimento da teoria do bem jurídico. O princípio do bem jurídico estabelece um limite ao poder punitivo estatal, pois impede que se estabeleçam delitos e penas que não tenham em sua estrutura de base a proteção a um bem jurídico.

No que tange os bens jurídico-penais, imputam-se-lhes amiúde as funções: [i] dogmático-tipificadora (crime é lesão ou exposição a risco do bem tutelado); [ii] sistemático-hierarquizante (desde o bem vida, guardando proporcionalidade com o nível de ofensa); [iii] exegético-integrativa (a conferir higidez ao micro/macro ordenamento, validando-o em seus dogmas, teleologia, motivos, intenção do legislador, etc.).

A propósito, esclarecem Cobo del Rosal e Vives Antón (apud BUSATO e HUAPAYA, 2007, p. 61) que tal ocorre, p. ex., “nos Códigos Penais peruano e brasileiro, atendendo à disposição liberal que seguem suas Cartas Fundamentais [...]”.

Já vimos que essa delegação liberal-constitucionalizada é a seita matriz, singularidade, genótipo das veementes formas parentais bem jurídico (tese) e constitucionalismo discursivo (antítese). De maquinário, navegação, maquinação feita alhures, transatlântica. Proa de caravela, destroyer, corsário pirata e não condizente, que desdenha, mutila a cabotagem ou inquietude ameríndia — uma centelha, “interestelar canoa” (VELOSO, 1981), cachalote “Moby Dick” a embrenhar-se no filisteu golias baleeiro dos illuminati.

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E mesmo agora, que o liberalismo extrapolou, globaliza-se, contrariando previsões weberianas, Roxin (2007, p. 447) negligencia a ideologização estrutural dos bens jurídicos: “A essa questão, Claus Roxin procura responder com base em alguns parâmetros gerais. Em primeiro lugar, defende a ilegitimidade de normas penais que sejam exclusivamente motivadas por concepções ideológicas” (BECHARA, 2009, p. 24-25).

Séculos antes, Francisco de Goya suplicou, preconizou em louvação a falácia do bem penal-constitucional supremo. Uma liberdade repleta de Iluminismo, testosterona e, afinal, Coca-Cola. Por conseguinte, mas sem que um Goya penalista o intuísse, encharcada ou infestada, digo, infectada de acintoso liberalismo econômico pós-mercantil, de conveniências.

Os defensores extremados do livre-comércio [...] concebiam (a economia pura) como um retrato adequado da realidade “natural”, isto é, da realidade não perturbada pela estupidez humana — e prosseguiam visando a estabelecê-la como um imperativo moral, como um válido ideal normativo —, enquanto que ela é apenas um tipo conveniente, a ser usado na análise empírica. (WEBER, 1969, p. 44)

Palanque a estilhaços liberais que navalham, o bem jurídico liber-dade é, ainda, cortesã À sombra das raparigas em flor (PROUST, 1981), numa orgia de vantagens dilacerantes, exegeses interinas e conjunções adversativas. É releitura tremendamente sofisticada, ou a versão iluminista de O Príncipe (MAQUIAVEL, 1996), sujeito às intempéries de tamanha fissão, adaptação e corrupção ideológicas. É prece inidônea, cortejo fúnebre, “Missa de Réquiem” não por Giuseppe Verdi, e sim da livre produção41 ao ser livre.

A esse respeito, Bechara (2009, p. 24) demonstra que a noção de bens não é repentina. Foi gestada no “modelo do Estado liberal, tendo por base a ideia do contrato social de Rousseau”. Tavares (2000, p. 17) arremata, elucidando: “através da evolução do conceito de bem jurídico se pode

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apreciar que sua criação não é produto de uma elaboração jurídica pura, mas também de um contexto político e econômico”.

Um “contrato social” desolador, estarrecedor, decepcionante, que escoa pacto de adesão em pele ou embalagem sinalagmática. Crucigrama recreativo, passatempo onde só nos resta assentir, aquiescer, preencher a pequinesa de quadriláteros brancos, regulares, suprematistas42e supremacistas, pré-direcionados, premeditados, deliberados; preencher valas, câmaras, pavilhões de aclimatação e condolência liberais.

Se se tolera a descarga e descarte de potências ou embriões supranumerários (reserva extrativista)...

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