Será possível uma convergência regulatória e fiscalizadora das instituições financeiras no mercosul?

AutorDan M. Kraft
Páginas183-202

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I - Introdução

Inicialmente, quando pretendemos falar sobre instituições financeiras, devemos buscar respostas sobre como surge um mercado financeiro, como se estimula seu crescimento e desenvolvimento, e a que se presta tal instituto na sociedade em que se insere.

As instituições financeiras vêm da combinação dos institutos "trocas" e "comércio" - criados pela humanidade desde tempos imemoriais - à necessidade de gestão da poupança (disponibilidades). Com a utilização da fabulosa capacidade humana de abstração e tecnologia da informação, as instituições financeiras passaram a atuar em larga escala, culminando na com-plexidade global hoje vista, e certamente jamais imaginada.

Os intermediários de negócios, ou a necessidade de se intermediar transações, são relatados em antigos escritos e retra-tam a capacidade humana de se relacionar. A criação de classes profissionais de intermediários deu origem aos especialistas, aos comerciantes, desenvolvendo-se um direito próprio, em vista da habi tu alidade da atividade e os objetivos almejados.

A partir da monetização das trocas, criou-se uma facilidade de acúmulo de riquezas, no sentido físico de portabilidade, e as instituições financeiras passaram a funcionar não apenas como repositório de riquezas, mas como instrumento potencial de sua disseminação.

Assim como o grau de sofisticação das trocas é proporcional ao desenvolvimento cultural, social e económico de um povo, a estruturação do sistema de trocas financeiras - através de intermediários financeiros - refletirá a oferta da capacidade cria-

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tiva, ou seja, criação e circulação de riquezas. Estes fatores determinam a organização financeira de um Estado, ou de uma região.

Devemos, portanto, nos lembrar que o desenvolvimento de instituições financeiras em ex-colônias é bastante diverso daquele visto em países colonizadores. O papel do mercado, propriamente dito, veio muito mais tarde para nós, do que, p. ex., para ingleses ou holandeses. O movimento convergente na área da regulamentação e controle, entretanto, com maior intervenção pública, é fenómeno recente, tornado necessário em virtude de crises financeiras e seu contágio a economias remotas.

É sabido que, em países da Europa na Idade Média, as instituições financeiras cresceram pelas mãos dos comerciantes bem-sucedidos, onde mediante avenças com reis e imperadores - atrás de recursos para financiarem seu luxo e conquistas territoriais, já que não mais poderiam retirar tanta riqueza do campo - concedeu-se-lhes o monopólio da cunhagem de moedas, da intermediação financeira (apesar das limitações à usura) e da custódia de valores. Surgia a autorização para funcionar em atividade conduzida primordialmente pela lógica privada, auto-regulada.1 O mercantilismo, urbanizando países através do desestímulo à atividade agrícola, incrementou e expandiu a cultura das trocas internacionais, com o objetivo de acumulação de riquezas (leia-se: ouro e prata) nos países mais organizados.2

Na esteira deste fato histórico - que mereceria, em outra ocasião, um maior aprofundamento - foram surgindo ricas colónias onde o sistema de trocas, inclusi-ve o monetário, apareceu sob controle e normas emanadas dos colonizadores. A pu-blicização de tais instituições de troca, quando da independência desses países colonizados, levando em conta os fracos mercados privados locais nacionais, a monocultura, a baixa renda per capita, a dependência de recursos externos e o vínculo da população a atividades agrárias, fez com que se escrevesse a história financeira dos novos países com a pena da ávida intervenção política, quase sempre com visão de curto prazo e conduta amadora.

Sem qualquer dúvida, na América Latina a tónica constante foram os dirigentes políticos controlando o erário e, em virtude do monopólio legal, manipulando a poupança pública de forma aventureira e, por consequência, catastrófica. Felizmente, a mentalidade e os instrumentos estão mudando para melhor, em um fim de século onde se busca o maior controle e transparência na administração da poupança pública.

Tendo em vista aspectos da evolução das economias de nossa região, o desenho original de seus sistemas financeiros não acompanhou padrões de livre mercado, sofrendo com a grande fragilidade política e económica da região. Vemos que a jovem estrutura financeira dos países da América Latina depende não apenas de uma melhor instrumentalização harmónica, mas da sedimentação de valores que transcendem um único setor, ou uma única atividade. Nesse sentido são sábias as palavras de Emílio Dantas Costa,3 quando afirma que "as autoridades responsáveis pela condução da política monetária de um país que não possua um sistema financeiro sólido sofrerão severas restrições no cumprimento de suas atribuições (...) a administração das taxas de juros, só pode ser plenamente utilizada se o sistema financeiro não apresentar problemas estruturais. Basta considerar que a

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elevação brusca das taxas de juros, uma medida que muitas vezes tem que ser ado-tada para evitar crises que podem comprometer todo o sistema económico, só pode ser levada a efeito se o sistema financeiro for sólido" (grifo nosso).

É nesse cenário que tentaremos discutir uma convergência regulatória e fiscaliza-dora das atividades financeiras, no âmbito do Mercosul.

II - Uma breve visita à evolução financeira do Mercosul
1. O Brasil

No Brasil o real desenvolvimento do sistema financeiro deu-se na segunda metade do século XX, sendo o passado marcado pela onipresença do Banco do Brasil, instituição pública criada em 1829. O BB possuía posição virtualmente monopolística no cenário financeiro brasileiro, administrando não apenas os recursos do Tesouro, mas também exercendo política monetária (controle de emissão da moeda,, taxas de juros e inflação), câmbio, poupança, regulamentação e fiscalização da atividade bancária, esta desempenhada por poucas casas privadas, sem ingerência eficaz nos escritórios das casas bancárias internacionais.

Em 1921, foi criada a Inspetoria Geral dos Bancos, vinculada ao Ministério da Fazenda, posteriormente substituída em 1945 pela Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), que tornou-se responsável pela gestão da política monetária, das reservas bancárias, taxas de juros e desconto, administração da política cambial, assim como fiscalização dos bancos comerciais. Ambas repartições públicas não detinham qualquer autonomia, e o sistema financeiro fluía aos ventos do Poder Executivo.

Já em 1947, o primeiro projeto de lei para reestruturar o sistema financeiro brasileiro foi apresentado ao Congresso, questionando o sistema centralizado fruto da "Era Vargas". Em 1950, o projeto foi se-guido por dois outros, trazendo a discussão à agenda política e visando dar maior transparência à administração das finanças e poupança pública, em uma época ímpar da democracia brasileira, influenciada pelos ares de Bretton Woods e do pós-guerra. É importante ressaltar que o conceito básico desses projetos fundava-se na criação de um Banco Central independente, onde técnicos definiriam a política monetária, separando-a da política partidária e de governo. Nenhum dos projetos foi colocado em pauta, e muito menos foi votado.

Sob inflação e pressão política insuportáveis, o Presidente João Goulart enviou a Mensagem 52, de 22.3.1963, ao Congresso Nacional, visando à reestruturação do sistema financeiro, contemplando a criação de um Banco Central e Conselho Monetário Nacional.

Após o Golpe Militar de 1964, talvez utilizando conceitos na mensagem presidencial acima mencionada, entrou em vigor a Lei 4.595, denominada também de "Lei de Reforma Bancária", compondo um movimento de ampla e sólida reestruturação das instituições financeiras brasileiras como via de confirmação ideológica e prática da preponderância do sistema capitalista sobre a pretensa ameaça comunista na região. Nessa época foram introduzidos os grandes sistemas, destacando-se o Sistema Financeiro Nacional (regulamentando as atividades de intermediários financeiros e administração da política monetária), tendo à frente o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil, o Sistema Financeiro da Habitação (financiado por depósitos compulsórios, via FGTS, e espontâneos, via Caderneta de Poupança), com o.Banco Nacional da Habitação à sua frente, e o Sistema de Distribuição do Mercado de Capitais (criando incentivos fiscais para aplicação em valores mobiliários e privatizando a atividade bursátil, seguido posteriormente pela criação, via Lei "6.385/76, da Comissão de Valores Mobiliários), em essência.

No que tange à evolução do mercado de capitais brasileiro, já em 1845, pressio-

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nado pela necessidade de controlar as trocas de moedas e mercadorias, o Governo Imperial criou a primeira Bolsa de Valores na antiga Capital, Rio de Janeiro. A época era marcada por poucos produtos financeiros, ausência de profissionais, concentração do capital nas oligarquias agrárias, que dependiam pesadamente das exportações para financiarem suas colheitas, ambiente legal precário e presença maciça de comerciantes e banqueiros britânicos.

A criação da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro foi influenciada pelas casas de comércio e um Governo Imperial quebrado. Logo após sua criação, o Decreto 417, de 1845, tornou a atividade de corretor uma função pública vitalícia (condição alterada somente após 1964), submetendo procedimentos de registro ao Imperador. Em 1849 foi criado o Conselho de Corretores de Fundos Públicos da Corte, com a finalidade de fiscalizar a legalidade das...

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