Possibilidade de um Tratamento Social Compatível com a Identidade Sexual - Análise do Hard Case: RE 845.779/SC

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1. O caso em exame: Recurso Extraordinário 845 779/SC

Conforme bem elucida Estefânia Barbosa, falta de resposta do poder legislativo, por meio da criação de leis no que se refere às políticas públicas, resulta da necessidade de reaver no poder judiciário os direitos pertencentes a uma minoria política. O ativismo judicial é designado uma postura proativa do poder judiciário, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) passa a enfrentar os chamados hard cases, ou seja, aqueles casos que envolvem a definição sobre o conteúdo moral dos direitos fundamentais sobre os quais não há consenso na comunidade política - como, por exemplo, aborto, eutanásia, cotas em universidades públicas, união homoafetiva – e que geram grande expectativa, tanto da imprensa, quanto da sociedade, a respeito do posicionamento a ser tomado1.

O caso sub examine, julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 845.779 SC, teve repercussão geral reconhecida pelo plenário virtual do STF no ano de 20142. O referido caso é considerado um hard case, pois a essência da discussão é a possibilidade de transexuais serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gê-nero, haja vista a identidade sexual ser diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade.

Conforme os autos, a ação indenizatória proposta por André dos Santos Fialho, socialmente conhecida como “Ama”, visa o ressarcimento por dano moral devido à ocorrência de discriminação de gênero, praticada por funcionários do Beiramar Empresa Shopping Center Ltda.

A alegação é de que ao entrar no banheiro feminino, como fazia constantemente em locais públicos, foi abordada por uma funcionária do estabelecimento comercial que a forçou a se retirar do recinto, sob o argumento de que a sua presença causaria constrangimentos às mulheres que ali estavam.

Após o ocorrido, adentrou em uma loja do shopping na tentativa de utilizar um banheiro que não fosse de uso comum, sendo informada então de que não havia banheiros privativos nos interiores das lojas.

Afirma que, impedida de utilizar o banheiro e por estar demasiadamente nervosa, não conseguiu controlar suas necessidades fisiológicas, ao fazê-las em suas vestes, sob o olhar das pessoas que transitavam pelo shopping, e que, depois de passar por essa situação vexatória, ainda precisou fazer o uso de

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transporte público para retornar à sua residência.

A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido, que condenou a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$15.000,00 (quinze mil reais).

A terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), no entanto, deu provimento à apelação interposta pela ré, afastando a incidência do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor e, consequentemente, a responsabilidade objetiva do estabelecimento comercial, sob o argumento de não estar configurado defeito na prestação do serviço, uma vez que não se verificou falha no dever de segurança. Houve o argumento de que a recorrente não demonstrou a presença de pressupostos da responsabilidade civil, ao destacar que a prova testemunhal não comprovou a suposta abordagem discriminatória ou agressiva. Ressaltou, também, não ser reprovável a conduta da funcionária que solicitou à recorrente que fizesse uso do banheiro masculino. E concluiu descabida a indenização pretendida, pois o dano indenizável é aquele correspondente à lesão a direito de personalidade, com grande repercussão no psiquismo do ofen-dido, e não ao mero incômodo ou aborrecimento.

Do acórdão que deu provimento à apelação foram opostos embargos declaratórios, rejeitados pelo tribunal a quo.

Assim, foi interposto o recurso extraordinário, com fundamento no artigo 102, III, a, da Constituição, ao alegar violação dos artigos 1º, III; 5º, V, X, XXXII, LIV e LV; e 93, todos da Constituição.

A respeito da repercussão geral, sustenta afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e à honra da recorrente, que mesmo “psicossocialmente” identificada como mulher, teria sido insistentemente tratada como se homem fosse. Afirma que essa ofensa ultrapassa os limites subjetivos da causa, haja vista “a alta relevância no meio social ao contribuir para a construção de um novo paradigma cultural, por primar pelo respeito mútuo e igualdade de tratamento, objetivos da República Federativa do Brasil”.

Defende que a situação possibilita ao Supremo Tribunal Federal (STF) manifestar-se sobre as efetivas proporções alcançadas pelos avanços na proteção da dignidade humana e das minorias, que contribui, assim, para a inserção e aceitação das diferenças que naturalmente existem em uma sociedade multi-cultural, de acordo com as políticas adotadas pelo governo federal, com a colaboração das organizações não governamentais nominadamente da ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, no combate às discriminações.

O recorrido apresentou contrarrazões, em que, preliminarmente, sustenta a inviabilidade do exame da matéria infraconstitucional e fático-probatória e, no mérito, o acerto do acórdão impugnado.

O recurso foi inadmitido na origem, pelos seguintes motivos:

  1. A alegação de afronta aos artigos 5º, V, X, XXXII, LIV e LV e 93 da Constituição configura mera ofensa refiexa ao texto constitucional;

  2. O que se almeja com o recur-so, sob o pretexto de analisar suposta violação do princípio da dignidade da pessoa humana, é rediscutir o mérito da questão julgada improcedente pelo Tribunal a quo, com a reanálise dos elementos fáticos-probatórios que envolvem o caso, o que é vedado em sede de recurso extraordinário (RE).

    O ministro destacou que, apesar de o caso envolver indenização por dano moral, o que por via de regra, implica a negativa de reconheci- mento de repercussão geral pelo Supremo, a hipótese apresentada não se restringe à interpretação e aplicação de normas infraconstitucionais, qualitativamente distinto dos referidos precedentes, porque envolve a projeção social da identidade sexual do indivíduo, aspecto diretamente ligado à dignidade da pessoa humana e a diversos direitos da personalidade (CRFB/1988, arts. 1º, III e 5º, V e X).

    Diante disso foi reconhecida a repercussão geral da questão constitucional debatida em acórdão assim emendado:

    Transexual. Proibição do uso de banheiro feminino em shopping center. Alegada violação à dignidade da pessoa humana e a direitos da personali-dade. Presença de repercussão geral.

  3. O recurso busca discutir o enquadramento jurídico de fatos incontroversos: afastamento da Súmula 279/ STF. Precedentes. 2. Constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse ao sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade. 3. Repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias – uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas, bem como por não se tratar de caso isolado.

    O ministro Edson Fachin acompanhou o voto do relator. No entanto, considerou que a indenização por danos morais deve ser aumentada para R$50 mil, além de o processo ser reautuado a fim de incluir o nome social da parte requerente.

    Até elaboração do presente artigo, o julgamento referido Recurso Extraordinário (RE) 845779 encontra-se suspenso desde a sessão plenária de 19 de novembro de 2015, por um pedido de vista do ministro Luiz Fux.

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2. Aspectos históricos sobre transexualidade

Os trabalhos sobre a sexualidade, que surgiram no século XIX, tinham uma perspectiva mais médica do que moral. Carl Heinrich Ulrichs3, advogado, homossexual, propôs a teoria de que o homossexual não é um criminoso ou um insano, mas uma “alma feminina em um corpo masculino”, resultado de um erro na diferenciação embrionária4.

Richard Von Krafft-Ebing5, influenciado por Ulrichs, publicou em 1886 a Psychopathia Sexualis, ao iniciar os estudos médicos organizados a respeito da sexuali-dade humana. Para ele, as características psicossexuais da personalidade se desenvolvem e se tornam imutáveis, o que tinha conexão com o conceito moderno de identidade sexual.

No século XX, Magnus Hischfeld, médico alemão, publica o livro Die Transvestiten, ao fundar o primeiro instituto voltado para a pesquisa e o estudo da sexualidade. Publicou trabalhos com descrição de casos clínicos e cunhou o termo “travestis” e “transexual” para descrever as pessoas que sentem a necessidade de vestir roupas do sexo oposto6.

Na década de 1920 surgem os primeiros relatos de cirurgia para mudança de sexo, chamadas de cirurgias de adequação sexual. Na Alemanha, em 1923, aos 40 anos, o pintor Einar Wegener retirou os testículos e o pênis. Na Dinamarca, Robert Cowell, um aviador da segunda guerra mundial, que depois se tornou Roberta Cowell, também se submeteu à cirurgia7.

Em 1952, Christine Jorgensen8, nascida George Jorgenesen, descobriu no momento em que servia às forças armadas americanas, que sentia atração por seus colegas, não como um homossexual, mas sim como uma mulher deseja um homem. Assim, tempos depois, realizou na Dinamarca com a ajuda do endocrinologista Christian Hamburger, a cirurgia de retirada de testículos e pênis, e se valeu da utilização de hormônios. Ao regressar aos Estados Unidos, foi destaque em vários jornais norte-americanos, e em 1967 chegou a escrever sua biografia...

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