Os direitos fundamentais e a possibilidade de uma comunidade internacional de valores

AutorAndré Nunes Chaib
Páginas35-52

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1 Introdução

Este trabalho1 versará sobre a internacionalização dos direitos humanos (ditos de outra maneira, direitos fundamentais). No entanto, o problema da internacionalização de tais direitos coloca em questão o problema de seu fundamento. Não é objetivo deste estudo esgotar o assunto ou mesmo apresentar respostas definitivas. Entretanto, acredita-se que o tema colocado é de grande importância, pois implica a compreensão dos fenômenos de internacionalização do direito e a verificação dos direitos humanos como meio para sua realização.

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A importância da internacionalização do direito reside no fato de que é por meio desse processo que se tentará, em um nível internacional, a manutenção de uma paz durável e estável entre as nações.

Este trabalho está dividido em três partes, mais a conclusão. No primeiro item, o tema tratado será a possibilidade de criação de uma comunidade de valores internacional. Isso quer dizer, criar por meio de instrumentos jurídicos uma comunidade em que certos direitos e valores sejam protegidos por todos. Isso exige o reconhecimento de todos os valores proclamados como universais por parte dos integrantes desta comunidade. O problema que se vê é que a universalização jurídica não tem se mostrado suficiente para a construção desta comunidade de valores. Já se observam algumas tentativas de construção de uma comunidade desse tipo, principalmente no plano regional, mas não ainda no plano global. É nesse ponto que resta a importância dos direitos humanos. Talvez possam ser eles o caminho a percorrer rumo à construção de uma comunidade global de valores.

O segundo item trata das possíveis ideologias que serviram de base para a construção das recentes declarações de direitos humanos. Nesse caso, o jusnaturalismo e o juspositivismo serão apresentados. O desenvolvimento histórico de cada um, seu conteúdo e sua ideologia influenciaram bastante a criação dos instrumentos jurídicos que pregam a defesa dos direitos humanos. É possível ver, por exemplo, que a Doutrina dos Direitos Naturais, bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, serviram, ao menos em parte, como base para a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

O terceiro e último item versa sobre dois processos pelos quais pode-se observar a internacionalização dos direitos fundamentais: a harmonização normativa e a hibridação. Ambos ocorrem atualmente como processos de mundialização do direito e seus efeitos são cada vez mais observáveis e constantes.

A tentativa de expor a questão da internacionalização dos direitos fundamentais é demasiado importante, considerando os fenômenos da globalização e mundialização. Diante dessa transformação por que passa a humanidade atualmente, o direito não ficaria inerte. Por isso, vê-se a internacionalização dos direitos fundamentais como fenômeno típico dos processos pelos quais passa o mundo atualmente.

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2 Uma comunidade de valores no plano internacional

A discussão sobre a possibilidade de uma comunidade de valores em nível internacional releva a questão de uma possível comunidade jurídica internacional. Um universalismo não é suficiente para constituir uma comunidade de valores. É preciso, antes, buscar a construção de um conjunto axiológico aceito e tido como possíveis universais, por um determinado grupo de Estados, para que se possa passar à discussão em um nível em que a garantia jurídica indique também segurança jurídica. Isso quer dizer, um efetivo respeito e proteção aos valores proclamados.

Alguns obstáculos se colocam a essa construção, que é um primeiro passo para uma efetiva internacionalização do direito. Outras questões também são levantadas e a importância de conceitos e de estruturas do Direito Internacional público precisam ser colocadas, tais como o modo de produção de normas.

A universalização jurídica não gera uma base sólida para a construção de uma comunidade de valores. Pode-se observar que a tentativa de se criar uma comunidade baseada sobre conceitos e valores universais não foi até então alcançada. Mesmo que se tenham alguns instrumentos jurídicos que pretendam assim fazer, pode-se observar que não são suficientes; carecem de eficácia, justamente porque o acordo moral prévio é inócuo.

Entretanto, duas questões restam ainda a ser respondidas: Como construir uma comunidade de direitos a serem protegidos sem a existência de valores comuns? A criação de uma comunidade de valores em um quadro internacional é possível? Essas são duas perguntas para as quais os intelectuais contemporâneos ainda não conseguiram dar uma resposta definitiva.

Tratando-se somente da última questão, outras perguntas são ainda suscitadas: qual é a diferença entre ética, moral e valor? Essa distinção é fundamental pois, a partir dela, poderá se definir o que se chama de comunidade de valores e tentar falar de um universalismo ético.

É preciso que, na inexistência de “valores universais” a priori, admita-se a possibilidade de, por meio do diálogo e do consenso, a construção desses “valores universais”. O grande problema é que nas relações de diálogo no plano internacional, é preciso levar em consideração as desigualdades de poder entre as potências, e que essa desigualdade pode direcionar o consenso e não verdadeiramentePage 38 permiti-lo. Porém, os direitos humanos participam de forma determinante nesse jogo como uma tentativa de linguagem ou idioma que estrutura nossa cultura e nosso discurso político2.

3 Direitos humanos e direitos fundamentais: possíveis fundamentos e sua construção

A problemática dos Direitos do Homem surge no direito, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. O fato de, no plano nacional, tais direitos estarem consagrados nas democracias constitucionais, no texto da Constituição e no plano internacional, nos tempos modernos, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, não significa que tratam de temas diferentes. Essencialmente a matéria de ambos os textos é a mesma, observando-se, claro, algumas diferenças que variam de uma Constituição para outra.

Neste primeiro momento, o que se pretende fazer é mostrar duas linhas de fundamentação teórica dos Direitos do Homem – as quais não são as únicas e não esgotam suas possibilidades – que se entende serem bastante essenciais para a elaboração deste trabalho. Essas duas linhas são a teoria dos Direitos Naturais e o Positivismo Jurídico. Afinal, a fundamentação dos direitos fundamentais é constituir realmente um problema que não pode ser deixado de lado3. Algumas razões se colocam para justificar tal necessidade de fundamentação: primeiro, é o absurdo de se defender um valor sem saber “por quê”; segundo, este “porquê” delimita o conteúdo concreto desses direitos humanos; a terceira é a falta de bom senso dos teóricos do direito de apresentarem teorias sobre determinados direitos sem fundamentá-los; e, por fim, a quarta, é que, para proceder a uma boa realização prática dos direitos humanos, é preciso ter as ideias sobre tais direitos, claras4.

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Neste mesmo capítulo, após expor essas vertentes de fundação dos Direitos Humanos, propõe-se um exercício de reflexão para saber até que ponto pode-se superar um possível relativismo de valores e como isso pode afetar a construção de uma comunidade de valores no plano internacional. Esta discussão é aqui colocada, pois a busca por um fundamento absoluto, às vezes, é tida como uma ilusão5 e se assim é colocado e constatado, o problema do relativismo jurídico e axiológico é prontamente observável. Como superar ou como trabalhar esse relativismo é a questão que se coloca.

3. 1 O fundamento Jusnaturalista

A partir de agora, passar-se-á a analisar como a Teoria dos Direitos Naturais pode ter influenciado o desenvolvimento dos instrumentos jurídicos atuais que versam sobre Direitos Humanos. Tratar-se-á de três linhas específicas do Direito Natural: a clássica, a medieval, de origem eminentemente religiosa, e a moderna, derivada do pensamento iluminista dos séculos XVIII e XIX.

Na Antiguidade, a história do direito confunde-se em parte com a história do direito natural. Entretanto, a distinção entre estas duas vertentes já se via de alguma forma apresentada quando, em Heráclito, distinguia-se já a justiça das normas humanas (dikaion nomoi) e a justiça natural (dikaion physei), sendo tais algo como o direito positivo e o direito natural, mesmo que ainda fossem, à época, encarados como um só6.

Foi, no entanto, Aristóteles quem fundamentou primeiramente a moralidade no conceito de natureza7. Reconheceu o Estagirita, a possibilidade de um conflito, no plano dos fatos, entre a justiça natural e o justiça legal, encontrando a possibilidade de ocorrência do que chamou de “injusto legal”8.

Nos 500 anos que se seguiram a Aristóteles, o estoicismo torna-se a corrente filosófica dominante quando se trata de direitos naturais. É essa filosofiaPage 40 que fará a ponte do direito natural na Antiguidade para o direito natural medieval. Para estes, a lei única e divina, designada pelo termo grego nomos, existe por natureza, para todos os homens, contrastando com a norma humana (thésis)9. Percebe-se já também a influência que teve essa doutrina no desenvolvimento da ideia de direito na Roma antiga, quando nesta se fazia a distinção entre o jus gentium e o jus civile. O primeiro não possuía limites e era posto pela naturalis ratio, enquanto que o segundo limitava-se a um determinado povo e posto por este mesmo povo10. Vê-se logo que a distinção entre um direito natural, imutável no tempo e no espaço, e um direito positivo, que se transforma de acordo com estes mesmos...

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