Positivismo sobreconstitucional trans kelseniano e o maltrato animal como delito de lesa-humanidade

AutorAntonio Araújo
Páginas139-170

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Transitamos, doravante, de uma epistemocriminologia etnológica ao etnodireito (dogmático) penal-constitucional, fazendo eclodir e florescer os objetivos específicos desta investigação:

• demonstrar que a ordem constitucional argentina, sopesada e consonante a Declaração universal dos direitos dos animais (UNESCO, 1978), deve criminalizar o maltrato animal hediondo, ofensa com lesividade (dolo) apta a erradicar alguma espécie de per si não iminentemente letal aos homens, ou pô-la em risco de extinção;

• ratificar que os legisladores da Argentina estão a incorrer num “Estado de Cosas Inconstitucional” (ECI), vez que se omitem, desobedecem a imperativo constitucional-convencional subjacente e perpassante, qual seja, tipificar o maltrato animal hediondo ou qualificado como delito de lesa-humanidade.

E qual o pano de fundo ancestral às metas acima? Na homilia filosófica do jovem teólogo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1991; apud HABERMAS, 1990, p. 54-56), tal reminiscência perpetrou uma despolitização modernizante, imprescindível à eticidade consumista, aquisitiva, como se a lavoura fosse conatural à sua praga:

Na tradição aristotélica, o conceito de política como uma esfera que abrange o Estado e a sociedade, próprio da antiga Europa, manteve-se sem interrupção até o século XIX. [...] Evidentemente, essa

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conceituação não se ajusta mais às sociedades modernas, nas quais a circulação de mercadorias da economia capitalista, organizada no direito privado, desliga-se da administração do poder. Por meio dos media que são o valor de troca e o poder, dois sistemas de ação se diferenciaram, completando-se funcionalmente: o social separouse do político, a sociedade econômica despolitizada separou-se do Estado burocratizado. [...] [Hegel] recupera, por assim dizer, em termos de uma teoria social, a contraposição da teoria da arte entre modernidade e Antiguidade: “Na sociedade civil burguesa, cada um é fim para si mesmo e todos os outros não são nada. Mas sem relação com os outros ele não pode alcançar a extensão dos seus fins. Esses outros são, portanto, o meio para um fim particular. Este, porém, dá a si mesmo a forma da universalidade por meio da relação com os outros e se satisfaz ao satisfazer, ao mesmo tempo, o bem-estar dos outros”. Hegel descreve as relações mercantis como um domínio neutralizado eticamente para a persecução estratégica de interesses privados e “egoístas”, na qual estes fundam simultaneamente um “sistema de dependência multilateral”. Na descrição de Hegel, a sociedade civil burguesa aparece, por um lado, como uma “eticidade perdida em seus extremos”, como “algo que pertence à corrupção”. Por outro, como “a criação do mundo moderno”, tem sua justificação na emancipação do indivíduo que adquire liberdade formal: o desencadeamento da arbitrariedade da carência e do trabalho é um momento necessário no processo para “formar a subjetividade em sua particularidade”. [...] Aqui já se coloca para ele o problema de como não conceber a sociedade civil burguesa meramente como uma esfera de decadência da eticidade substancial, mas, ao mesmo tempo, em sua negatividade, como um momento necessário da eticidade. Hegel parte da constatação de que o ideal de Estado da Antiguidade não pode ser restabelecido sob as condições da sociedade moderna despolitizada. Por outro lado, atém-se à ideia daquela totalidade ética que o ocupara pela primeira vez sob o nome de religião popular. Logo, tem de estabelecer a mediação entre o ideal ético dos antigos, no sentido em que é superior ao

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individualismo da época moderna, e as realidades da modernidade social. [...] Uma vez que “o princípio dos Estados modernos tem essa força e profundidade extraordinárias de deixar o princípio da subjetividade desenvolver-se até o extremo autônomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, reconduzi-lo à unidade substancial e assim conservá-lo em si mesmo”.

A lividez, esgotamento e consumição renováveis do consumismo são hímen complacente à modernidade — corcel de pedagogias que se auto anistiam, de fumaça branca pontificada, vaticanizada por e a Maomés liberais. Ou águia illuminatus de um califado judeu, de alzheimer burguêsmenchevique, de anarquia conservadora, esotérica, excêntrica. Em todo caso, não há mais lestes geoideológicos: seja qual for o hemisfério apostólico-desenvolvimentista, vida longa ao Javé inócuo, asséptico e senil de Abraão; a Jesus, pena Capital e morte proletária.53Num átrio ou galeria de abóbada rasante, Cristo e Allah profiláticos regridem, jazem qual fantoche de ventríloquos, marionetes vingadoras de pescador que já não salva, retifica ou corrige. Sucumbe! Onde performáticos aiatolás, cardeais e rabinos pedofilizam, sodomizam, armam cabeças de ponte à homodiplomacia exaustiva de “bispos” plenipotenciários. Dignitários a mérito enfadonho, láurea samaritana de iras, barganhas, trapaças pudicas, negociatas.

O cenário e suspeita corrosivos de Hegel guardam sinonímias com o ateliê de restauração ungido por Eric Voegelin, para quem o esquecimento de clássicos enrijeceu, deformou a psique «humana», leia-se «do europeu», propiciando-lhe “a sistemática confusão da razão” (VOEGELIN, 1961, p. 284). Todavia, nossa Antiguidade perspectivista e ultra colonial não fala só o arcadismo greco-romano, ou um prussiano barroco; também é suscetível ao hálito, dialeto e família linguística dos troncos ameríndios Jê, Tupi, Karib, etc.

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Logo, soa demasiado imprudente e servil que os filhos da América Latina estejamos receptivos, tão inclinados a privilegiar, contrabandear, nativizar expertise e intelligentsia de valores ou bens jurídico-penais alheios, distantes, elegíveis. Subestimando-nos, ignorando, preterindo o acervo, safra ou húmus fértil da cosmovisão ameríndia. Um contrassenso e disparate, sobremaneira depois de verificarmos...

[...] que, no caso de proteção de embriões humanos, do meio ambiente, de animais, e mesmo das gerações futuras, o princípio de proteção de bens jurídicos não seria de nenhuma ajuda, embora entenda que tais situações devam ser abarcadas pelo direito penal contemporâneo. Vale dizer, estaríamos aqui diante de normas penais incriminando condutas sem o referencial do bem jurídico. (ROXIN apud BECHARA, 2009, p. 25)

E que referência endossaríamos ao injusto penal? Dissemos no capítulo anterior: “O problema que se nos depara consiste em garimpar quais as referências-objeto do subsidiário injusto penal, anteriores a um discurso -em-si,54ou àquela ideia de bem já quase superada hegelianamente, entregue à fadiga, ao sacramento da extrema unção”.

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Por materializar e guarnecer a fluência de uma jurisdição, qual espaço-tempo constitucionalizado, imputamos tais bases a seus princípios circunstanciais edificantes, de interação dinâmica e multidimensional.

É dizer, princípio fundamental circunstanciado. Cuja hermenêutica não ignore, negligencie ou esteja indiferente ao perspectivismo ameríndio que se incrusta, entranha-se no fenótipo e genótipo civilizatórios de nossa etnografia jurídica.

Alternativa à cosmovisão ascética, estática, fragmentada e abstrata de bens, os princípios matriciais expressam, no tocante ao Estado que constituem desde os alicerces — reproduzindo idoneidade jus perspectivista —, suas bases ou fins nucleares (positivismo real). E permeandolhes, certas ligações-chave, bem como o ritmo de ativação-concretização daqueles objetivos.

Infere-se de interpretação etimológica:

Base sf. ‘tudo quanto serve de apoio ou fundamento’ | 1601, basis XVI, basa XIV | Do lat. basis -is, derivado do gr. básis -eõs ‘ato de andar, marcha’ ‘cadência, ritmo’ ‘base, pedestal’ || AbasIA sf. ‘incapacidade para a marcha’ XX || basEAR 1858 || básICO 1871. (Cunha, 1982, p. 101)

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Merecendo aplausos, a dogmática judiciária “Estado de Cosas Inconstitucional” (ECI) reflete, coreografa a objetividade jurídica do ritmo, qual um fator intrínseco aos princípios fundamentais, que servem de mode-rador exegético e, também, de achega à integração constitucional.

A Corte Suprema de Justicia55colombiana inaugurou o equinócio jurisprudencial do ECI na Sentencia de Unificación (SU) nº 559, de 1997. Digesto a reconhecer hiato e aplasia insolentes do Executivo: um descumprimento programático de direitos previdenciários negados a 45 professores; e grupo ainda maior se viu recrutado por tamanho impasse ou lacuna. Declarando o ECI in casu, ordenou-se aos municípios envolvidos que lhes saneasse tais anomalias e inconstitucionalidades em prazo razoável.

Em 1998, adveio a Sentencia de Tutela (T) nº 153. Nela, outro ECI foi declarado, não se coadunando a Justiça colombiana, republicanamente, com o quadro prisional de superlotação endêmica e generalizada, de violação a direitos fundamentais da população carcerária. Determinou-se a regeneração ou planificação correcional do sistema penitenciário, com a estipulação de metas e alocação seletiva de recursos públicos.

Mas a efetividade56constitucional é sina intransigível, indisponível. Neste sentido, a entropia social colombiana propiciou a jurisprudência do ECI, que, no entanto, ansiava esmerar-se, aperfeiçoar-se burocraticamente. Sobremodo em razão da:

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• baixa flexibilidade sentencial;

• inepta fiscalização judiciária; e

• ignorância sobre a capacidade de realização das ordens judiciais.

A jurisprudência do ECI se aprimorou desde 2004, ano em que a Sentencia de Tutela (T) nº 25 disciplina a logística de migração, êxodo ou deslocamento populacional forçado na Colômbia, um efeito colateral das operações militares, paramilitares57e do narcotráfico. Apreciando 108 pedidos de 1.150 núcleos familiares, demarcou-se perímetro resolutivo ou mandamental que provisionou, conjugou, articulou novéis dotação orçamentária, plano de metas, agenda política e marco regulatório, de forma a garantir direitos individuais dos litigantes. Diferentemente da Sentencia de Tutela (T) nº 153, desta vez a ordem judicial esteve flexível, a ponto de vincular...

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