O princípio da legalidade tributária diante de teorias do direito e do estado: do positivismo kelsenianoaoneoconstitucionalismo

AutorIrapuã Gonçalves de Lima Beltrão
CargoProcurador Federal da AGU Especialista em Direito Econômico pela FGV/ RJ e em Direito do Estado pela UERJ Master of Law pela University of Connecticut e mestrando em Direito pela Universidade Gama Filho/RJ
Páginas5-11

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Introdução

A infindável perquirição sobre uma Teoria do Direito e do Estado tem levado muitos autores a apresentarem diversas contribuições sobre tal formulação. Por outro lado, as diversas teorias desenvolvidas mundialmente no decorrer da história foram sendo incorporadas na realidade nacional de forma diversa pela doutrina, pelo legislador e até mesmo pela interpretação dos tribunais.

Sem dúvidas, é possível a afirmação de que cada um dos ramos do direito pátrio - ainda que reconhecida tal divisão apenas para fins didáticos - sofre uma maior influência de uma determinada linha do pensamento jurídico e suas formulações. Nesta esteira, todas essas teorizações podem merecer uma apreciação em razão de cada uma dessas ramificações.

Neste ponto, é corriqueira a afirmativa de que o Direito Tributário brasileiro vive hoje sob um positivismo-normativista que, praticamente, não encontra paralelo em nenhum outro ramo do Direito brasileiro, no limite do reconhecimento de que nenhuma outra nação adota mais, há muito tempo, a formulação ocorrida no país, nem tampouco na concepção metodológica do Direito Tributário nacional.

A base de toda essa formulação deriva da premissa fundamental da Legalidade e seus subprincípios derivados. Todavia, num olhar crítico, é preciso ultrapassar cientificamente tal restrição, mormente diante das indagações de algumas Teorias do Direito e do Estado e seu reconhecimento sinalizado pela doutrina específica e a jurisprudência.

Numa realidade prática, apesar dos esforços doutrinários, prevalece, na concepção estrutural tributária, o posicionamento dos Tribunais Superiores e da Suprema Corte, também contaminados por aquele positivismo anunciado, sem prejuízo da existência de alguns temperamentos produzidos em virtude da realidade econômica, política, social etc. Nessas ocasiões, é ainda possível a percepção do acolhimento de fundamentos de algumas Teorias do Direito e do Estado, ainda que sem a sua associação explícita ou metodologicamente fundamentada e muito mais como fruto de pressões do governo, dos grupos organizados, das entidades de classes no âmbito empresarial, entre outros.

Todavia, qualquer indagação sobre a sistematização fiscal não pode descontextualizar o Direito Tributário da Teoria Geral do Direito - já não existe análise daquele sem estudo desta. Impõe-se, portanto, o reexame de alguns pontos básicos do Direito Tributário à luz da Teoria Geral e dos argumentos que estão sendo debatidos em outros sistemas (na Alemanha, Espanha, Estados Unidos, por exemplo), respeitando obviamente as diferenças que cada regime jurídico possui.

As influências positivistas, suas correntes e positivação tributária

De todos os debates marcantes na Teoria do Direito, ainda que não exclusivos no Direito Tributário, destaca-se a inicial discussão do positivismo e o direito natural1 sobre norma, valor e princípio.

Como já amplamente difundido, o século XIX marca uma grande transformação no Direito, na ciência do Direito, com a revolução nas bases do jusnaturalismo e a introdução de critérios mais científicos para o estudo da norma, sobretudo a partir da formulação teórica de Hans Kelsen.

Na esteira da cientificação do Direito, o século XIX marca o surgimento do que se passou a denominar como a Jurisprudência dos Conceitos2com sua particularidade de pretender que a lei pudesse dar respostas aos juristas em todas as situações. Mas, acima de tudo, tal escola tinha também as marcas daquele tempo. Isto porque o século XIX não pode ser dissociado da sua realidade histórica, notadamente pelos ideais do liberalismo, do Estado mínimo, dando ao órgão estatal precipuamente a função de segurança jurídica aos agentes econômicos, de sorte a privilegiar as liberdades individuais, sendo ainda guiado pela mão invisível do mercado que regularia todas as relações dessa sociedade.

Neste cenário, a segurança representa o maior valor a ser preservado e o princípio fundamental desse ordenamento é a legalidade. Consequentemente, seria imprescindível que a lei definisse minuciosamente os institutos e regras a partir da norma fundamental de organização do Estado. No que não estivesse detalhadamente previsto na lei a liberdade do ser humano seria total, podendo fazer o que melhor lhe conviesse.Page 6

O seguidor da Jurisprudência dos Conceitos minimizaria o papel da exegese da lei - sobretudo se praeter legis -, já que ela, a rigor, não precisa ser interpretada, por ser pretensamente clara, com todas as soluções. Nesta concepção, o que não estiver na lei está no espaço ajurídico, caracterizando o positivismo normativista conceitualistas3. Cria-se assim o fundamento de uma interpretação que prega, para uma dada situação e para um dado conjunto de normas jurídicas, a existência de somente um resultado possível dado pelaciênciajurídicae independentedasubjetividade do intérprete.

A norma assume a qualidade de principal regedora da convivência social, sobretudo a partir de sua conceituação científica de comando para a atuação humana, sendo reforçado o papel da norma, especialmente no escol de Jhering4. No século XX há, ainda, uma grande intensificação da Jurisprudência dos Conceitos, por meio da obra de Kelsen, como salienta Bobbio, distinguindo do realismo jurídico, que começava a questionar aquelas premissas empíricas:

"As diferentes definições do direito dadas pela escola realista e aquelas da escola positiva (em sentido estrito, por exemplo, a de Kelsen) decorrem do ponto de vista diverso em que os expoentes das duas escolas se colocam, para considerar o fenômeno jurídico; os juspositivistas enfocam o direito pelo ângulo visual do dever ser, considerando assim o direito com uma realidade normativa; os realistas enfocam o direito do ângulo do visual do ser, considerando assim o direito como uma realidade factual."5

Mais do que isto, a teoria apresentada por Kelsen (e os pensadores seguintes) formula a existência de que as normas jurídicas de previsão do dever-ser social buscariam seu ponto de validade na norma fundamental, produzindo uma unidade lógico-científica, litteris:

A norma que determina a criação a outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa regulamentação é a inferior. A ordem jurídica, especialmente a ordem jurídica cuja personificação é o Estado, é, portanto, não um sistema de normas coordenadas entre si, que se acham, por assim dizer, lado a lado, no mesmo nível, mas uma hierarquia de diferentes normas entre si. A unidade dessas normas é constituída pelo fato de que a criação de uma norma -a inferior-é determinada por outra-a superior-cuja criação é determinada por outra norma ainda mais superior, e de que esses regressus é finalizado por uma norma fundamental, a mais superior, que, sendo o fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira, constitui a sua unidade6.

No Direito Tributário mundial, essa concepção da Jurisprudência dos Conceitos vai significar o reforço, quiçá, o exagero, do princípio da legalidade e a opção por um método de interpretação sistemático, segundo o qual vai se coordenar uma interpretação - residualmente aceita - a partir tão-somente da lei. Outrossim, vários ordenamentos jurídicos constitucionalizam tal postura, reforçando os textos políticos com os fundamentos da tributação e exigindo que os elementos fundamentais dos tributos na lei em sentido formal7.

Ainda que diante de um ecletismo das linhas que seguiram aquele positivismo, reconhecer tal influência na estruturação conceitual do direito fiscal nacional produz uma série de consequências, algumas que ora se destacam. A uma, haverá especial prestígio para elisão fiscal, eis que o contribuinte terá a prerrogativa de adotar as medidas para evitar a moldura legal, evitando a descrição da hipótese de incidência, ainda que os efeitos jurídicos ou econômicos sejam os mesmos da previsão legal8.

A duas, a mera adoção de um positivismo de subsunção das conjecturas descritas pelo legislador permitirá ao Estado a exigência de tributo ainda sem a correspondente capacidade contributiva ou geração de efeitos econômicos, patrimoniais ou financeiros na hipótese legal, tudo em nome daquele simples culto à norma, ou a figura do legislador, considerados elementos capazes de dar todas as respostas necessárias ao Direito.

Mundialmente, o grande autor dessa escola positivista normativista no Direito Tributário foi o italiano Aquile Donato Giannini, cuja grande contribuição foi identificar o fato gerador como elemento de distinção dos tributos, e não mais pela destinação e denominação empregada.

No direito positivo brasileiro percebe-se tal influência de forma hialina. Não obstante as ideias de Giannini terem sido lançadas na década de 20, o nosso Direito positivo brasileiro só adota essa distinção de forma explícita com a edição da Lei ne 5.172, de 1966, posteriormente denominado Código Tributário Nacional pelo Ato Complementar ne 36, de 13 de maio de 19679.

Até então o Código de Contabilidade Pública definia a distinção entre taxa e imposto pela destinação dos recursos. Como se vê, dentre os inúmeros pontos válidos das influências do positivismo com o seu tecnicismo, foi, a partir de 66, a adoção de um Direito Tributário mais organizado. Na doutrina nacional, a obra de Giannini influencia vários autores, com destaque para Alfredo Augusto Becker, que, a partir daquele e ainda que criticamente, explicitamente pretende revolucionar todo o Direito Tributário brasileiro com a sua Teoria Geral10, associando a mesma concepção universal já proposta por Kelsen11.

Mas, sem prejuízo das conquistas dessa linha positivista, ocorreu um distanciamento da premissa da capacidade contributiva, já que se relevou moldura legal da hipótese de incidência tributária e a consequente subsunção dos fatos a ela em tipicidade cerrada12. Entretanto, cumpre-nos indagar as necessárias oposições entre as teorias, notadamente em razão do contraste com a Jurisprudência dos Interesses, novamente influenciado pela realidade...

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