A jurisdição constitucional e a implementação de políticas públicas no cenário brasileiro: o papel do juiz no processo democrático

AutorAngela Araujo da Silveira Espindola - Viviane Nery Viegas
CargoDoutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - É mestre em Direito Público pela Unisinos na área do Direito Constitucional e Direito Administrativo
Páginas2-35

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Introdução

O debate sobre a relação entre1 o Direito e a moral e o Direito e a política é crescente no contexto do Estado Democrático de Direito. Todavia, parece haver uma apatia quanto à referência política, hoje, no Brasil. Na expressão de Martin (2005, p.54): "[...] de certo modo, nas sociedades sociais atuais, a participação política parece haver sido substituída por uma participação ética, como pode ser a colaboração com ONG's, ou ecológica."

Para a autora, uma das razões do desencanto a respeito da política é corolário do desencanto com as expectativas que se tinha com a democracia (MARTIN, 2005, p. 54). Nesse passo, a mudança de perspectiva focada na democracia participativa, exige uma revisão não só do modo de funcionamento das instituições perante o Estado Democrático de Direito, como a formação social dos cidadãos como atuantes na esfera política.

O modelo constitucional contemporâneo tem a nova missão de assegurar o equilíbrio entre o princípio democrático e uma concepção substancial de justiça, ou seja, entre o Direito e moral (APPIO, 2010, p. 25). A nova ordem proposta pela Constituição Federal de 1988 incorpora um sistema de valores em seus princípios constitucionais que insurgem conflitos entre os direitos individuais e os de concepção solidária. Nesse aspecto, o papel do juiz, em seu papel de decisor, contrapõe, em muitos casos, a vontade dos legisladores. E, assim, o juiz assume a tarefa de adequar a realidade social ao direito.

Esse fenômeno é descrito por Picardi (2008, p.03) como a transição de um Estado em que predomina o Poder Legislativo para outro em que prepondera o Poder Judiciário. Diante disso, o eixo central desta parte do presente estudo fixar-se-á no papel do juiz no processo de implementação de políticas públicas.

I A dimensão jurídica das políticas públicas

Para iniciara exposição sobre as políticas públicas no Brasil é preciso identificar o objeto sobre o qual se está dissertando. Segundo Bucci (2006, p.11), as políticas públicas são expressas em suportes legais distintos, como dispositivos constitucionais, em leis ou ainda em normas infralegais, como decretos e portarias.

Por se tratar de um tema oriundo da Ciência Política e da Ciência da Administração Pública, as políticas públicas não possuem um conceito padrão, posto que, como já visto, todo o Direito é permeado pela política, de modo que o planejamento e a implementação das políticas públicas são temas cada vez mais permeados pela Ciência Jurídica.

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No Brasil, a partir da década de 90, foram instituídas diversas políticas de caráter setorial, como forma de concretizar os planos de ação previstos na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, cita-se, como exemplo, a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), o Plano Nacional de Aviação (Lei 5.917/73), entre outros (BUCCI, 2006, p.11-14). Tais medidas têm como escopo movimentar a máquina governamental por meio de um programa de medidas articuladas que levem a realização de um objetivo que, na ótica jurídica, é a concretização de um direito.

No texto constitucional de 1988, o legislador apontou algumas matérias jurídicas às quais o legislador infraconstitucional e os aplicadores do Direito devem (ou deveriam) atentar-se, como a Política Urbana, a Política Agrícola e Fundiária, a Política Financeira e Econômica, etc.

Nesse contexto, é pertinente distinguir os conceitos de "políticas de Estado" e "políticas de Governo". É certo que as políticas públicas possuem um componente de ação estratégica, ou seja, são programas de ação governamental que se dirigem a uma finalidade. Todavia, as "políticas de Estado" diferem das "políticas de Governo", pois estas possuem um período delimitado e se realizam como parte de um programa maior que caracteriza as "políticas de Estado".

Assim sendo, Bucci afirma que, utilizando o critério normativo, as políticas públicas constitucionalizadas seriam "políticas de Estado" e as demais, de Governo. Ocorre que o critério é falho, na medida em que "engessaria" a governabilidade do país, ocupando o terreno da política para fins de projeções futuras.2

Na mesma linha, é falha a concepção de políticas públicas como norma. As leis, em geral, são caracterizadas pela generalidade e pela abstração, conferindo-lhes uma dimensão teleológica que, ao contrário das políticas, que são afeitas a um determinado objetivo explícito em seu texto, não possuem "endereço certo" (BUCCI, 2006, p.25-26). Assim delineia a autora:

As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico. (BUCCI, 2006, p.31).

Pode-se considerar que as políticas públicas são normas-objetivo, na expressão de Hart, caracterizando-se como planos pontuais, em que se questiona até que ponto podem ser exigidas judicialmente. Embora o texto constitucional registre que lei não

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excluirá lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário, as políticas públicas só poderão sofrer controle judicial, na medida em que expressem direitos. Daí, a importância da discussão sobre a dimensão jurídica das políticas públicas e, na mesma linha, das formas e dos limites da atuação judicial sobre tal instituto.3

Na esteira do que se discutiu, o Relatório de 2006 do Banco Interamericano de Desenvolvimento BID trouxe dez mensagens importantes para o progresso econômico e social na América Latina. Dessas, algumas são mensagens-chaves para o contexto desse estudo, as quais serão, em continuidade, comentadas:

  1. Os processos são importantes! O processo mediante o qual as políticas são discutidas, aprovadas e executadas (o processo de formulação das políticas públicas) tem impacto significativo na qualidade das políticas públicas, sobretudo na capacidade dos países de proporcionar um ambiente estável para essas políticas, modificá-las quando necessário, executá-las e fazê-las cumprir com eficácia, assegurando-se de que sejam adotadas em favor do interesse público. [...]

  2. Os efeitos das instituições políticas nos processos de formulação de políticas públicas só podem ser compreendidos de maneira sistêmica. Os processos de formulação de políticas são muito complexos, devido à multiplicidade de atores que deles participam, com diferentes graus de poder, horizontes temporais e incentivos; à variedade de cenários em que atuam; e a grande diversidade de regras do jogo que podem repercutir sobre o modo como se atua. Atentar somente para algumas características institucionais (pó exemplo, se o sistema de governo é presidencial ou parlamentar, ou se as regras eleitorais são do tipo majoritário ou de representação proporcional) levará a um conhecimento bastante fragmentado e insatisfatório desses processos. Para compreendê-los melhor, é preciso examinar a estrutura institucional com uma abordagem sistêmica ou de "equilíbrio geral". (A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina, 2007, p.07).

De tais premissas, é possível concluir que o processo de formulação das políticas públicas, entendido como arranjos complexos, deve atentar ao funcionamento de cada instituição política, buscando uma harmonia - o que se chamou de "equilíbrio geral". Em que pese a existência de variáveis como o sistema de governo, a estrutura econômica e

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o contexto social, os atores responsáveis pela formulação de políticas públicas devem cooperar uns com os outros a fim de facilitar acordos e transações. Nesse passo, o Relatório de 2006 do BID aponta que:

Os processos políticos eficazes e melhores políticas públicas são facilitados pela existência de partidos políticos institucionalizados e programáticos, por legislativos que tenham uma sólida capacidade de elaborar políticas, por sistemas judiciários independentes e por burocracias fortes. (A política das políticas públicas: progresso econômico e social na América Latina, 2007, p.07).

A partir desses conceitos, a existência de partidos políticos institucionalizados, com orientação programática em nível nacional, possibilita a adoção de políticas de Estado de forma efetiva que tenham caráter intertemporal. Do mesmo modo, um legislativo sólido, capaz de elaborar políticas sem estar a mercê das iniciativas do Poder Executivo e um Poder Judiciário independente e eficaz são fatores imprescindíveis para assegurar que os compromissos assumidos sejam cumpridos e que não excedam os limites da lei.

Entretanto, o contexto brasileiro - como já visto - está longe de realizar as premissas ideais postas. A chamada crise da democracia representativa, no Brasil, vai além dos aspectos delineados anteriormente, admitindo distorções na representação política como o valor do voto igualitário e a desproporção na câmara dos deputados.

Conforme aponta Bercovici (2004, p.78), numa democracia, o sufrágio universal deve ser igual, correspondendo à regra um homem, um voto, de modo que cada eleitor seja igual ao outro no ato de votar. No entanto:

A regra constante do artigo 45, § 1 °, da Constituição é fonte das graves distorções do sistema representativo brasileiro. Com a fixação do número de deputados por Estado, não se encontra nenhum meio em que proporção atenda o princípio do voto com valor igual para...

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