Politica Conceituai e Teoria do Direito: Quando Gilles Deleuze e Felix Guattari encontram Carl Schmitt/Conceptual Politics and Legal Theory: When Gilles Deleuze and Felix Guattari meet Carl Schmitt.

Autorde Almeida, Leonardo Monteiro Crespo

Introducao

Poucos sao os pontos de contato e preocupacoes propicios a aproximar as reflexoes filosoficas de Carl Schmitt e Gilles Deleuze/Felix Guattari. Nao somente integraram contextos historicos e culturais bastante diversos, como tambem estiveram em lados opostos no campo da politica. Reconhecendo esse afastamento, o presente trabalho propoe que, no que se refere a maneira como pensaram a criacao conceitual, eles podem se tornar mais proximos. Em ambas as abordagens, uma certa sensibilidade politica se encontra articulada em meio a composicao de conceitos proprios, inventivos e, especialmente no caso de Schmitt, controversos.

A ideia de uma politica conceitual, que se faz presente no titulo deste artigo, refere-se a maneira pela qual a criacao conceitual proporciona veredas para uma intervencao transformadora do social: tanto na maneira como subvertem panoramas bem assentados como ao se explorar da potencialidade do que se encontra oculto na realidade imediatamente apreensivel. Ao cunharem novos conceitos e reformularem os que herdaram da filosofia e teoria politica, Schmitt e Deleuze/Guattari estariam explorando o dominio da politica por outros meios.

Esta pesquisa concisa tem como proposito ressaltar a relevancia desse aspecto na obra dos autores, adotando como principal referencia os encontros e desencontros entre teoria do direito e politica. Para tanto desdobra o seu objetivo em dois pontos: o primeiro consiste no desenvolvimento analitico da ideia de politica conceitual nas filosofias de Schmitt e Deleuze/Guattari; o segundo se refere a maneira como essa ideia pode ser apropriada para uma reflexao sobre o carater politico da teoria do direito e dos seus conceitos.

Considerando que nao se trata de uma ideia que e explicitamente desenvolvida pelos autores, o trabalho realiza uma leitura especifica voltada para o esclarecimento dos elementos que concorrem para a formacao dessa ideia. A preocupacao especifica com a teoria do direito e as suas construcoes conceituais se deve em grande parte pela amplitude de sua influencia nao somente na representacao do juridico, como tambem em sua operacionalizacao nos contextos diversos contextos institucionais. Atraves dos conceitos que elaboram, teoricos do direito representam um conjunto de praticas sociais institucionalizadas como juridicas, estabelecendo os seus contornos, prerrogativas e, em ultima instancia, distinguem o que pode ser concebido como parte do juridico daquilo que nao pode.

As representacoes do juridico pela teoria nao raro se ancoram em premissas politicas implicitas com consequencias normativas importantes. Conceitos como os de 'ordenamento juridico', 'codigo', 'decisao judicial', 'limites' e 'metodos interpretativos', normalmente se desenvolvem primeiro no ambito da especulacao teorica em torno do juridico para depois serem operacionalizados pelos juristas praticantes. Os conceitos juridicos nao encerram representacoes desinteressadas sobre a realidade politica, nem deixam de trazer consigo, mesmo que implicitamente, referencias a um determinado imaginario social: todos aqueles conceitos, de uma maneira ou de outra, trazem consigo o rastro de ideias sobre poder soberano e organizacao social.

A estrutura desse trabalho e composta por tres secoes interligadas e com temas particulares. A primeira delas consiste em propor um esboco da politica conceitual na teoria do direito de Carl Schmitt. Considerando que uma abordagem politica da criacao conceitual e fundamental para o desenvolvimento da abordagem teorica do autor, ainda que ele nao tenha revestido de sistematicidade as suas indagacoes sobre o tema, o objetivo da secao consiste em delimitar e esclarecer essa ideia de politica conceitual e de que maneira ela pode ser relevante para uma investigacao politica sobre as teorias do direito e dos conceitos que elas propoem. A pergunta que se quer responder e a seguinte: em que medida os conceitos possuem uma dimensao politica na teoria de Schmitt?

A secao seguinte se refere a filosofia do conceito proposta por Gilles Deleuze e Felix Guattari na obra "O Que e a Filosofia?", mas cujas implicacoes ja podem ser encontradas decadas antes, nos "Mil Platos" ou ainda "Anti-Edipo". Sendo a criacao conceitual, para os autores, o que ha de mais proprio na atividade filosofica, o objetivo da secao sera o de transpor as consideracoes dos autores sobre a criacao de conceitos, o seu elo com uma concepcao especifica do politico, para o ambito da teoria do direito e dos conceitos que nelas sao criados. A pergunta central e: que concepcao de politica e viavel extrair da criacao conceitual na filosofia de Deleuze/Guattari?

Por fim, a terceira secao desenvolve os pontos de convergencia entre as duas perspectivas. A hipotese ilustrada nesta pesquisa e a de que essas convergencias podem ser significativas para uma abordagem que interrogue as ressonancias politicas, nem sempre evidentes, dos conceitos elaborados no ambito da teoria do direito, especialmente no tocante a pensar outras possibilidades de relacoes sociais e organizacoes politicas. A pergunta final consiste na articulacao entre as duas perspectivas: como a criacao conceitual nas duas filosofias pode trazer algumas contribuicoes para se pensar a criacao conceitual no contexto da teoria do direito?

Em termos metodologicos, a pesquisa desenvolveu uma revisao bibliografica que entrelaca literatura primaria e secundaria tendo como fio condutor a maneira como os autores conceberam a criacao conceitual e/ou o papel que os conceitos desempenharam na composicao da filosofia dos autores. Em seguida, ja recorrendo a uma literatura que toma o juridico como objeto principal de sua reflexao, os paralelos passam a ser construidos entre as duas propostas e a teoria do direito.

Carl Schmitt e a politica dos conceitos teoricos

Uma parte relevante dos conceitos desenvolvidos por Schmitt ao longo de sua obra e envolvida por um grau consideravel de indeterminacao e controversia (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 4 e ss). Sao essas algumas das caracteristicas que contribuem para constantes revisoes e discussoes, por vezes inquietas, de sua obra: os conceitos schmittianos se abrem facilmente para leituras contraditorias e igualmente validas (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 11 e ss).

A sua compreensao do politico, fundada na dicotomia entre amigo/inimigo, por exemplo, e apropriada tanto por uma retorica simploria de polarizacao geopolitica ("ou se esta com os Estados Unidos da America, ou se esta contra") ou tambem como uma critica a despolitizacao das democracias liberais presentes tanto em posicoes tecnicistas e moralistas da politica, como sustenta Chantal Mouffe (MOUFFE, 2005, p. 4 e ss). A filosofia politica de Schmitt interroga os limites e as bases da democracia liberal, como tambem o das instituicoes que normalmente a acompanham (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 11 e ss). Se as suas solucoes sao inaceitaveis, os seus diagnosticos e conceitos mostram-se relevantes para uma parte da teoria do direito e da teoria politica contemporaneas, como os trabalhos de Jacques Derrida (DERRIDA, 2005), Chantal Mouffe (MOUFFE, 1999a, p. 38 e ss) e Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2004) demonstram.

A pratica de construcao de conceitos e um aspecto central na teorizacao sobre a ordem feita por Schmitt: conceitos surgem como elementos que estabilizam e organizam o triplo dominio sobre o qual a sua filosofia vai se deter, a saber, a cultura, a politica e o direito. A construcao conceitual demarca as relacoes constitutivas daqueles dominios, instaurando posicoes ao redefinir sentidos e erguer dicotomias. Sobre esta questao escrevem Jens Meierhenrich e Oliver Simons:

A ordenacao das categorias fora o fundamento para as suas outras praticas e esforcos em ordenar o dominio do politico, do legal e do cultural... A desconstrucao e a reconstrucao dos conceitos foram o primeiro passo necessario (e algumas vezes o seu unico passo) no desenvolvimento do seu pensamento policentrico. Ele foi um exemplar do decisionista enquanto tipo conceitual (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 16) [Traducao livre realizada pelo autor] (1). Os conceitos schmittianos propoem a instauracao de uma ordem em que as premissas que lhe servem de justificativa se encontram ausentes ou meticulosamente dissimuladas: seja pela via da desconstrucao ou pela via da reconstrucao, os contornos dos conceitos sao conduzidos pelas preocupacoes e interesses estrategicos do teorico. Se representam um estado de coisas, assim o fazem para intervir nele atraves de sua caracterizacao teorica (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 17 e ss).

Se a ordem e o eixo central da construcao de conceitos, e o seu outro, aquilo que a ultrapassa e que por isso mesmo lhe determina os limites, que captura a atencao de Schmitt: o teorico da ordem mantem sempre um olho apontado para o caos (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 16). O caos se expressa pela ambiguidade e indeterminacao: seu fator distinto reside em trazer a tona a imprevisibilidade e a incoerencia das relacoes constitutivas de uma ordem.

Parte da dimensao politica que reside na construcao conceitual se revela neste ponto: a conceitualizacao de algo exige tambem a exclusao do seu outro, daquilo que, sendo-lhe incompativel, precisa ser deixado de fora (MEIERHENRICH; SIMONS, 2016, p. 15 e ss). A implementacao de uma ordem estavel exige distincoes precisas, mas que ao mesmo tempo repousam sobre um momento de decisao marcadamente politico. E caracteristico do autor iniciar algumas de suas obras com afirmacoes contundentes, prontas para serem mencionadas no futuro, e categoricas o suficiente ao ponto de dificultar questionamentos acerca das definicoes que propoem. "Soberano e aquele que decide sobre o estado de excecao", assim se inicia a obra Teologia Politica, um dos seus mais conhecidos trabalhos (SCHMITT, 2005, p. 5).

A categorizacao schimittiana simbolicamente estabelece os alicerces para a ordem e a estabilidade almejadas pelo autor na triade...

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