Infiltração Policial como Técnica de Investigação

AutorVladimir Aras
Páginas37-45

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Policiais poderão cometer crimes no Brasil. A permissão está num proje-to de lei que tramita no Congresso Nacional. - "Qual a novidade?", perguntaria um cético ou um cínico. Alguns maus policiais já cometem crimes pelo país e não precisam de lei tampouco pedem autorização de quem quer que seja. Mas isto é diferente. Dois projetos que tramitam no Congresso Nacional pretendem regulamentar a infiltração policial no Brasil.

O primeiro é o projeto de lei do Senado 150/06 (PLS 150/06). Trata-se de uma das propostas legislativas mais aguardadas pelos órgãos de persecução criminal. Fruto de sugestão da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), a proposição revoga a Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95), conceitua organização criminosa, tipifica o crime de associação em organização criminosa e disciplina a colaboração criminal premiada (delação), a escuta ambiental, a ação controlada e a infiltração policial. O projeto foi aprovado no Senado no final de 2009 e está sob revisão da Câmara dos Deputados.

Se sancionado o projeto, cessará a falsa polêmica sobre o conceito de organização criminosa. Segundo o art. Io, § Io, do PLS 150/06:

"Considera-se organização criminosa a associação, de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional."

Na verdade, o art. 2o da Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015/04, já nos dá o conceito de associação criminosa ou grupo criminoso organizado, com força de lei federal ordinária.

O art. 3o, inciso V, do PLS 150/06 prevê a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência em tarefas de investigação, a ser realizada pelos órgãos especializados pertinentes, dependendo de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial. Curiosamente, também existe a infiltração no sentido oposto, de criminosos no seio do Estado. No filme Os Infiltrados (The Departed, 2006), estrelado por Leonardo di Caprio e Matt Damon, este tema é muito bem exposto pelo diretor Martin Scorsese.

O segundo projeto que merecerá nossa atenção é o PLS 100/10, que foi aprovado em maio de 2011 pelo plenário do Senado Federal como um dos resultados da profícua CPI da Pedofilia. Aqui o foco da infiltração policial é a investigação de cibercrimes de cunho sexual tendo por vítimas crianças e adolescentes. Se a internet é a ferramenta para a prática de tais crimes, será também o meio que permitirá a investigação eficiente de casos de pedopornogra-fia nos planos doméstico e transnacional.

Os dois projetos têm utilidade para o direito penal e processual penal informático, na medida em que pedófilos atuam livremente

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no ciberespaço, sem temor, compartilhando este "território" com organizações criminosas que corriqueiramente praticam ciberfraudes, especialmente a subtração de dados pessoais para falsa identidade (iden-tity theft e false impersonation), a clonagem de cartões de crédito e o estelionato informático, ou se dedicam à formação de redes computacionais "zumbis" ou "escravizados" (as chamadas botnets), destinadas a concretizar ataques de negação de serviço (distributed denial ofservi-ce - DDoS) a infraestruturas informáticas relevantes, ou ainda que se especializam em difundir vírus informáticos (malwares).

2. Conceito de infiltração de agentes

A infiltração de agentes (e não infiltração "policial") é uma das chamadas técnicas especiais de investigação (TEI), empregada por órgãos de persecução criminal, agências de inteligência e serviços secretos em todo o mundo. É meio de obtenção ou coleta da prova, que se baseia na dissimulação e no sigilo. Na infiltração, policiais e agentes de inteligência imiscuem-se em quadrilhas ou organizações criminosas e também em células terroristas, tornando-se membros sob disfarce.

Para esta atividade, os infiltrados (undercover agents) assumem falsas identidades, baseadas em histórias-cobertura solidamente construídas e bem decoradas e passam a agir como se fossem verdadeiros integrantes do grupo criminoso. Para encenar este papel, além de corajoso, o infiltrado deve ser um homem (ou mulher) sensato, bem preparado e emocionalmente equilibrado e que também domine os hábitos, jargões e socioletos do grupo no qual pretende infiltrar-se.

Esta e as demais técnicas especiais somente devem ser utilizadas para a persecução de crimes graves, segundo o princípio da lesividade ou da ofensividade. Eis aí a importância de se construir um conceito de "crime organizado" (a exemplo do que está na Convenção de Palermo) como uma noção garantista, a fim de traçar os limites dessas técnicas e de outros institutos voltados à persecução da delinquência organizada.

De igual modo, deve haver formas de controle prévio, simultâneo ou posterior (ex postfacto), ou uma combinação deles, sobre os órgãos autorizados a empregar as TEI, com supervisão por autoridades judiciais ou por órgãos independentes como o Ministério Público1, o que constitui o princípio da sindicabilidade ou controlabilidade. Nesse tema do controle do procedimento, inclui-se o direito de o próprio investigado verificar sua legalidade e questioná-lo em juízo, no contraditório ordinário, na via recursal ou por meio de habeas corpus.

Ainda, deve-se ter em mira que o emprego das TEI deve se conduzir de acordo com o princípio da proporcionalidade, de sorte que as técnicas mais invasivas somente sejam utilizadas para os crimes mais graves ou quando absolutamente necessário. Como se vê, a proporcionalidade está ligada à ideia de necessidade. Mesmo quando legítima e legal, a técnica especial só deve ser empregada se for necessária para a elucidação do crime ou para a pro-teção de bens jurídicos relevantes.

O uso das TEI também está limitado pelo princípio da subsidiarie-dade. Só se permite sua implantação se não houver outros meios menos gravosos para a descoberta da verdade ou para a elucidação do crime2.

No contexto da pornografia infantil, convém lembrar também do princípio da proteção integral, previsto na Constituição Federal e na Lei 8.069/90, que exige do Estado prestações positivas em várias áreas, inclusive de segurança pública e de acesso à Justiça, voltadas para a preservação da integridade física, psíquica e moral de crianças e adolescentes.

3. Características da infiltração de agentes

Este é o terreno dos agentes infiltrados ou undercover agents. Podem ser policiais ou servidores de órgãos de inteligência, encarregados de iludir um criminoso ou membros de uma organização criminosa, fazendo-os crer que são seus cúmplices, colaboradores ou fornecedores. A dissimulação, o ardil e o embuste são empregados pelo Estado para romper o silêncio mafioso (omertá) de organizações criminosas ou para obter informações cruciais de criminosos comuns.

A técnica, espécie do gênero das operações encobertas, depende de prévia autorização judicial e controle do Ministério Público. Nos casos Lüdi vs. Suíça e Teixeira de Castro vs. Portugal, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH ) concluiu pela legitimidade de infiltrações policiais. Porém, fixou que a identidade e o papel do agente na operação devem ser de conhecimento da autoridade judiciária, sob pena de violação do devido processo legal, e que não pode haver provocação, não podendo a polícia funcionar como agent provocateur.

O agente manterá sigilo de sua identidade ou assumirá uma falsa persona. Esta técnica está prevista nas diretivas do Grupo de Ação Financeira na América do Sul contra a Lavagem de Dinheiro (GAFISUD) e pode ser utilizada para a persecução da lavagem de dinheiro e dos crimes antecedentes. A lei brasileira deixa a desejar no ponto, porque não estabelece as condições nem a duração da técnica, deixando que a autoridade judicial, ouvido o Ministério Público, defina esses critérios. A identidade do agente deve ser man-

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tida em sigilo, sua responsabilidade criminal é suprimida em relação às ações ou omissões necessárias ao cumprimento da diligência, e deve haver um sistema de proteção ao investigador e sua família.

A infiltração não é um fim em si mesmo. Seu sucesso dependerá da sua combinação com outros métodos, desde a observação, passando pela vigilância eletrônica e a inter-ceptação de sinais. É tática comu-mente usada em espionagem, inclusive na modalidade de hibernação (dormant moles).

Há duas modalidades de infiltração: a) infiltração por um policial ou agente de inteligência; e b) infiltração por um informante (colaborador). Se a infiltração policial é objeto de um pedido de mutual legal assistance (MLA), o agente infiltrado tanto pode ser um policial do Estado requerido quanto um agente do Estado requerente, que executará a medida no território do Estado requerido.

Questões éticas muito relevantes ligam-se a esta técnica investi-gativa. Indaga-se até que ponto o Estado pode autorizar um de seus servidores a praticar crimes. Seguramente deve haver uma vedação ao concurso em delitos sexuais ou crimes violentos (dolosos contra a vida) e a tortura. Os agentes infiltrados devem ser judicialmente autorizados a atuar como coautores ou como meros partícipes numa empreitada criminosa. Conforme Wendt, a Lei 9.034/95 não permite ao agente, em momento algum, inserir-se por completo no meio criminoso e cometer delitos junto com os criminosos3.

Na infiltração, o investigador ou detetive fica sujeito a grande risco...

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