Polêmicos Temas de Biodireito

AutorIvan de Oliveira Silva
Páginas79-110

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6. Compreensões Diversificadas do Mundo: uma Introdução

O Biodireito depara-se com temas relacionados a aspectos morais, científicos, religiosos, sexuais e jurídicos, que de longa data, se mostram extremamente polêmicos, haja vista que as questões de foro íntimo de cada indivíduo são passíveis de dilemas e opiniões diversificadas.

Dentro desse universo de polêmicas, basta lembrar as acirradas controvérsias entre a filosofia e a teologia que, por séculos, levantam discussões e pontos de vista diferentes a respeito de assuntos que envolvem a fé e a razão.1

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O mesmo ocorre com o Biodireito, eis que os temas de sua abrangência enfrentam compreensões diversas a respeito da visão de mundo de cada indivíduo. Assim, não raro, o Biodireito envolve matéria de ordem cultural, de maneira que, sob certos enfoques, parte da socie-dade entende pertinente determinada decisão e, devido à estrutura pluralista de nossa Nação, a posição é repelida por outros componentes de nossa cultura.

Diante dos constantes impasses, é de se sublinhar que, desde a estruturapolíticadeAtenas(ochamado berçodacultura política), a democracia não suscita a idéia de que se alcançará sempre uma unanimidade, mas, em vez disso, é garantida à maioria a execução de seu entendimento sobre determinados assuntos. Como afirmou Aristóteles, quando a matéria apresenta questões polêmicas, é necessário conceber o ponto médio em busca do sumo bem, que em nosso tempo pode ser compreendido como bem comum.

Feitas estas observações iniciais, vamos aos controvertidos tópicos de alcance do Biodireito.

6.1. Cessão Temporária de Útero

Ao passarosolhos nasalternativasdereproduçãohumanaque a atual biotecnologia coloca ao alcance da sociedade atual, mais uma vez nos deparamos com um assunto em que a legislação se queda inerte.

Embora o Código Civil de 2002 tenha surgido na aurora do século XXI, assim como outros temas relevantes, não se verifica em seu bojo tratamento da intitulada cessão temporária de útero, não obstante o fato de que o vulgarmente chamado "útero de aluguel" seja uma realidade na vida de muitos indivíduos com dificuldades para reprodução.

Grosso modo, estamos diante da liberdade de escolha sobre a forma ou em que organismo a gestação será desenvolvida: se na barriga de uma mulher que faz parte de uma relação afetiva convencional;ousedoútero de outramulherque cedeuoseucorpo para o desenvolvimento de um bebê para que, tão logo, a realização do

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parto, seja entregue àqueles que contrataram os préstimos daquela que deu à luz.

Levando-se em conta que o Judiciário não poderá deixar de pronunciar-se na ausência de legislação adaptável ao caso concreto, bem como não poderá ignorar lesão ou ameaça de direitos levados ao seu conhecimento, vemos que o debate a respeito da cessão temporária de útero é de extrema importância, haja vista que tecnologia para esta prática não falta.

Destaque-se, com efeito, que os estudos envolvendo a reprodução humana não afastam, em nenhum momento, a reprodução assistida, que poderá ocorrer por métodos até então inimagináveis em séculos anteriores.

Interessante observar que assunto como o "útero de aluguel", pela sua inovação do ponto de vista tecnológico, desmonta as bases relativas ao direito de família, em especial, no que tange à linha da filiação, herança, sucessão, etc.

Como exemplo, basta imaginar a hipótese de a mãe "cedente" do útero, embora tenha recepcionado o espermatozóide do casal "cessionário", após o prazo determinado, não entregue a criança àqueles que a contrataram. Temos aqui um sério impasse: a mãe biológica poderá obter êxito em eventual demanda requerendo pensão alimentícia do doador do esperma? Qual a medida jurídica em benefício do casal que contratou os serviços da "cedente" do útero? Como ficarão os direitos hereditários da criança concebida? Mesmo diante da entrega do bebê, conforme o contrato, a criança terá direitos à herança da "cedente" do útero?

Embora seja possível argumentar respostas a tais questionamentos, entendemos que a legislação vigente imporá ao aplicador do direito severas dificuldades, eis que, de antemão, será possível sustentar a impossibilidade de contrato de cessão de útero pela ausência de um dos requisitos do artigo 104 do Código Civil (objeto lícito). Contudo, diante das possibilidades que a ciência coloca à disposição de casais estéreis, este seria o justo caminho?

É inarredável, porém, que o avanço das ciências médicas coloca o direito diante de questões que rompem com os paradigmas sociais

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e, por conseqüência, quando o fato concreto for levado ao Judiciário, o juiz deverá exercer fundamental papel no sentido de suprir a ausência legislativa e impor a pacificação das agruras sociais que lhe são transmitidas por meio do processo.

Frise-se que o fenômeno fático da "barriga de aluguel", por óbvio, poderá surgir inclusive sem intervenção médica, eis que um casal, ou simplesmente um indivíduo, poderá manter relações sexuais com outra pessoa com o propósito de ceder o seu útero para uma gestação. Não obstante o peso de certas censuras de cunho moral, não é difícil imaginar a possibilidade de um casal, com um frustrado sonho de ter filhos, se submeter a um contrato de cessão de útero, em que o parceiro que disponha de suas funções reprodutivas normais mantenha relações sexuais com a "locadora" do útero.

A cena, à primeira vista, poderá parecer surreal, mas, diante da multiplicidade de interesses e comportamentos que ecoam em deter-minada sociedade, julgamos que este fato, embora não observado pelo Legislador Civilista de 2002, seja possível.

Após o parto advindo de relações sexuais, sob o compromisso da posterior entrega da criança, a interpretação jurídica tradicional, pelo menos até uma possível adoção, entenderá que a mãe da criança será aquela que cedeu o seu útero mediante o pagamento de um preço ou de certas vantagens.

Hipótese semelhante, agora por meio de acompanhamento médico, poderá ocorrer com o que se convencionou chamar de fertilização heteróloga, na medida em que o óvulo ou, se for o caso, o espermatozóide será artificialmente implantado no útero de aluguel. Repetimos que este caso acaba por ser semelhante àquele, com exceção da ausência do contato sexual com terceira pessoa, a qual cede o corpo para a gestação.

Forçoso reconhecer que tanto na primeira como na segunda hipótese, na ausência de legislação específica sobre a matéria, em caso de litígio entre os envolvidos, a solução para o caso concreto será delicada. Vamos a algumas posições acerca da cessão temporária de útero.

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6.1.1. Cessão Temporária de Útero e a Posição do Conselho Federal de Medicina

Nos idos de 1992, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.358, publicada no DOU de 19.11.1992, no que tange à cessão temporária de útero, manifestou-se nos seguintes termos:

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.

1. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2. A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Aliás, em sentido idêntico, caminham outros posicionamentos a respeito da matéria:

"As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doa-dora genética, num parentesco até o 2º grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Federal de Medicina. Esta doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial." (Parecer CFM nº 6.503/00, aprovado em 11.01.2001, Rel. Pedro Pablo Magalhães Chacel)2"A cessão temporária de útero de doadora não pertencente à família da doadora genética deve ser previamente autorizada pelo CRM, não podendo haver caráter de transação comercial ou lucrativa." (Parecer CRM/SP nº 43.765/01, aprovado em 31.08.2001 na Reunião Plenária nº 2.263, Rel. Cristião Fernando Rosas)3Em outro foco, importa ressaltar que, segundo o item II da Resolução nº 1.358/92, toda mulher, capaz nos termos da legislação, poderá ser receptora das técnicas de Reprodução Assistida, desde que haja o livre consentimento reduzido a escrito.

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Pelo que observamos, a Resolução nº 1.358/92, tem sido utilizada para sustentar as manifestações dos Conselhos Regionais a respeito das técnicas de Reprodução Assistida. Nesse sentido, é de se ressaltar que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, por meio do Parecer nº 24.637/97, já se manifestou favorável a este tipo de prática, desde que o profissional médico domine a técnica de reprodução. Vamos à manifestação proferida pelo referido Conselho:

"(...) Trata a minuta apresentada de um Contrato de Prestação de Serviços Médicos, visando à aplicação de Reprodução Assistida em paciente da Clínica que, através de método de fertilização in vitro com seus próprios óvulos ou com espermatozóides de seu próprio marido, utilizará o útero de sua irmã para a inserção dos embriões tornando-se este o veículo para o processamento da gravidez até o nascimento da criança ou crianças.

Preliminarmente duas questões devem ser alinhadas: a jurídica e a ética.

Quanto à jurídica, é de se ver que não existe legislação sobre o assunto, estando, no momento, a Comissão de Seguridade Social e a Família da Câmara dos Deputados analisando projeto de lei que institui normas para o uso de técnicas de reprodução assistida.

Todavia, nada impede que serviços dessa natureza possam ser contratados, posto que são lícitos e se inserem nas atividades legalmente atribuídas aos...

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