A Autocomposição como Política Pública Judiciária: uma Análise da Atuação do Conselho Nacional de Justiça

AutorMaria Cristina Irigoyen Peduzzi
Ocupação do AutorMinistra do Tribunal Superior do Trabalho; Conselheira do CNJ. Presidente da Comissão de Gestão Estratégica, Estatística e Orçamento do CNJ; Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Páginas87-96

Page 87

Introdução

No desenho institucional brasileiro, foi atribuído ao Poder Judiciário o importante papel de garantir os direitos fundamentais, apreciando qualquer lesão ou ameaça aos bens jurídicos que são tutelados (art. 5º, XXXV, da Constituição da República). Parte-se do pressuposto de que, no âmbito de um Estado Demo-crático de Direito, baseado na relação interna entre constitucionalismo e democracia, os direitos fundamentais atuam como limite e, ao mesmo tempo, como fundamento de legitimidade para a prática política1.

Ao lado da positivação dos direitos que são reconhecidos a todos, nosso ordenamento prevê os meios judiciais disponíveis para a sua defesa em caso de violação. Como ensina o jurista italiano Mauro Cappelletti, "a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação"2. Por isso é que a garantia de acesso à Justiça se apresenta como requisito básico de um regime jurídico-político pautado pelos princípios da igualdade e da liberdade.

Os cidadãos recorrem ao Poder Judiciário para reivindicar seus direitos e buscar a solução de seus conflitos de interesse em conformidade com o direito válido. Assim, por meio da composição de litígios, o sistema Judiciário deve realizar a função precípua de promover a pacificação social e constituir um espaço de luta por reconhecimento e de exercício da cidadania.

Não são poucas as dificuldades que os órgãos judiciais enfrentam no desempenho dessas tarefas. O acesso à Justiça, como será discutido a seguir, é um direito complexo e de múltiplas faces, abrangendo não apenas o ingresso ao Poder Judiciário, mas

Page 88

também a tempestividade e a justeza das respostas recebidas pelas partes.

A reforma do Poder Judiciário levada a cabo pela Emenda Constitucional n. 45/2004 trouxe novas exigências para uma prestação jurisdicional efetiva, impondo o respeito aos princípios da qualidade e da celeridade, que requerem a observância de uma duração razoável dos processos. A morosidade dos trâmites judiciais, reflexo da sobrecarga de trabalho nos tribunais do país, constitui por si só uma recusa à tutela adequada dos direitos fundamentais.

No mesmo movimento de reforma constitucional, foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão responsável pelo controle da atividade administrativa e financeira do Poder Judiciário (art. 103-B da CR/88).

Desde então, o CNJ tem atuado na formulação e desenvolvimento de políticas públicas judiciárias que realizem os princípios da moralidade, eficiência e efetividade na prestação jurisdicional, inscritos no art. 37 da Constituição de 1988.

Uma das principais bandeiras empunhadas pelo CNJ é a construção de uma política pública voltada ao tratamento adequado dos conflitos de interesse. Visa-se incentivar a utilização de meios consensuais de resolução de disputas como forma de efetivar o acesso à Justiça, de promover responsabilidade social e também de alcançar eficiência operacional na gestão dos recursos do Poder Judiciário.

Com este escopo, em agosto de 2006, durante a gestão da Ministra Ellen Gracie no CNJ, foi lançado o "Movimento pela Conciliação", com o slogan Conciliar é Legal. Nesta ocasião, a Ministra Presidente fez um pronunciamento destacando alguns aspectos fundamentais do Programa, que se tornaria uma das vitrines do CNJ. Em suas palavras:

A conciliação é o caminho para a construção de uma convivência mais pacífica. O entendimento entre as partes é sempre a melhor forma para que a Justiça prevaleça. O objetivo é uma sociedade capaz de enfrentar suas controvérsias de modo menos litigioso, valendo-se da conciliação, orientada por pessoas qualificadas, para diminuir o tempo na busca da solução de conflitos e reduzir o número de processos, contribuindo, assim, para o alcance da paz social.3

A partir deste impulso inicial, desdobraram-se outras iniciativas do CNJ direcionadas a estimular e padronizar as atividades de conciliação e mediação nos tribunais. O objetivo do presente artigo é discutir essa atuação do CNJ, tendo em vista as vantagens que a autocomposição proporciona às partes, ao Poder Judiciário e à sociedade.

O ponto de partida do debate é conhecer o retrato do Poder Judiciário brasileiro fornecido pelo próprio CNJ, que permite identificar as deficiências e os desafios para o aprimoramento dos serviços Judiciários. Em seguida, serão colocados em perspectiva os benefícios da utilização de métodos consensuais de solução de conflitos em face do modelo adversário de heterocomposição, destacando a lógica comunicativa e a participação das partes no deslinde das controvérsias. Reserva-se para a parte final a análise dos projetos e ações do CNJ, institucionalizados pela Resolução n. 125/2010, que "dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário".

Diagnóstico e desafios do poder judiciário brasileiro

Todos os anos o CNJ disponibiliza um raio x do Poder Judiciário por meio da divulgação do relatório "Justiça em Números". O relatório mapeia, com o auxílio de tabelas, infográficos e outros instrumentos estatísticos, os dados relacionados à gestão opera-cional, gastos orçamentários, recursos humanos e produtividade dos tribunais nos diversos ramos e segmentos da Justiça.

No ano de 2013, além dos resultados relativos ao ano-base de 2012, o relatório apresentou a série histórica do quadriênio 2009/2012, permitindo uma análise evolutiva do desempenho do Poder Judiciário. Os indicadores produzem um diagnóstico sobre os principais gargalos e pontos de entrave da prestação jurisdicional, que devem servir como subsídio à construção de estratégias e políticas de enfrentamento aos desafios da Justiça brasileira.

No campo do acesso à Justiça, os elevados índices de litigiosidade se apresentam como um fenômeno complexo e que demanda especial atenção. O total de processos em tramitação no Poder Judiciário aumenta gradativamente desde 2009, tendo alcançado a marca de 92,2 milhões de processos em

Page 89

2012. Neste último ano, a movimentação processual registrou um crescimento de 8,4% no número de casos novos que ingressaram no sistema Judiciário.

Como consequência, embora se verifique uma alta na produtividade dos tribunais, mensurada pela quantidade de casos que foram julgados e baixados, o estoque de processos aumentou, agravando a sobrecarga de serviços. Outro fator que espelha a morosidade da prestação jurisdicional é a elevada taxa de congestionamento, apurada no patamar de 69,9%, o que significa que, a cada 100 processos que tramitaram em 2012, apenas 30 foram solucionados4.

Diante desse diagnóstico, é necessário discutir a adequação do modelo processual vigente para resolver, de forma efetiva e satisfatória, as disputas que são levadas ao sistema Judiciário. Deve-se tomar em conta, em primeiro lugar, a crescente judicialização das relações sociais, observada com grande nitidez no Brasil. Um de seus componentes é a própria conflituosidade social, que constitui um fator exógeno ao sistema de justiça, tornando inviável um controle sobre a quantidade de demandas que são judicializadas.

Por um lado, a judicialização indica o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário como ator político central para a construção da cidadania, sendo chamado a exercer tutela sobre causas coletivas e a garantir interesses difusos e direitos sociais. Mas essa atuação não está imune a críticas, dirigidas contra um ativismo judicial que seria ofensivo à separação de poderes na medida em que o Judiciário intervém, v. g., na execução de políticas públicas5.

Por outro lado, não há dúvida de que o aumento dos processos judiciais reflete uma ampliação do acesso à Justiça para setores marginalizados da população, que se deparam historicamente com barreiras sociais e econômicas para ingressar nos tribunais. Neste ponto, a conquista da assistência judiciária gratuita foi um passo importante para garantir que todos possam recorrer ao Poder Judiciário a fim de reclamar direitos e resolver litígios6.

Entretanto, o acesso à Justiça não se esgota no acesso formal ao Poder Judiciário. Como demons-trado por André Gomma de Azevedo, o movimento de acesso à Justiça atravessou três períodos distintos: o primeiro teve como objeto expandir a garantia do mero acesso, buscando reduzir a chamada "litigiosidade contida"; o segundo momento passou a exigir que a resposta dada pelo Poder Judiciário seja tempestiva, ou seja, oferecida dentro de um prazo razoável; e o terceiro e atual período veio incluir como requisito a solução definitiva do conflito, com a satisfação das partes envolvidas7.

Por isso é que se defende hoje um conceito de acesso qualificado à Justiça. Neste aspecto, além da morosidade, embora a sentença coloque fim à relação jurídica processual, persiste, com muita frequência, uma litigiosidade remanescente, a indicar que os conflitos de interesse não foram efetivamente resolvidos.

A insatisfação dos usuários do sistema de Justiça demonstra os limites da jurisdição, tanto no plano da efetividade, como no plano da solução das controvérsias. Em particular quando se trata de relações continuadas e com forte componente emocional, há que se questionar se a solução adjudicada é o melhor caminho para tratar dos conflitos de interesse8.

Este é um questionamento necessário porque confronta a "cultura da sentença"9 tão consolidada no ensino jurídico, quando apresenta o processo civil amarrado ao modelo-padrão que submete as disputas à apreciação de um terceiro investido no poder decisório do Estado-juiz. Tal processualística tem cultivado uma lógica adversarial e competitiva, que polariza e coloca as partes em posições antagônicas, além de restringir os resultados...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT