Políticas para a implementação do direto ao acesso a medicamentos no Brasil
Autor | Flávia Piovesan - Patrícia Luciane de Carvalho |
Cargo | Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Professora de Direito Internacional e de Propriedade Intelectual da Universidade Anhembi/Morumbi/SP. |
A Constituição Brasileira de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. O texto constitucional demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático “pós ditadura”. Após vinte e um anos de regime autoritário, objetiva a Constituição resgatar o Estado de Direito, a separação dos poderes, a Federação, a Democracia e os direitos fundamentais, à luz do princípio da dignidade humana. O valor da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1
O preâmbulo da Constituição Federal estabelece a instituição do Estado Democrático, o qual “destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”, assim como o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social. O artigo 3º estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil uma sociedade justa, solidária, a garantia ao desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza, redução das desigualdades regionais e a promoção do bem de todos.
Introduz a Carta de 1988 um avanço extraordinário na consolidação dos direitos e garantias fundamentais, situando-se como o documento mais avançado, abrangente e pormenorizado sobre a matéria, na história constitucional do país. É a primeira Constituição brasileira a iniciar com capítulos dedicados aos direitos e garantias, para, então, tratar do Estado, de sua organização e do exercício dos poderes. Ineditamente, os direitos e garantias individuais são elevados a cláusulas pétreas, passando a compor o núcleo material intangível da Constituição (artigo 60, parágrafo 4
De todas as Constituições brasileiras, foi a Carta de 1988 a que mais assegurou a participação popular em seu processo de elaboração, a partir do recebimento de elevado número de emendas populares. É, assim, a Constituição que apresenta o maior grau de legitimidade popular.
A Constituição de 1988 acolhe a idéia da universalidade dos direitos humanos, na medida em que consagra o valor da dignidade humana, como princípio fundamental do constitucionalismo inaugurado em 1988. O texto constitucional ainda realça que os direitos humanos são tema do legítimo interesse da comunidade internacional, ao ineditamente prever, dentre os princípios a reger o Brasil nas relações internacionais, o princípio da prevalência dos direitos humanos. Trata-se, ademais, da primeira Constituição Brasileira a incluir os direitos internacionais no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos.
Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, há que se enfatizar que a Carta de 1988 é a primeira Constituição que integra ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais e econômicos, que nas Cartas anteriores restavam pulverizados no capítulo pertinente à ordem econômica e social. Observe-se que, no Direito brasileiro, desde 1934, as Constituições passaram a incorporar os direitos sociais e econômicos. Contudo, a Constituição de 1988 é a primeira a afirmar que os direitos sociais são direitos fundamentais, tendo aplicabilidade imediata.
Nesse passo, a Constituição de 1988, além de estabelecer no artigo 6º que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, ainda apresenta uma ordem social com um amplo universo de normas que enunciam programas, tarefas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade. A título de exemplo, destacam-se dispositivos constitucionais constantes da ordem social, que fixam, como direitos de todos e deveres do Estado, a saúde (artigo 196), a educação (artigo 205), as práticas desportivas (artigo 217), dentre outros. Nos termos do artigo 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação3. Para os direitos sociais à saúde e à educação, a Constituição disciplina uma dotação orçamentária específica4, adicionando a possibilidade de intervenção federal nos Estados em que não houver a observância da aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (artigo 34, VII, e).
A ordem constitucional de 1988 acabou por alargar as tarefas do Estado, incorporando fins econômico-sociais positivamente vinculantes das instâncias de regulação jurídica. A política deixa de ser concebida como um domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado. Os domínios da política passam a sofrer limites, mas também imposições, por meio de um projeto material vinculativo. Surge verdadeira configuração normativa da atividade política. Como afirma J.J.Gomes Canotilho: “A Constituição tem sempre como tarefa a realidade: juridificar constitucionalmente esta tarefa ou abandoná-la à política, é o grande desafio. Todas as Constituições pretendem, implícita ou explicitamente, conformar o político”.5
Cabe ainda mencionar que a Carta de 1988, no intuito de proteger maximamente os direitos fundamentais, consagra dentre as cláusulas pétreas, a cláusula “direitos e garantias individuais”. Considerando a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, a cláusula de proibição do retrocesso social6, o valor da dignidade humana e demais princípios fundamentais da Carta de 1988, conclui-se que esta cláusula alcança os direitos sociais. Para Paulo Bonavides: “os direitos sociais não são apenas justiciáveis, mas são providos, no ordenamento constitucional da garantia da suprema rigidez do parágrafo 4
Reitere-se que os direitos fundamentais são os indicados no Título II compreendendo os direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos. O acesso a medicamentos, decorrente do direito à saúde, encontra-se no artigo 6º, portanto, direito fundamental, por conseguinte, deve ser aplicado imediatamente, conforme estabelece o parágrafo 1º do artigo 5º8. Vale dizer, aplica-se ao direito à saúde o regime jurídico dos direitos fundamentais. Tem-se, ainda, a saúde detalhada no artigo 196 9 do Título VIII – Da Ordem Social, em que este dispositivo operacionaliza o direito à saúde indicado no artigo 6º. Do texto depreende-se que a saúde condiciona-se a políticas sociais e econômicas e da sua promoção, proteção e recuperação pelo Estado. O artigo 196 e seguintes demonstram a importância maior que possui a saúde na qualidade de direito que é condição mesma para o exercício de outros direitos. Daí a necessidade de ser ela protegida de forma prioritariamente preventiva. Mas, em decorrência do artigo 6º, quando requerida, deve ser prestada imediatamente.
É com a Constituição que se criou o Sistema Único de Saúde, que deve primar pela saúde preventiva e pelo seu fornecimento universal. Da leitura dos artigos 196 a 200, têm-se a enumeração, não taxativa, das atividades do Estado frente à saúde e percebe-se que são condutas a serem executadas no tempo com o emprego de orçamento progressivo e solidário entre os entes estatais. Outro não poderia ser o entendimento analisando-se sistematicamente o artigo 170, o qual se encontra no Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira e refere-se aos princípios gerais da atividade econômica. A ordem econômica, em que pese o enfoque econômico, tem como finalidade assegurar existência digna, consoante os ditames da justiça social.
Dentro desta contextualização, o artigo 20010 estabelece a participação do Estado junto à ordem econômica, pelo Sistema Único de Saúde, na produção de medicamentos e incremento, em sua área de atuação estatal, do desenvolvimento científico e tecnológico.
Da análise constitucional percebe-se a necessária conjugação dos dispositivos, bem como o reconhecimento da atuação preventiva estatal, não apenas no fornecimento de medicamentos, mas também na interferência da ordem econômica voltada ao desenvolvimento. Este direito humano é propulsor de outros direitos humanos, assim corresponde a elemento essencial para o exercício da vida digna.
Adicione-se que, desde o processo de democratização do país e em particular a partir da Constituição Federal de 1988, os mais importantes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, destacando-se, no âmbito dos direitos sociais e econômicos, a ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1992 e...
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