A poison pill brasileira: proteção da dispersão acionária ou reforço do poder de controle?

AutorLeandro Vilarinho Borges - Lucas Petri Bernardes - Marcelo Tadeu Cometti - Wilson Nakayama
Páginas231-244

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1. Introdução

O desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro faz surgir uma série de questões que precisam ser tratadas pelo Direito. Diante do desafio, muitas vezes olhamos para os mercados mais maduros em busca de experiências que possam ser aproveitadas no país, nas suas formas originais ou mediante adaptações.

Sem sombra de dúvidas, e por inúmeras razões, os Estados Unidos da América constituem uma das principais fontes de inspiração, vindo daquele país as chamadas poison pills, recentemente em debate na doutrina e sob o escrutínio da Comissão de Valores Mobiliários.

Com efeito, a economia daquele país é a que apresenta de forma mais acentuada os fatores que ensejam a existência destas disposições estatutárias, a saber, a dispersão acionária e a existência de um mercado de controle. Como é de conhecimento geral, essas disposições estatutárias consistiriam na criação de mecanismos de proteção da companhia e de seus acionistas em face de ofertas de aquisição, sobretudo diante daquelas denominadas de hostis, ou seja, que não contam com o apoio da administração da companhia visada.

As configurações são inúmeras, com os mais diferentes nomes, descabendo aqui uma abordagem extensiva do assunto, nos interessando destacar aqui o fundamento de seu surgimento: a constatação, dada pela teoria dos jogos, de que o acionista perde ao agir individualmente, ganhando muito mais com a cooperação.

De fato, diante de uma oferta de aquisição, o acionista, individualmente, acaba

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enfrentando algumas possibilidades muito ruins: a) não vender na primeira etapa da oferta e acabar compelido a vender em uma segunda, com preço inferior (second-tier price); b) não vender e acabar com uma participação minoritária em uma companhia de baixa liquidez, caso o adquirente consiga a grande maioria das ações; c) ser ainda mais diluído ou ter o preço da ação ainda mais desvalorizado em uma operação societária subsequente, de incorporação ou fusão (freeze out/squeeze out).

Assim, diante do desconhecimento acerca do comportamento dos demais, só resta ao acionista a estratégia dominante de venda na primeira oferta, por mais que ele entenda que o preço não é adequado. A cláusula estatutária denominada de poison pill surgiria, nessa perspectiva, para garantir que o acionista não se sinta compelido a vender, estabelecendo, usualmente, procedimentos para: a) negociação coletiva do preço a ser pago para aqueles que aceitarem a oferta; b) garantia de igualdade para aqueles que quiserem aceitar a oferta; c) mecanismos de defesa, caso se conclua pela rejeição da oferta. Ademais, a existência dapoison pill desestimula também a escalada em bolsa, garantindo que um investidor não se aproveite da dispersão acionária para tomar facilmente o controle da companhia.

As estratégias, conforme mencionamos,2 são muitas, mas o traço comum entre elas é a proteção geral dos acionistas e, indiretamente, da dispersão acionária. Por mais que determinado mecanismo se apóie na conduta dos administradores, usualmente responsáveis nos EUA pela deflagração dos procedimentos ou pela negociação com a companhia ofertante, a legislação e a jurisprudência daquele país são incisivas ao proibirem a retirada do poder de decisão dos acionistas ou a tomada de qualquer medida que afaste, peremptoriamente ou sem qualquer análise, as ofertas.3

A questão que surge, tema central do presente artigo, é saber se o instituto criado nos EUA vem sendo aplicado da mesma maneira no Brasil ou, mais propriamente, se vem sendo utilizado com os mesmos objetivos. Para tanto, foi realizado um levantamento das 119 (cento e dezenove) companhias do segmento "Novo Mercado" daBM&FBovespa, com a análise de cada um dos seus estatutos sociais e das informações prestadas por estas companhias à Comissão de Valores Mobiliários, com a finalidade de verificar, na prática brasileira, a aplicação do instituto.

Deste modo, passaremos por uma breve análise das características das cláusulas encontradas nos diversos estatutos sociais, procurando identificar se existe uma "poison pill brasileira", depois para uma exposição dos dados levantados e, na sequencia, das conclusões que podem extraídas destes dados.

2. A "poison pill" brasileira

A poison pill pode ser compreendida como um instrumento jurídico adotado pela companhia com o intuito de dificultar a aquisição de poder de controle oriunda de uma oferta hostil - diretamente endereçada aos acionistas da companhia, sem consulta prévia à sua administração. Neste sentido, Modesto Carvalhosa4 vislumbra, juntamente com a poison pill estatutária, a possibilidade da existência de uma poison pill legal (art. 254-A da Lei 6.404/1976) e de uma poison pill contratual (art. 118 da Lei 6.404/1976).

Em uma primeira análise, a regra contida no art. 254-A da Lei 6.404/1976 sobre

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tag along poderia ser tida como umapoison pill legal na medida em que a sua incidência torna mais onerosa a aquisição das ações referentes ao exercício do poder de controle, pois o adquirente dessas ações deve estender aos minoritários ordinaristas, oferta que lhes assegure, no mínimo, 80% do preço a ser pago às ações dos controladores. Em se tratando de companhias listadas no segmento do Novo Mercado, esse valor sobe para 100%. No entanto, apesar da aparente finalidade de dificultar a aquisição do poder de controle, a regra contida no art. 254-A tem como verdadeira finalidade dispensar tratamento mais igualitário aos acionistas minoritários detentores de ações ordinárias e não impedir a alteração do poder de controle.

Na mesma linha, a regra contida no art. 118 da Lei 6.404/1976 traz a possibilidade da celebração de acordo de acionistas que estabeleçam direito de preempção para a aquisição das ações vinculadas ao acordo. Essa hipótese, se prevista no acordo de acionistas, poderia ser considerada uma poison pill contratual, mas tal como a poison pill legal, apenas dificultaria a alienação do poder de controle, na medida em que as partes signatárias do acordo teriam preferência na aquisição das ações em detrimento de terceiro. No entanto, essa limitação só atingiria os acionistas integrantes do acordo, sendo, portanto, aparentemente ineficaz frente às aquisições hostis destinadas a todos os acionistas da companhia.

No Brasil, verifica-se uma lacuna re-gulatória sobre as transferências de controle nas companhias de capital disperso. Essa lacuna regulatória tem dado espaço para que as próprias companhias busquem, através de cláusulas inseridas em seus estatutos, as chamadaspoisonpills, resolver alguns desses problemas, tais como a manutenção do capital disperso (free-float mínimo exigido pelas regras do Novo Mercado da Bovespa de 25% do capital total); a coordenação dos acionistas, evitando assim tratamento diferenciado entre eles (tomada de controle mediante "escalada na Bolsa de Valores"); a insegurança e instabilidade quanto à continuidade do grupo controlador e sua administração.

A poison pill mais utilizada pelas companhias abertas, no Brasil, consiste em cláusula estatutária estabelecendo que a aquisição de determinado percentual de ações de emissão da companhia no mercado gera, para o adquirente, o dever de realizar Oferta Pública de Aquisição de ações (OPA) dirigida a todos os demais acionistas. Em regra, essa cláusula prevê critérios de avaliação que fazem com que o preço de aquisição das ações seja bastante elevado, desestimulando um eventual ofertante. Caso o adquirente não cumpra a obrigação imposta pelo estatuto da companhia, em regra, se prevê a convocação de Assembleia Geral com o propósito de deliberar sobre a suspensão do exercício dos seus direitos, sem prejuízo da sua responsabilidade por perdas e danos causados aos demais acionistas e à companhia.

Ressalta-se, entretanto, que as poison pills não se resumem às cláusulas estatutárias que estabelecem a obrigação de realização de Oferta Pública de Aquisição de Ações (OPA) dirigida a todos os acionistas, muito embora tenha sido este o tipo ultimamente mais utilizado pelas companhias brasileiras. Conforme Modesto Carvalhosa,5 nos Estados Unidos e na Inglaterra, existem diversas outras modalidades, tais como (i) emissão de bônus de subscrição que outorguem aos seus titulares o direito de subscrever ações pelo valor inferior ao de mercado, no momento do anúncio de oferta hostil de aquisição do poder de controle; (ii) emissão de debêntures resgatáveis por um valor elevado na hipótese de anúncio de um takeover hostil; (iii) White knights: após anúncio da oferta hostil, a empresa alvo incorpora outra companhia, a fim de tornar a aquisição mais custosa para o ofertante; (iv) pac man: a companhia alvo da oferta hostil lança uma contraoferta pela aquisição das ações de emissão da própria

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ofertante, a fim de obstar a concretização do negócio; (v) compra ou venda de ativos relevantes no curso da oferta.

As poison pills objetivam, em tese, dificultar uma alienação do poder de controle em decorrência de um takeover hostil e evitar a aquisição do controle mediante "escalada" na Bolsa, funcionando, neste sentido, como medidas anti-takeover. Observa-se, entretanto, que das companhias brasileiras listadas no Novo Mercado e que possuem em seu estatuto social aspoisonpills, o percentual mínimo previsto para disparar a OPA ("gatilho") é muito inferior à participação dos maiores acionistas, inclusive daqueles que exercem o controle minoritário. Em consequência, na maioria dos casos, a OPA estatutária pode ser...

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