Poder punitivo

AutorAldacy Rachid Coutinho
Páginas227-232

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Ver nota 1

  1. O conceito central do Direito do Trabalho é, sem sombra de dúvidas, o de poder ao qual o trabalho - caracterizado exatamente pela ausência de poder - se submete, sendo que a sua expressão, particularmente na revelação de seu caráter disciplinar, é significativa na medida em que permite identificar e compreender como é transposto o sistema econômico capitalista de mercado, não monopolista, para um dado sistema jurídico normativo.

    E, ainda, é a possibilidade de se adotar e atribuir a um dos sujeitos da relação jurídico-obrigacional em uma estrutura contratual interprivada um poder punitivo que nos revela uma das funções latentes (reais) do Direito do Trabalho, a par da função de mascaramento e de ocultação, que se constitui na função normalizadora/docilizadora da classe trabalhadora (ao lado do Direito Penal), a par da função declarada ou manifesta de garantia de cumprimento das ordens emanadas pelo empregador2.

    No entanto, algumas especificidades no Direito do Trabalho brasileiro, diferentemente do que ocorre no âmbito do Direito Penal, tal qual a inexistência de imposição de observância do princípio da legalidade (salvo em se tratando de condutas típicas descritas no art. 482 da CLT), denota o diminuto (ou inexistente) grau de democracia introduzido nas relações de emprego, assim como a não obrigatoriedade de atendimento de direitos fundamentais e garantias constitucionais igualmente demonstra o deficit de constitucionalidade ao qual ainda está submetido. A Constituição da República de 1988, mesmo depois dos seus quase trinta anos, em uma inversão ideológica, continua sendo interpretada conforme a Consolidação das Leis do Trabalho, ainda, que já nos idos de 1900 havia relato de demandas pela constituição de conselhos de fábrica e apontamento de déficit constitucional:

    [...] los conflictos que estallan en la empresa industrial tienen su origen en el hecho de que ésta está organizada según el modelo del régimen despótico en el que el patrón es un monarca absoluto; es preciso, por tanto, hacer desaparecer semejante anacronismo y llevar a cabo en la industria esa transformación que supuso, en el orden político, la sustituición del gobierno autoritario por el gobierno constitucional, en suma, ‘introducir el sistema constitucional en la industria’; esto implica la creación en la fábrica de un parlamento, elegido mayo-ritariamente por los obreros y, en parte, por el patrón.3

    É que o sistema das relações jurídicas trabalhistas pensado para impor ordem e disciplina no sistema fabril ainda se faz presente. Impõe-se a necessidade de repensá-lo, aqui tomado pela análise crítica do poder punitivo.

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  2. O capital produtivo é, no âmbito do Direito do Trabalho, assumido na forma jurídica empresarial, como empregador. E o empregador é um centro de imputação de poder: poder de organização, poder diretivo em sentido amplo do qual decorrem os poderes de regulamentação, de direção, comando, fiscalização e punitivo. De natureza nuclear, complexa e multifacetária, vem relacionado ora com a liberdade de iniciativa da empresa, ora com o sistema das relações laborais, ora com a estrutura contratual por onde transita, ora com a organização econômica produtiva. Distintas abordagens, diferentes olhares, múltiplas perspectivas levam a uma única realidade: quem manda, as razões para comandar e quem obedece, as razões para obedecer4.

    Em geral, o poder disciplinar, sancionador ou punitivo - como se queira nominá-lo - éo poder que detém o empregador de punir, aplicando medidas disciplinares/sancionatórias/punitivas a empregados em decorrência de infrações cometidas; está funcionalizado, sendo apresentado em geral como inafastável, enquanto instrumento de efetividade ou eficácia das demais formas de revelação do poder; daí decorre sua posição instrumental ou acessória em relação aos demais poderes, sobretudo ao poder diretivo em sentido amplo5.

    Todavia, é preciso compreendê-lo na sua autonomia6, na medida em que não se restringe, na forma com que vem aceito e disseminado nas relações de emprego, como mero corolário do poder diretivo para o âmbito das relações de emprego e como instrumento garantidor do cumprimento do conteúdo do contrato de trabalho. Não está intrinsecamente relacionado com a disponibilidade da força de trabalho, no local de trabalho e durante a jornada de trabalho. Algumas condutas prescritas e tipificadas denotam a função norma-lizadora dos sujeitos: "prática constante de jogos de azar" ou "embriaguez permanente ou no serviço"exemplificam o escopo último que é o controle de condutas sociais (art. 482, letras "f"e "l", da CLT).

    É preciso, ainda, ressaltar que "as disciplinas estabelecem uma ‘infra-penalidade’; quadricular um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença". Assim, tudo o que "pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não conforme"7. A punição integra, na disciplina, um "elemento de um sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e de correção", "marcando desvios, hierarquizando as qualidades, as competências e as aptidões"8. Diferençar para castigar e recompensar:

    Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto - que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a ‘natureza’ dos indivíduos.Fazer funcionar, através dessa medida ‘valorizadora’, a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal. [...] A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.9

    Afirma-se que podem se modificar os modos de se obter a disciplina, mas na empresa capitalista sempre haverá um "poder continuo, con efeito produtivo máximo, con coste mínimo, que se exerce sobre mas as importantes de hombres"10. Esse

    Direito do Trabalho que emerge a partir de uma suposta necessidade de impor ordem e disciplina no sistema fabril, como manifestação juridicizada do poder, é apresentado como inelutável, como fatalidade e com pretensões de cientificidade, contra a qual o trabalhador não tem como resistir11.

  3. Disseminado nas relações sociais, Poder, a partir de conceitos weberianos, se traduz na possibilidade de fazer com que outro faça o que se quer que ele faça, ou seja, a oportuni-dade existente em uma relação social juridicizada de emprego da imposição da vontade do capital ao trabalho, mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual se fundamenta12.

    E, no emprego, a dominação do capital/empregador, assim tomada como a aceitação do poder, ou a oportunidade

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    ou probabilidade de ter sua ordem ou comando obedecida pelo trabalho/empregado é plena, ampla e naturalizada, sendo legitimada pela Autoridade, inclusive a do Direito. Trata-se de uma obrigação legal em uma estrutura contratual, enquadrada sob o manto do dever de obediência e fidelidade.

    O Direito como discurso narrativo, ainda que somente no imaginário, tomado na sua expressão do "justo" e da implementação de "sensação"de segurança, reduz-se a instrumento de legitimação do poder que o precede. O Direito não instala, mas invoca o poder, que o preexiste. A justiça decorre da crença de que se as leis forem respeitadas por todos não se instalará o...

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