O poder no contrato de trabalho - diretivo, regulamentar, fiscalizatório, disciplinar

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas785-836

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I Introdução

Um dos mais importantes efeitos próprios ao contrato de trabalho consiste, conforme já indicado no capítulo anterior, no poder empregatício. Em suas diversas dimensões — diretiva, regulamentar, fiscalizatória, disciplinar —, esse poder concentra um conjunto de prerrogativas de grande relevo socioeconômico, que favorecem, regra geral, a figura do empregador, conferindo-lhe enorme influência no âmbito do contrato e da própria sociedade.

Na verdade, o fenômeno do poder, em suas diversas áreas e projeções, é um dos mais relevantes e recorrentes na experiência histórico-social do homem. Em qualquer relação minimamente constante (e mesmo em inúmeros contatos apenas episódicos) entre duas ou mais pessoas ou entre grupos sociais mais amplos, o fenômeno do poder desponta como elemento central. Seja na dimensão estritamente interindividual, seja na dimensão que se estende cada vez mais ao universo societário, o poder surge como componente decisivo da experiência humana.

No contexto empregatício manifesta-se uma das dimensões mais importantes do fenômeno do poder no mundo contemporâneo. De fato, ao se saber que a relação de emprego constitui a relação de trabalho mais significativa do sistema econômico ocidental inaugurado há pouco mais de duzentos anos, depreende-se a relevância que tem, para a própria compreensão da atual sociedade, o conhecimento acerca do fenômeno do poder empregatício. Na verdade, essa dimensão específica do poder sofre os efeitos da configuração global do fenômeno no conjunto da sociedade (o contexto democrático ou autoritário mais amplo da sociedade influi na estrutura e na dinâmica do poder internas ao estabelecimento e à empresa). Do mesmo modo, o tipo de configuração do poder empregatício também cumpre importante papel no avanço e solidificação do processo democrático (ou autoritário) no conjunto mais amplo da sociedade envolvida.

Por todas essas razões, mesmo o operador jurídico preocupado em se debruçar sobre os aspectos técnico-jurídicos dessa específica dimensão do

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poder não pode descurar-se de lhe perceber as projeções e reflexos sociais, efeitos muitas vezes decisivos à própria compreensão de sua estrutura e dinâmica meramente jurídicas1.

II Poder empregatício: conceito e caracterização
1. Conceituação

Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços2.

A doutrina não se utilizava da expressão poder empregatício para se reportar ao fenômeno aqui em exame. Preferia produzir referências próprias àquilo que consideramos as diversas faces ou dimensões do mesmo fenômeno, quais sejam, poder diretivo, poder regulamentar, poder fiscalizatório, poder disciplinar. Não obstante essa antiga tradição (hoje já relativamente superada), é sem dúvida vantajoso, do ponto de vista teórico e prático, apre-ender-se, em uma específica denominação (poder empregatício ou poder intraempresarial), a integralidade de um mesmo fenômeno que apenas se desdobra, no plano operacional, em dimensões e manifestações variadas.

Poder Empregatício versus Poder Hierárquico — A doutrina, contudo, já se utilizou de expressão de caráter geral para designar o fenômeno aqui examinado. Trata-se da denominação poder hierárquico.

Hierárquico seria o poder deferido ao empregador no âmbito da relação de emprego consistente em um conjunto de atribuições com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia inter-na à empresa e correspondente prestação de serviços. O poder hierárquico abrangeria todas as demais dimensões do fenômeno do poder no contexto empresarial interno (assim como a novel expressão poder empregatício).

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Embora essa larga abrangência possa conferir à velha denominação um lado funcional (isto é, prático), ela não esconde a face autoritária e retrógrada — portanto equívoca — inerente à ideia de “hierárquico3.

Tal expressão, afinal, carrega-se de rigidez incompatível com qualquer processo de democratização do fenômeno intraempresarial de poder. Trazida ao Direito do Trabalho por inspirações administrativistas ou institucionalistas já superadas há longa época pela mais arejada teoria justrabalhista, a expressão, mesmo hoje, não deixa de evocar uma lembrança severa, implacável e hirta do fenômeno do poder na empresa. Como bem apontado por Arion Sayão Romita, a hierarquia “...importa um poder de senhoria do superior em face do inferior, do qual este não pode unilateralmente livrar-se”4.

Não é por outra razão que alguns juristas já tendem a considerar essa noção fundamentalmente como mero rescaldo do velho corporativismo5.

Por todos esses fundamentos, é inevitável concluir-se que o lado prático, funcional, do epíteto perde-se em decorrência do equívoco filosófico e teórico subjacente à noção de poder hierárquico.

De qualquer modo, esse lado prático poderia ser atendido pelas simples expressões poder intraempresarial ou poder empregatício, de que seriam manifestações específicas e combinadas os chamados poderes diretivo, regulamentar, fiscalizatório e disciplinar. Assim, considera-se mais acertado referir-se ao fenômeno global do poder no âmbito da relação de emprego pela expressão genérica poder empregatício (ou se se preferir, poder intraempresarial), em vez de poder hierárquico.

2. Caracterização

O poder empregatício divide-se em poder diretivo (também chamado poder organizativo), poder regulamentar, poder fiscalizatório (este também chamado poder de controle) e poder disciplinar.

Como será visto a seguir, as duas dimensões do poder intraempresarial que têm alcançado certa amplitude, consistência e identidade próprias, a ponto de justificarem, pacificamente, sua designação como modalidades específicas do poder empregatício, são os poderes diretivo e disciplinar.

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No tocante aos poderes regulamentar e fiscalizatório tem-se questionado sua real identificação como modalidades específicas do poder empregatício, preferindo-se enxergá-los como manifestações conexas ou extensivas do próprio poder de direção.

A) Poder DiretivoPoder diretivo (ou poder organizativo ou, ainda, poder de comando) seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços.

Luiza Riva Sanseverino define-o como o poder atribuído ao empregador “(...) de determinar as regras de caráter predominantemente técnico-organizativas que o trabalhador deve observar no cumprimento da obrigação”6.

Aduz a autora que mediante “o exercício do poder diretivo o empregador dá destinação correta às energias de trabalho (...) que o prestador é obrigado a colocar e a conservar à disposição da empresa da qual depende”7.

A concentração do poder de organização faz-se na figura do empregador. Isso se explica em face do controle jurídico, sob diversos ângulos, que o empregador tem sobre o conjunto da estrutura empresarial e em face também do princípio de assunção dos riscos do empreendimento que sobre ele recai.

Entretanto, há ressalvas no tocante a essa concentração. É que a democratização da sociedade política ocidental e a própria democratização do sistema de poder prevalecente dentro da empresa podem levar a um contingenciamento desse poder organizativo e de comando no que diz respeito à relação de emprego. Embora essas conquistas democratizantes apenas timidamente tenham alcançado a experiência juspolítica brasileira, não se pode negar a possibilidade de seu desenvolvimento histórico no País.

B) Poder Regulamentar Poder regulamentar seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à fixação de regras gerais a serem observadas no âmbito do estabelecimento e da empresa.

Embora haja importantes vozes doutrinárias que identificam nessa atividade regulamentadora interna uma específica dimensão do poder empregatício8, prepondera avaliação contrária.

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Segundo a análise dominante, não seria justificável a percepção de uma identidade própria no chamado poder regulamentar; na verdade, este seria mera expressão (isto é, manifestação exterior) do poder diretivo. É que o poder diretivo somente poderia concretizar-se através da utilização de meios informais e formais de comunicação com o público intraempresarial (portanto, desde instruções diretas e pessoais a cada trabalhador até a expedição de regras gerais — regulamentos escritos, circulares e ordens de serviço)9.

Noutras palavras, a linguagem (seja escrita seja verbal) seria instrumento central de exteriorização do poder diretivo, razão por que não poderiam seus instrumentos ser considerados...

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