Poder familiar versus proselitismo religioso do empregado doméstico: qual o desfecho constitucionalmente adequado?
Autor | Aloisio Cristovam dos Santos Junior |
Cargo | Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul |
Páginas | 34-44 |
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Independentemente do ambiente no qual se manifeste, o proselitismo religioso é a mais resistida dentre todas as posições jurídicas que compõem o acervo do direito fundamental completo da liberdade religiosa1 e provavelmente aquela com maior potencial para gerar tensões nos relacionamentos intersubjetivos. Não poderia ser diferente, portanto, no ambiente onde se desenvolvem as relações laborais. Ao contrário, não é exagerado dizer que de todos os conflitos que podem se apresentar no ambiente de trabalho tendo como pano de fundo o fator religioso, aqueles motivados pelo proselitismo, se não são os que ocorrem com maior frequência2, certamente, são os mais desafiadores.
No entanto, não é possível sustentar como regra, pelo menos no ordenamento jurídico brasileiro, que o empregador tenha a prerrogativa de suprimir a expressão religiosa no ambiente de trabalho. Conspiram contra o reconhecimento de tal prerrogativa: a) a função social da propriedade, que impõe que
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a atividade empresarial favoreça o bem-estar dos trabalhadores, o que inclui a promoção dos seus direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade religiosa; b) a ideologia constitucional brasileira, tendencialmente favorável à expressão religiosa3; c) o respeito à autonomia e à dignidade do trabalhador crente. Em verdade, o direito de expressar a religiosidade no ambiente de trabalho, inclusive por meio do proselitismo, deve ser, em princípio, resguardado4, conquanto inteiramente cabível que se lhe ponham restrições de modo a que não seja exercido de forma abusiva5.
Na relação de trabalho doméstico, contudo, por conta de certas peculiaridades e notada-mente pelo ambiente onde se desenvolve, o proselitismo religioso levanta alguns problemas que desafiam um tratamento diferenciado, na medida em que há interesses em jogo que não se reduzem à atividade económica e se acham ausentes nas outras espécies de contrato de trabalho6. Avulta, dentre esses interesses, o poder familiar.
Não é difícil imaginar situações de tensão ou mesmo de conflito aberto entre o poder familiar dos pais e a liberdade religiosa do empregado doméstico. O esforço proselitista do empregado doméstico dirigido às crianças do núcleo familiar para o qual presta serviços pode constituir uma ameaça à harmonia familiar e um problema desafiador, especialmente se veiculado por meio de ações sutis (contar estórias infantis, entoar cânticos religiosos etc). A questão se reveste de maior complexidade nos casos em que os serviços domésticos prestados são os de babá. A liberdade religiosa do empregado, in casu, tem enorme potencial para esbarrar no poder familiar.
O presente texto, apropriando-se da metáfora do combate entre gladiadores, pretende refletir sobre como deve ser resolvida a colisão entre a liberdade religiosa do empregado doméstico, especificamente quando se manifesta por meio do proselitismo religioso, e o poder familiar dos pais. A abordagem inicia-se com a visualização da arena do conflito (a relação
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empregatícia doméstica), passa pela identificação dos interesses colidentes e, por fim, após uma breve digressão sobre a metódica da solução da colisão, propõe uma resposta que se pretende constitucionalmente adequada ao problema.
Nos termos do art. l2 da Lei n. 5.859, de 11 de dezembro 1972 (Estatuto do Trabalhador Doméstico), empregado doméstico é aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas.
Os traços que distinguem a relação de emprego doméstico das demais relações de emprego são os seguintes: a) os serviços são prestados unicamente para pessoa ou família; b) os serviços são realizados no âmbito residencial de pessoa ou família; c) a atividade desenvolvida não possui fins lucrativos.
O destinatário do serviço doméstico será sempre uma pessoa física ou agrupamento familiar de pessoas físicas, unidas por laços de parentesco ou de afinidade7, de modo que a pessoa jurídica jamais deterá a condição de empregador doméstico.
O empregado doméstico presta seus serviços no âmbito residencial de pessoa física ou de família. A noção de "âmbito residencial", porém, não está circunscrita ao prédio onde o empregador doméstico reside, mas à esfera na qual as atividades familiares são desenvolvidas, daí por que, a par dos serviços prestados por mordomos, governantas, cozinheiras, arrumadeiras e babás, tem-se também como doméstico o trabalho prestado pelo motorista particular, pelo jardineiro, pelo piscineiro e pelo caseiro.
Os serviços prestados pelo empregado doméstico beneficiam o núcleo familiar sem gerar qualquer lucratividade para os seus destinatários, vale dizer, atendem a interesses pessoais do tomador ou de sua família e não a interesses económicos específicos de produção e circulação de bens ou serviços.
Do quadro esboçado se conclui que a relação de trabalho doméstico implica uma especial fidúcia com respeito à figura do empregado, mais acentuada que a exigida numa relação de emprego comum, notadamente por causa do ambiente onde os serviços são prestados e da natureza desses serviços, que são estritamente pessoais8. Neste sentido, é que Sebastião Valeriano chega a afirmar que:
A relação de trabalho doméstico é uma relação muito particular. Trata-se de uma relação quase familiar, em que o empregado participa muito diretamente da intimidade da família. O cargo exercido pelo doméstico é de confiança, pois a função está intimamente ligada ao conceito de intimidade familiar.9
A relação de trabalho doméstico, por suas peculiaridades, já levanta problemas cuja solução não pode ser facilmente resolvida com o recurso aos mesmos argumentos utilizados para dirimir conflitos que envolvem as outras espécies de relação de emprego. Isso é particularmente visível nas questões que envolvem o exercício da liberdade religiosa. Neste âmbito, tanto é comum que o empregador doméstico praticante de algum credo funcionalize o comportamento pessoal e familiar em torno de certos valores morais de matriz religiosa aos quais pretende que a conduta do empregado se ajuste, como é comum que o empregado religioso procure, no ambiente familiar do seu empregador, fazer valer as suas convicções religiosas, eventualmente contrárias às do seu patrão.
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O termo proselitismo tem origem etimológica na palavra grega proshlutov (proselutos) que significa literalmente recém-chegado e, entre os judeus, identificava alguém que veio de uma religião pagã para o judaísmo10. A conotação da palavra é, portanto, originariamente religiosa, posto que hoje se tenha tornado comum falar em outras espécies de proselitismo, dentre os quais o proselitismo político e o sindical.
À luz da raiz histórica da palavra, compreende-se proselitismo como a atividade que o crente desenvolve ao difundir, por quaisquer meios, as ideias e crenças que professa com o objetivo de conquistar novos adeptos à sua religião11
A manifestação mais antiga e mais usual de proselitismo é a oral12 Todavia, o proselitismo pode ser praticado na forma escrita e por meio de símbolos e gestos13. A evolução tecnológica, ademais, permite o proselitismo a distância, com destaque para a utilização de meios de comunicação de massa, como evidenciam os inúmeros programas religiosos apresentados diariamente em emissoras de rádio e de TV do Brasil. As páginas da internet e a correspondência eletrônica também têm sido largamente usadas com essa finalidade.
Há que se reter, em suma, que "proselitismo religioso" é uma expressão que identifica toda e qualquer ação promovida por um crente, independentemente da forma pela qual se manifeste, com o desiderato de obter a conversão de outrem à sua fé religiosa.
A importância do direito subjetivo ao proselitismo religioso na ordem constitucional brasileira é inquestionável. Radica tanto na compreensão de que o tratamento dado à liberdade religiosa pelo texto constitucional é flagrantemente refratário a restrições à exteriorização da fé quanto na identificação da divulgação das ideias religiosas com o núcleo essencial da liberdade de manifestação de pensa-mento14, sendo ambas as liberdades essenciais ao livre desenvolvimento da personalidade.
A nossa Constituição adota um modelo de laicidade caracterizado por uma significativa abertura para a expressão religiosa no espaço público, aqui entendido como "o campo de manifestação e de expressão dasociedade"15. Com efeito, desde a referência a Deus no seu
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preâmbulo16, o texto constitucional aponta para a compreensão de que o Estado brasileiro nutre indisfarçável simpatia pelo fenómeno religioso, ao qual, por meio de diversas disposições constitucionais, tributa respeito e valorização.
A compreensão de que o modelo de laici-dade do Estado brasileiro é do tipo tendente ao favorecimento da expressão religiosa - até mesmo, em alguns casos, no âmbito estatal - é, assim, a primeira sinalização de que a liberdade religiosa, no nosso ordenamento constitucional, compreende no seu feixe de posições jurídicas a prática do proselitismo.
Há que se tomar em consideração que a expressão religiosa é um valor que integra o nosso sistema jurídico17. Trata-se de um viés hermenêutico que não pode ser menoscabado, sobretudo a partir da constatação de que o Direito tem que ser interpretado sistematicamente, compreendendo princípios, regras e valores18
Sob tal perspectiva, a interpretação sistemática do preceito constitucional...
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