Poder Familiar: Aspectos Atuais de Direito Material e Processual à Luz das Recentes Alterações Legislativas

AutorJosé Antonio Encinas Manfré; Carlos Dias Motta
Páginas245-261

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1. Introdução

Alterando as originais nomenclatura e forma de cumprimento previstas no Código Civil de 1916, ora vigente (Lei n. 10.406/02), consonante à Constituição da República de 1988, preceitua isonômico tratamento entre os pais, ligados ou não pelo casamento ou por união estável, a propósito do poder familiar, expressão mais ajustada que o vetusto pátrio poder, que consubstanciava demasiados direitos do pai em relação às pessoas dos filhos menores.

Por sinal, esse instituto, representativo de encargos e faculdades dos genitores a serem exercidos com o principal objetivo de satisfazer aos superiores interesses dos filhos menores não emancipados, desde que reconhecidos — promanem, ou não, de matrimônio ou união estável —, há muito deixou de reunir as características de antanho, conforme a seguinte e apropriada síntese de Orlando Gomes:

[...] perdeu sua organização despótica inspirada no direito romano, deixando de ser um conjunto de direitos do pai sobre a pessoa dos filhos, amplos e ilimitados, para se tornar um complexo de deveres. A evolução orientou-se, fundamentalmente, para três finalidades: a) limitação temporal do poder; b) limitação dos direitos do pai e do seu uso; c) colaboração do Estatuto na proteção do filho menor e intervenção no exercício do pátrio poder [poder familiar] para orientar e controlar.1

Com efeito, os influxos renovadores fático-valorativos próprios do passar dos muitos anos consagraram a bilateralidade das relações entre pais e filhos, além de a concepção da autoridade parental ser igualitariamente compartilhada por ambos esses genitores (somente será exercida por um deles se faltar o outro ou se este estiver legalmente impedido), cujos deveres predominam, bem ainda o caráter

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protetivo e o resguardo aos interesses dessa prole sobre a ideia de supremacia paterna ou do direito desses ascendentes em detrimento dela2.

A propósito, relevantes diplomas legais foram editados, máxime os de pós-Magna Carta, cujo art. 226, § 5º, ajustado ao art. 5º, I, concebera o princípio da isonomia, segundo o qual “direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

Consequentemente, sobreveio o Estatuto da Criança e do AdolescenteLei n. 8.069/90 —, que, em relação ao tema ora cuidado, inicialmente estabeleceu, entre o mais, que “o pátrio poder será exercido igualmente pelo pai e pela mãe” (art. 21).

Além disso, registra-se haver essa Lei Maior concebido três formas de constituição jurídica da família. Não bastasse o casamento (art. 226, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal), foram, então, previstas a união estável (§ 3º) e a monoparentalidade (§ 4º). Logo, a formação dessa base da sociedade (art. 226, caput) deixou de circunscrever-se ao matrimônio.

Posteriormente, com o advento desse Código Civil hoje vigente, substituiu-se a expressão pátrio poder originariamente empregada pelo Estatuto por poder familiar, esta, após, que, em decorrência da Lei n. 12.010/09, passou a ser utilizada nesse diploma especial.

Trata-se de encargo familiar pessoal que também é público, porque ao Estado incumbe atuar com vistas à satisfatória realização desse cumprimento igualitário (art. 1.690 do Código Civil) e fiscalizá -lo em favor das crianças e dos adolescentes não emancipados. E extrai-se dos arts. 21 do Estatuto e
1.630 a 1.632 do Código Civil que o exercício desse poder se verifique na forma dessa legislação comum, assegurado, em caso de divergência, invocar-se a prestação jurisdicional para a solução3.

Outrossim, o caput do art. 227 da Lei Maior assegura a esses menores (crianças, os de até doze anos de idade incompletos; adolescentes, os que ainda não atingiram dezoito: art. 2º dessa norma especial; completada essa última faixa etária cessa o poder familiar), com absoluta primazia, a satisfação, primeiramente pelos pais no exercício dessa autoridade, dos seguintes direitos fundamentais: à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade etc. Nesse passo, também, são harmônicos o art. 229 dessa Lei Maior e várias normas de proteção previstas no Estatuto, entre estas o art. 22, além de preceitos do Código Civil4 (arts.
1.566, IV, 1.634 e 1.724).

2. Conceito, natureza jurídica e características

Trata-se do conjunto de deveres e direitos que os pais, em estreita colaboração e igualdade, devem cumprir em benefício das pessoas e dos bens dos filhos5 menores não emancipados.

Aliás, o respectivo exercício representa natural e imprescindível atendimento a pessoas em formação — crianças e adolescentes, sujeitos de direito —, pois necessitam elas quem as guarde, crie, eduque, ampare, defenda, cuide, enfim, lhes comande a vida e administre os bens, não bastasse poder o Estado coibir eventuais abusos e intervir ou extinguir a respectiva ação desses ascendentes6.

Malgrado essa alteração de denominação para poder familiar, a expressão ainda é passível de críticas doutrinárias, porque, além de enfatizar ideia de predomínio (poder), a que melhor identifica o instituto é a da autoridade parental, uma vez que destaca estarem os escopos dos pais condicionados

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aos superiores e prioritários interesses dos filhos. Considera-se a noção de poder-função ou direitodever7.

Por sinal, a mais recente Lei n. 12.318/10, acerca de alienação parental, emprega o termo autoridade parental.

Sem embargo dessa dissensão, como de relevo relacionar-se a cada dever dos genitores um simultâneo interesse em proporcionar o melhor em favor da titularidade por esses descendentes, apropositado considerar-se poder-dever a natureza jurídica desse instituto.

Nesse ponto, ainda, e como hoje preponderem direitos e encargos numa equânime proporção, temse, e é também lição de Eduardo dos Santos, haver uma função, conjunto de poderes-deveres conjuntamente exercidos por ambos os progenitores8.

Ademais, Eduardo A. Zannoni, o qual também considera se assentarem em direito-dever as relações jurídicas concernentes ao instituto, expressa mate-rializar-se esse complexo de direitos subjetivos dos genitores na medida em que a respectiva prática se verifique erga omnes e de modo indelegável contra quem indevidamente se opuser9.

A essa natureza jurídica são inerentes as principais e seguintes características: a) múnus público, porque se trata de função imposta em decorrência de norma de ordem pública [e está submetido ao supradito controle estatal]; b) irrenunciabilidade, posto dessa autoridade parental não poderem os pais abrir mão, a não ser na hipótese prevista no art. 166, § 1º, do Estatuto [adesão expressa ao pedido de adoção formulado por interessado conforme ordem prevista em cadastro específico, exceto nas situações estabelecidas no § 13 do art. 50 desse diploma]10; c) instransmissibilidade, porquanto inalienável, indele-gável [trata-se de ônus consoante decidiu o Superior Tribunal de Justiça]; d) imprescritibilidade, uma vez que os genitores não decaem desse poder-dever pelo tão só fato de deixar de exercê-lo11 [a perda dar-se-á nos casos expressos em lei, como adiante será analisado]; e) incompatibilidade à tutela, pois não se pode nomear tutor ao menor cujo pai ou mãe não tenha sido suspenso ou destituído12 [art. 36, parágrafo único, da Lei n. 8.069/90].

3. Titularidade

Ajustados à Constituição Federal (art. 226, § 5º), os arts. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente e o 1.631 do Código Civil têm consonância e preveem igualdade entre os cônjuges, ou pai e mãe, no cumprimento do poder familiar, realidade que se estende à união estável, de modo a que a assunção exclusiva por um deles somente se verificará em casos de falta (morte, ausência, suspensão ou perda desse direito-dever) ou impossibilidade (superveniente incapacidade mental) do outro. E a qualquer desses genitores se assegura recorrer ao juiz para a solução de desacordo que os envolva no exercício desse poder-dever (arts. 21 do Estatuto e 1.631, parágrafo único, do Código Civil).

A propósito da família monoparental considerada típica, formada por um dos pais e os filhos menores — sem desdouro às demais, denominadas atípicas, que também comportam estudo próprio ou especial, — o poder familiar ou autoridade parental será exercido pelo respectivo ascendente, pai ou mãe. Com efeito, haverá exclusividade de um genitor se o outro não tiver reconhecido o filho, como na situação da mãe que mantenha com ela o descendente quando este não for motivo de perfilhação pelo pai biológico (art. 1.633 do Código

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Civil, que ainda prevê sobre a nomeação de tutor se a mãe for desconhecida ou incapaz para o exercício). Também o fará apenas um dos genitores em hipótese de morte do outro, e assim o manterá ainda que convole novo matrimônio ou união estável, nessa hipótese com exercício sem interferência do cônjuge ou do companheiro (art. 1.636 do Código Civil). Aliás, conforme o parágrafo único desse artigo, a regra aplica-se ao pai ou à mãe solteiros que se casarem ou passarem a viver sob união estável, porque cada qual exercerá o poder familiar sobre os respectivos filhos menores sem que o outro tenha ingerência acerca de educação, representação ou assistência13.

Sobrevindo dissolução do casamento ou da união estável, esse exercício conjunto se manterá quer haja guarda compartilhada — hoje regra, por força da Lei n. 13.058/14, mesmo no...

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