Pluralismo juridico: um referencial epistemico e metodologico na insurgencia das teorias criticas no direito/Legal Pluralism: an epistemic and methodological referential in the insurgency of the critical legal theories.

AutorWolkmer, Antonio Carlos
  1. Introducao

    O impacto produzido pelos efeitos da globalizacao economica, bem como da nova razao neoliberal, das formas complexas de conhecimento, das mudancas no ecossistema e na base de reproducao da vida determina o aparecimento de modelos referenciais e procesos instituintes alternativos de ordenacao no ambito da sociedade mundial. Essa dinamica implica descolonizar os paradigmas tradicionais de fundamentacao em diferentes campos da atividade humana, particularmente na esfera da organizacao socioeconomica, da institucionalidade politica e dos avancos cientificos da mundialidade tecnologica. As transformacoes pelas quais passam a Sociedade e o Estado produzem impactos nos procedimentos normativos de regulacao, integracao e controle social. Decorrem, assim, deslocamentos, rupturas e transicoes para paradigmas alternativos, capazes de engendrar novas demarcacoes na producao instituinte de direitos. Tais preocupacoes, embasadas em novos pressupostos epistemologicos, inauguram o espaco para a transposicao da cultura juridica monista, formalista e estatalista, de tradicao eurocentrica, para uma outra cultura normativa periferica, descolonial e pluralista, em que se reconhecem representacoes diversas e descentralizadas de producao, ordenacao e aplicacao que permeiam relacoes e experiencias com dinamicas proprias.

    Tendo em vista esses aspectos, introduz-se a questao central do problema assim exposto: diante da crise e insuficiencia da normatividade etnocentrica ocidental, assentadas nos principios da cultura liberal-individualista, no sistema produtivo capitalista e na racionalidade colonial determinante de regramentos e controles que homogeneizam, patriarcalizam e subalternizam, em que parametros se justifica pensar o direito com base na multiplicidade de saberes locais, de praticas perifericas contrahegemonicas, de outros horizontes interculturais de resistencia e de novas formas subjacentes de interlegalidade? A resposta, como hipotese, encontra-se na opcao por um "giro descolonial" do direito, em que o pluralismo juridico assume um lugar privilegiado de contraposicao critica, contribuindo como instrumental analitico e operante para examinar e compreender fenomenos normativos complexos e de diferentes naturezas enquanto sistema de pensamento, de discursividade e de pratica social. Assim, o pluralismo juridico projeta-se como um paradigma para conceber e tratar o direito na propria estrutura social, descentralizando e erradicando o estatalismo universalista de colonialidade.

    Outrossim, o pluralismo juridico surge como orientacao critica as falacias do monopolio estatal de absolutizar a producao e aplicacao do normativo, que, no entanto, "sem tomar nenhuma sociedade em particular como modelo geral, busca captar, em suas analises, o amplo espectro do fenomeno juridico, em suas multiplas expressoes contemporaneas" (LOPEZ LOPEZ, 2014, p. 38, 44, 57). Compreende-se, desse modo, seu traco policentrico, na medida em que sua producao responde a diversos polos ou nucleos sociais com dinamicas proprias, independentes ou nao do poder hegemonico estatal.

    Essas assertivas permitem avancar no sentido de delimitar o quadro analitico acerca do objetivo central da presente discussao. Qual seja: buscar aferir as condicoes e possibilidades de ambivalencia do pluralismo juridico na insurgencia das "teoria(s) critica(s)" no direito. Trata-se de visualiza-lo nao so como uma possivel variante epistemologica ou manifestacao da instrumentalidade critica em si, mas tambem, sobretudo, como um referente capaz de determinar e sustentar a ordenacao do pensamento critico no direito. A escolha fundamental e delimitar que especie de pluralidade normativa esta se privilegiando como representacao da "critica juridica" e, por sua vez, em que medida o pluralismo juridico corresponde a uma "teoria critica" no direito.

    Antes de mais nada, importa o necessario recorte dessa pluralidade normativa que se pretende critica e descolonial. Nos limites de insercao de tradicao antropologica e sociologica, ha que se destacar a ausencia de acordo semantico entre seus interpretes. As variantes que medeiam entre o pluralismo teorico e o pluralismo de fato tem favorecido distintas denominacoes que precedem desde a discussao aberta por John Griffiths acerca do mitico "centralismo juridico" em torno do qual se origina o pluralismo juridico debil e o pluralismo juridico forte (1986) ate alcancar o leque de designacoes como pluralismo juridico classico e novo pluralismo juridico (MERRY, 2007), pluralismo formal unitario e/ou igualitario (HOEKEMA, 2002), pluralismo juridico global ou posmoderno (SANTOS, 1998; TWINING, 2003), pluralismo juridico do sistema autopoietico (TEUBNER, 2005), pluralismo juridico aparente ou ocultado (YRIGOYEN FAJARDO, 2004) e pluralismo juridico comunitario-participativo (WOLKMER, 2015).

    A reflexao se justifica e ganha qualidade por inserir e sublinhar o direcionamento por um pluralismo juridico que tem sua fonte no poder comunitario e na acao participativa de multiplos sujeitos sociais, revelando-se paradigma contra-hegemonico de dimensao pratico-teorica para espacos societarios emergentes, marcados por profundas desigualdades sociais e ineficiencias em modalidades convencionais de justica estatal.

    Para responder a problematizacao e ao objetivo geral, a escolha metodologica, aqui elegida, passa por uma proposicao metodologica critico-descolonial, em que o pluralismo juridico atua tanto como ferramenta critica quanto modalidade de influxo em "aportes criticos" no direito.

    Ao investir nessa variante de pluralismo normativo, importa trazer a valoracao da criticidade descolonial que nao se confunde com a "teoria critica" moderna de corte liberal eurocentrica. Logo, diante do ecletismo de conteudo e de contraversias de sentido que atravessam as "teorias criticas" e a propria "critica juridica", declina-se, mormente, pela critica concebida como exercicio discursivo e pratica operante de questionar e de romper, projetando estrategias concretas para a emancipacao. E peremptorio o direcionamento por uma "teoria critica" que seja emancipatoria (HERRERA FLORES, 2009).

    Para implementar tais intentos, dividiu-se a proposta, ora contemplada, em tres momentos: primeiramente, um suscinto percurso da formacao da modernidade etnocentrica, marcada pelo desenvolvimento do "sistema-mundo" capitalista e pelos seus procesos culturais de colonialidade. Tal dinamica engendra uma normatizacao racional edificada na presuncao de universalidade e neutralidade, em que o Estado e o detentor do monopolio da producao legal e da fonte exclusiva de legitimacao do controle social. Esse paradigma monista da estatalidade do direito serviu aos intereses dos grandes imperios coloniais dos paises centrais, e a imposicao de suas diretrizes de legalidade constituiram parte da dominacao opressora e da colonialidade do poder. Dai a justificacao para a insercao da criticidade descolonial.

    Na sequencia, analisa-se o significado da(s) teoria (s) critica(s) no direito, sua configuracao, possibilidades, controversias e limitacoes. Diante da fragilidade e insuficiencia das teoria(s) critica(s) no direito, propoe-se a indagacao: de que forma existe ainda certa continuidade ou e pertinente o trato de sua renovacao? Mas, se houver acordo quanto a ultima premissa, em que bases epistemologicas? Enfim, e indiscutivel a premencia necessaria para sua ressignificacao na dialetica de rupturas e continuidades. Sugere-se, assim, novos "approches" para a constituicao do pensar alternativo, plural e emancipatorio.

    Se, ao longo do seculo XX e inicio do milenio em curso, a teoria social marxista sofreu declinio como fonte hegemonica e determinante, inspiradora para o pensamento critico revolucionario e emancipador, bem como para as teoria(s) critica(s) no direito (entre as quais se encontram propostas do pluralismo juridico transformador), outros referentes epistemologicos tem exercido incisivos impactos como as corrrentes libertarias (as filosofias da libertacao, com destaque a tendencia de Enrique Dussel), o constitucionalismo andino, o feminismo em seu amplo espectro, as proposicoes raciais e migratorias, o ecologismo critico, o interculturalismo, os estudos culturais e poscoloniais e as epistemologias do Sul, presentes na America Latina, Africa e Asia (Boaventura de S. Santos, Ramon Grosfoguel, Achille Mbembe, Ngugi wa Thiong'o, Syed F. Alatas, Yash Ghai, Upendra Baxi, entre outros).

    Nesse horizonte, compreende-se a fragilidade das teoria(s) critica(s) construidas pelas elites pensantes e pela colonialidade cultural do Norte global, pois nao levaram em conta os problemas do colonialismo, do feminismo, dos grupos multietnicos e do fenomeno das migracoes. Ressalta-se, portanto, que em tempos do "sistema-mundo" capitalista (WALLERSTEIN, 2005) e da nova razao neoliberal, o olhar se dirige para a ressignificacao da critica por meio das "vozes" do Sul. A retomada e a reinvencao da "critica juridica" tem que desenhar e introjetar pressupostos criticos, expressos nas condicoes de: a) descolonizar o pensamento critico tradicional/etnocentrico e as praticas de opressao sobre as novas subjetividades (ZIBECHI, 2015); b) repensar e propor um projeto de sociedade nao excludente, com respeito a diferencas, diversidades e identidades; c) buscar novos processos criadores e liberadores nao niilistas e desconstrutivistas; d) recuperar e reconstruir a nocao de utopia na perspectiva da "comunalidad" (coletivos zapatistas), do "buen vivir" (ACOSTA, 2013) e do "comun" (LAVAL; DARDOT, 2015); potencializar novas formas de resistencia (HERRERA FLORES, 2009; GANDARA CARBALLIDO, 2013) e estrategias de acao coletiva comum transformadora.

    Para o fechamento do texto, discorre-se sobre a retomada do pluralismo juridico como instrumental analitico e operacional revelado atraves da dupla face, quer como concepcao critica do direito na contextualidade da teoria e da pratica social, quer como uma das mais ricas variantes...

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