Pluralismo jurídico, diálogo intercultural e povos indígenas

AutorLeticia Rebola Volpi da Silva/Luzia de Barros Ferreira Gaio
CargoBacharel em Direito (Faculdades Integradas Curitiba) e em Comunicação Social - Jornalismo (UFPR) Pós-graduada em Direito Aplicado (Escola da Magistratura do Paraná - EMAP) Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento (Universidade Internacional da Andaluzia, Espanha)/Advogada Pós-graduada em Gestão Ambiental (Faculdade São ...
Páginas48-52

Page 48

Introdução

Este artigo pretende reflexionar sobre o pluralismo jurídico e sua urgência na sociedade atual, que se caracteriza, entre outras coisas, pelo pluriculturalismo. O monismo jurídico parece estar superado, assim como toda a herança do positivismo jurídico. Contudo, neste momento de transição paradigmática, na qual o velho já não serve, mas o novo ainda está em construção, é necessário pensar possibilidades de dialogar o direito com o mundo intercultural, visando uma integração social, em especial de minorias étnicas, como os povos indígenas.

Pluralismo jurídico

É possível identificar no campo do conhecimento jurídico um fenômeno denominado de monismo jurídico, que tem sua origem assinalada a partir do século XVII. O monismo jurídico caracteriza-se por uma racionalidade hegemônica, centrada no Estado. Segundo Wolkmer1, de acordo com a concepção monista do direito, o Estado moderno possui o monopólio exclusivo da produção de normas jurídicas, sendo o único legitimado para criar legalidade e enquadrar as relações sociais.

O monismo jurídico, portanto, reconhece apenas o poder normativo do sistema que provém do Estado, sendo que todas as outras manifestações jurídicas, qualificadas como costumes, somente podem ser aplicadas na lacuna do direito hegemônico.

Esse fenômeno chamado de monismo jurídico está diretamente ligado ao paradigma da modernidade, no qual há um direito positivo, formal e abstrato, centrado exclusivamente no Estado. Nesse contexto, o direito moderno é um mero instrumento técnico de regulação social. Conforme palavras de Boaventura de Souza Santos2:

"Enquanto domínio social funcionalmente diferenciado, o direito desenvolveu um autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico (ciência jurídica), dando assim origem à ideologia disciplinar a que chamo cientificismo jurídico. [...] O positivismo jurídico é a versão mais apurada desta co-evolu-ção ideológica. Mas essa interligação mútua do cientificismo jurídico com o estatismo jurídico revela também até que ponto o isomorfismo epistemoló-gico com a ciência moderna é limitado pela sua eficácia pragmática. O saber jurídico tornou-se científico para maximizar a operacionalidade do direito enquanto instrumento não científico de controle social e de transformação social. "

Contudo, há hoje uma evidente crise paradigmática, uma vez que o projeto da modernidade, com sua promessa de liberdade, igualdade e fraternidade, não foi efetivado concretamente na sociedade. Pelo contrário, as desigualdades se alastram, aumentando o distanciamento entre a humanidade e a almejada

Page 49

vida digna para todos. No dizer de Boaventura de Souza Santos, "[a] crise do contrato social moderno reside na inversão da discrepância entre a experiência social e a expectativa social"3.

No âmbito do direito, o paradigma da modernidade, com seu positivismo e monismo jurídico, também contribuiu para aumentar as desigualdades sociais por, entre outras razões, fechar os olhos para a demanda de novos direitos, mais próximos das realidades concretas dos sujeitos e de grupos sociais. Ademais, dentro do paradigma positivista do direito não há espaço para questões como justiça e legitimidade, tão cobradas e discutidas pela sociedade atual4.

A modernidade se ocupou de suprimir as diferenças culturais e criar um direito homogêneo e supostamente universal. Insurge, portanto, a necessidade de um pensamento pós-moderno, no qual sejam pensadas as diferenças ideológicas, culturais, estéticas, sociais.

Como uma das possibilidades de alternativa a esse modelo da modernidade que não responde mais aos anseios sociais da atuali-dade (se é que um dia respondeu), emerge o pluralismo jurídico, segundo o qual a fonte do direito não é exclusivamente o Estado, havendo lugar para subsistir no mesmo tempo e espaço geopolítico mais de um ordenamento jurídico. Para isso é necessário reinventar o direito, adequando-o aos anseios de múltiplos grupos sociais5.

Para Antonio Carlos Wolkmer, pluralismo jurídico é uma "multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço só-cio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais e culturais"6.

Segundo Boaventura de Sousa Santos a ideia de um pluralismo jurídico não é recente:

“No século XIX e primeiras décadas do nosso século, o problema do pluralismo jurídico teve amplo tratamento na fi losofi a e na teoria do direito. Foi sendo depois progressivamente suprimido pela acção de um conjunto de factores em que se deve distinguir: as transformações na articulação dos modos de produção no interior das formações capitalistas centrais, de que resultou o domínio cada vez maior do modo de produção capitalista sobre o modo de produção pré-capitalista; a consolidação da dominação política do Estado burguês nomeadamente através da politização progressiva da sociedade civil; o avanço concomitante das concepções jus-fi losófi cas positivistas.”7

O PLURALISMO JURÍDICO É UMA FORMA DE RECONHECER QUE O MUNDO É IN TERCULTURAL

Conforme salienta Wolkmer8, é necessário distinguir o pluralismo progressista e democrático, que serve de instrumento de emancipação social, do pluralismo conservador, vinculado aos projetos neoliberais e neocoloniais, que também se apresenta como alternativa.

“O pluralismo de corte conservador opõe-se radicalmente ao pluralismo progressista e democrático. A diferen-ça entre o primeiro e o segundo está, fundamentalmente, no fato de que o pluralismo conservador inviabiliza a organização das massas e mascara a verdadeira participação, enquanto que o pluralismo transformador como estratégia democrática de integração procura promover e estimular a participação dos segmentos populares e dos novos sujeitos coletivos de base.”9

Assim sendo, o fenômeno do pluralismo jurídico possui diferentes enfoques e correntes, podendo assumir um caráter mais conservador ou mais radical. Para esse trabalho o pluralismo jurídico que se defende é aquele que possui práticas normativas independentes do poder estatal e que favoreça a emancipação social, ou como chama Boaventura de Souza Santos, de pluralismo contra-hegemônico.

“As formas não-hegemónicas de direito não são, necessariamente...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT