Pluralismo Juridico: O Estado e as Autoridades Tradicionais de Angola/Legal Pluralism: the State and Traditional Authorities of Angola.

AutorKapoco, Fernando dos Anjos

Introducao (1)

Angola e um pais da Africa Austral que sofreu duas terriveis guerras, primeiro contra o imperio colonial portugues (1961-1974), que se impos ali por 500 anos, e depois uma guerra fratricida (1975-2002), se somadas sao 41 anos belicos. Situa-se na parte Ocidental da Africa Austral, com uma superficie de 1.246.700 km quadrados, possui 1.650 km de fronteira maritima. Confina ao Norte com a Republica do Zaire e Republica Popular do Congo, a Leste com as Republicas do Zaire e da Zambia e a Sul com a Namibia.

Falar de pluralismo juridico em Angola implica o enfrentamento de uma tematica maior, que tem a ver com a forma como o Estado angolano esta estruturado. Embora o Estado se declare, constitucionalmente, Democratico de Direito, ha suficientes indicios a lhe negar essa condicao. Dito de outro modo, um Estado tanto mais convivera lado a lado com as varias fontes de Direito existentes em sua nacao quanto mais plural for. No caso de Angola, o Estado e um Estado-partido: o Movimento Popular para a Libertacao de Angola - MPLA. (2)

Em um conhecido periodico angolano se podia ler a seguinte manchete: "o Povo angolano e o MPLA. O MPLA e o Povo angolano". Tal maxima, maniatada no sangue da nacao angolana, mistura-se com sua propria identidade. Mas ela e verdadeira? Se o povo angolano e, realmente, o MPLA, entao, quem, ou o que e o povo que apoia a Frente Nacional para a Libertacao de Angola - FNLA ou a Uniao Nacional para a Independencia Total de Angola - UNITA? (3) Nao-angolanos?

Essa parece constituir a primeira dificuldade com a qual alguem que se proponha a entender o pluralismo juridico em Angola tem que lidar, pois, conferir legitimidade juridica e politica as outras fontes de Direito, equivale a transferir parcela do poder do Estado-partido-MPLA aqueles que nao se identificam com a ideologia do MPLA. E possivel se afirmar que, hoje, boa parte de toda memoria politica, social e historica do pais e partidarizada, de modo que os herois nacionais se confundem com os herois do MPLA. Assim, os herois tombados que lutaram em nome de Angola atraves da UNITA ou da FNLA, ao longo do processo de libertacao nacional, nao sao sequer lembrados como angolanos, ja que suas lutas nao ocupam nenhum capitulo no manual oficial da Historia de Angola, o que so vem a corroborar a velha verdade, segundo nos adverte Eclea Bosi (BOSI, 2003: 19), de que a historia e sempre aquela contada pelos povos vencedores, isto e, a memoria nao e oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem so porque o velho foi reduzido a monotonia da repeticao, mas tambem porque uma outra acao, mais daninha e sinistra, sufoca a lembranca: a historia oficial celebrativa, cujo triunfalismo e a vitoria do vencedor a pisotear a tradicao dos vencidos. Dessa maneira, as lembrancas pessoais e grupais sao invadidas por outra historia, por uma outra memoria que rouba das primeiras o sentido, a transparencia e a verdade.

As Autoridades Tradicionais angolanas estao, assim como os outros partidos politicos diversos do MPLA e outros grupamentos da sociedade civil, nesse espaco de negacao, nesse nao-espaco. Neste sentido, falta em Angola a verdadeira Constituicao, aquela que esta "inscrita na alma e no coracao de cada mulher e de cada homem, um projeto politico coletivo de um verdadeiro Estado que se limite a ser algo mais que a mera soma das suas partes" (FONSECA, 2016: 23). Uma Constituicao que representa apenas a manifestacao de vontade do MPLA nao podera jamais representar o todo ou a maioria. No limite, trata-se da falta de um projeto de nacao capaz de harmonizar as vontades, os sonhos e desejos de todos.

Metodologia

Pelas razoes acima expostas optamos por epistemologias alternativas a dominante. Escolhemos epistemologias que partem do principio de que o mundo e epistemologicamente diverso e que essa diversidade representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas, alem de conferirem inteligibilidade e intencionalidade as experiencias sociais. Essa pluralidade epistemologica implica no reconhecimento de conhecimentos rivais dotados de criterios diferentes de validade, que tornam visiveis e criveis espectros muito mais amplos de acoes e de agentes s ociais. A essa diversidade epistemologica alguns denominam de "epistemologias do Sul". O Sul, nesse sentido, e concebido metaforicamente como um campo de desafios epistemicos, que procuram reparar os danos e impactos historicos causados pelo capitalismo na sua relacao colonial com o mundo (SANTOS; MENESES, 2009: 12).

Defendemos, portanto, uma pluralidade epistemologica que de espaco para o diverso, para o outro, nao so porque o atual governo angolano atende prioritariamente a interesses e conveniencias da elite politica do MPLA, mas tambem porque a historia das antigas colonias esta marginalizada nas academias do mundo todo, nas quais vige uma epistemologia que se pretende universal.

Utilizamos, assim, a teoria e a filosofia da afrocentricidade como ferramenta analitica para os Estudos Africanos, que levanta a questao do conhecimento do ponto de vista do povo Africano como sujeito da sua propria historia. A afrocentricidade e, nesse sentido, "um modo de pensamento e acao no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em termos teoricos e a colocacao do povo africano no centro de qualquer analise de fenomenos africanos" (ASANTE, 2014: 3), em contraposicao ao dominio epistemologico eurocentrico, que se pretende universal, neutro e soberano.

O colonialismo, dessa forma, e tambem uma forma de dominacao epistemologica, uma relacao extremamente desigual de saber-poder que conduziu a supressao de muitas formas de saber proprias dos povos e nacoes colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaco de subalternidade. Assim, Boaventura de S. Santos e Maria P. Meneses questionam por que razao, nos dois ultimos seculos, a epistemologia dominante eliminou da reflexao epistemologica o contexto cultural e politico da producao e reproducao do conhecimento? Alem disso, quais foram as consequencias de uma tal descontextualizacao? E, por fim, havera epistemologias alternativas? A guisa de resposta, a epistemologia dominante e uma epistemologia contextual que assenta na diferenca cultural do mundo moderno cristao ocidental e na diferenca politica do colonialismo e capitalismo, reivindicando uma pretensao de universalidade, mediante o uso da forca com que a intervencao politica, economica e militar do colonialismo e do capitalismo modernos se impuseram aos povos e culturas nao-ocidentais e nao-cristaos. Como consequencia dessa intervencao, descredibilizaram-se e suprimiram-se todas as praticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela servia, gerando uma perda de auto-referencia nao apenas gnoseologica, mas sobretudo ontologica, que coloca os dominados numa relacao de subalternidade, ou seja, saberes inferiores proprios de seres inferiores, primordialmente caracterizada pela violencia e massacre de outras gramaticas de compreensao do mundo, o chamado epistemicidio (SANTOS; MENESES, 2009: 10).

Nesta perspectiva, de supostos saberes "subalternos", nao se concede apenas voz aquelas e aqueles que foram privados dela. E mais do que isso. E participar do esforco para prover outra gramatica, outra epistemologia, outras referencias que nao aquelas que aprendemos a ver como as "verdadeiras" e, ate mesmo, as unicas dignas de serem aprendidas e respeitadas (PELUCIO, 2012: 398-399). E neste sentido que demos voz ao ator e ao saber do representante da Autoridade Tradicional do M'Balundu, mediante entrevista, com intuito de compreender a organizacao dessa instancia da justica angolana e as dinamicas que regem sua atuacao em face das demandas comunitarias por justica e as limitacoes que lhe sao imposta pela justica concorrente, a estatal.

Hoje, a visualizacao da diversidade cultural e epistemologica do mundo e, ela propria, mais diversa e, por isso, mais convincente para publicos mais amplos e diversos. Todavia, o fim do colonialismo politico, enquanto forma de dominacao que envolve a negacao da independencia politica de povos e/ou nacoes subjugados, nao significou o fim das relacoes sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado. O colonialismo continuou sobre a forma de colonialidade de poder e de saber, para usar a expressao de Anibal Quijano (SANTOS; MENESES, 2009: 11-12). Portanto, o modelo europeu e norteamericano nao e universal. E, antes, geografica e localmente situado. Ao se conceder o direito exclusivo como unico modelo valido de gestao racional do mundo globalizado, que parte de um local especifico (Europa e EUA) e vai se mundializando a forca, esconde, obviamente, a existencia, de outras racionalidades, e sao racionalidades, que, se ouvidas, permitiriam a melhor apreensao, compensacao e, sobretudo, melhor convivio planetario (PIZA & PANSARELLI, 2012: 30). Portanto, torna-se uma exigencia de nosso tempo falar em epistemologias, nao mais no singular.

A ideia central e a de que o colonialismo, para alem de todas as dominacoes pelas quais e conhecido, foi tambem uma dominacao epistemologica, uma relacao extremamente desigual de saber-poder que conduziu a supressao de muitas formas de saber proprias dos povos e/ou nacoes colonizados. As epistemologias do Sul sao o conjunto de intervencoes epistemologicas que denunciam essa supressao, valorizam os saberes que resistiram com exito e investigam as condicoes de um dialogo horizontal entre conhecimentos. A esse dialogo entre saberes chamamos "ecologias de saberes" (SANTOS; MENESES, 2009: 13).

A maioria dos povos africanos colonizados enfrenta dificuldades de criacao de sua epistemologia juridica propria, pois tal como a religiao (europeia) foi imposta, assim tambem o foi o Direito (europeu e do EUA), sempre sob a justificativa de assegurarem um estado futuro melhor, com fundamento em nocoes como "superacao de deficiencias", "progresso" ou "desenvolvimento", das quais decorrem a...

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