Playing, killing, eating: on morality and animal rights/ Brincar, matar, comer: sobre moralidade e direitos animais.

AutorFausto, Juliana

Brincadeira e justica

Em When Species Meet, Donna Haraway pergunta-se por que, em O animal que logo sou, Jacques Derrida privou-se de estabelecer um dialogo, em suas especulacoes a respeito dos animais, com aqueles que trabalham diretamente com eles quando, de modo justo, acusa toda uma tradicao da historia da filosofia ("Descartes, Kant, Heidegger, Lacan, Levinas"--Derrida, 2002, p. 33) de nao ter levado em conta "a experiencia do animal que ve, do animal que os observa [...] na arquitetura teorica e filosofica de seus discursos" (idem). A pergunta de Haraway pode ser resumida em uma frase: "por que Derrida nao examinou as praticas de comunicacao fora das tecnologias sobre as quais ele sabia falar?" (Haraway, 2008, p. 21).

Para ela, nao ter percorrido essa via--que incluiria voltar-se para etologos, cientistas de comportamento animal, mas tambem criadores, guardas de parques, nativos de regioes coabitadas por humanos e animais e uma dezena de outros que trabalham ou vivem diretamente com os animais--deixou o filosofo sem outra escolha exceto, diante do olhar de sua gata, voltar-se a questao que ele considera "previa e decisiva", cuja "forma muda tudo" (Derrida, 2002, p. 54): "Eles podem sofrer?, perguntava simplesmente e tao profundamente Bentham" (idem). Nem Haraway (cf. 2008, p. 22) nem este artigo, e claro, pretendem desmerecer a questao do sofrimento animal: a "guerra a piedade" de que falava Derrida em seu livro, real e atual, abre um espaco de pensamento e atuacao nao apenas da maior importancia, mas riquissimo de questoes e problemas: "O animal nos olha, e estamos nus diante dele. E pensar comeca talvez ai" (Derrida, 2002, p. 57). De fato, reconhecer o sofrimento animal, reconhecer a guerra que se impoe contra eles e comecar dai e um passo mais do que justificado. Mas este nao e o unico caminho:

[...] quao mais promissoras sao as perguntas: podem os animais brincar? Ou trabalhar? E ainda: sera que eu posso aprender a brincar com esta gata? Posso eu, o filosofo, responder a um convite ou reconhecer um quando ele e oferecido? E se trabalho e brincadeira, e nao apenas piedade, se abrissem quando a possibilidade da resposta mutua, sem nomes, fosse levada a serio como uma pratica disponivel para a filosofia e a ciencia? E se uma palavra utilizavel fosse alegria? E se a questao de como os animais engajam responsivamente o olhar uns dos outros [engage one another's gaze responsively] tomasse o centro do palco para as pessoas? E se fosse esta a pergunta, uma vez seu protocolo tendo sido propriamente estabelecido, cuja forma muda tudo? (Haraway, 2008, p. 22).

Em primeiro lugar, parece, e a possibilidade da resposta, e nao da mera reacao do animal, que se deve considerar. O sofrimento, por mais terrivel e serio que seja, retira dos animais--e nao so dos animais--a sua possibilidade de agir: perguntar "'eles podem sofrer?' consiste em perguntar-se 'eles podem nao poder? [...] Poder sofrer nao e mais um poder, e uma possibilidade sem poder, uma possibilidade do impossivel'" (Derrida, 2002, p. 55). O que mudaria caso o eixo se deslocasse, caso se considerasse aquilo que os animais podem? O modo como respondem, agem, criam? Em suma, que outras possibilidades se abririam para alem da piedade?

Vejamos a questao da brincadeira e como ela se articula com a da justica na obra do etologo Mark Bekoff, que estuda esse tipo de comportamento principalmente entre mamiferos desde os anos 1970, tendo uma serie de artigos e livros publicados. Em "Social play behavior", de 1984, ainda hesitante acerca da definicao e das possibilidades interpretativas da brincadeira, ele propoe que

Brincadeira e toda a atividade motora performada depois do nascimento que parece ser sem proposito, na qual padroes motores de outros contextos podem frequentemente ser usados em formas modificadas e sequenciamento temporal alterado (Bekoff, 1984, p. 229).

Que a brincadeira seja "sem proposito", Bekoff observa, nao quer dizer que ela nao tenha funcoes; essas funcoes, entretanto, sao variadas, dependendo nao apenas da especie, mas dos grupos em questao, e podem envolver o desenvolvimento de "forca fisica, resistencia, habilidade", "regula[r] taxas desenvolvimentais", "reproduzir[r] informacoes especificas", "desenvolve[r] habilidades cognitivas necessarias para a adaptabilidade comportamental, flexibilidade, inventividade ou versatilidade", constituir "um conjunto de taticas comportamentais usadas na competicao intraespecifica", "estabelece[r] ou reforca[r] lacos sociais em uma diade ou coesao social em grupo" e funcionar como um "treinamento cognitivo" (idem, p. 231).

Bekoff vem se concentrando, desde entao e cada vez com mais conviccao (advinda de pesquisas de etologia cognitiva, neurociencia e etologia narrativa, entre outras), na relacao entre brincadeira e justica--ou moralidade, como costuma dizer. Se em 1984 a hipotese era sugerida com muito cuidado, em 1998, o subtitulo de outro artigo seu, "Social play behavior--cooperation, fairness, trust and the evolution of morality", demonstra a direcao tomada por seu trabalho. A brincadeira, ele afirma, deve ser negociada e aceita, e os participantes nao podem trapacear sob pena de nao encontrarem mais parceiros--ou seja, e preciso agir de modo justo [fair]. Ha marcadores especificos que exprimem que uma mordida vindoura nao significa uma mordida de verdade, por exemplo, e estudos em canideos demonstram que esses sinais quase nao sao usados de modo enganador; em brincadeiras transespecificas sao observados pequenos movimentos, como trocas ritmicas de olhares, para reafirmar o carater de jogo. Na brincadeira, posicoes sociais sao deixadas de lado, e alguem com uma posicao hierarquica mais alta pode se engajar em um jogo com um companheiro de posicao inferior, permitindo que este, durante aquele momento, se encontre em lugar de igualdade ou mesmo que se opere uma inversao de lugares; individuos mais fortes ou adultos podem se engajar em self-handicapping, fingindo-se menos poderosos, diante de outros mais fracos ou filhotes. "Ha uma certa inocencia ou engenhosidade na brincadeira", afirma Bekoff (1998, p. 84), reforcando seu carater duplo--fazer isto querendo significar aquilo. Para ele, a brincadeira oferece aos seus participantes a oportunidade de descobrir, em um ambiente seguro, como agir diante uns dos outros, inclusive na resolucao de conflitos.

Em 2009, em parceria com a filosofa Jessica Pierce, esta ideia encontrou sua forma mais bem acabada no livro Wild Justice: the Moral Lives of Animals. Nele, os autores afirmam peremptoriamente que os "animais sentem empatia uns pelos outros, tratam-se de modo justo, cooperam em direcao a objetivos comuns e se ajudam uns aos outros em caso de problemas. [...] em suma, que os animais tem moralidade" (1) (Bekoff e Pierce, 2009, p. 1). Mais que isso, consideram que essas vidas morais nao devem ser comparadas a humana, mas compreendidas em sua singularidade nao apenas especifica, mas grupal: "nao ha uma 'natureza lupina', mas 'naturezas lupinas' " (idem, p. xii). No livro, a brincadeira nao e o unico comportamento analisado, embora seja considerada como o que "oferece a evidencia mais convincente acerca de um sentido de justica [fairness] em mamiferos sociais" (2) (idem, p. 115) e figura no que eles chamam de "aglomerado da justica", que tambem inclui "compartilhamento, equidade [...] e perdao" (idem, p. xiv). Brincar, que requer habilidades como boa negociacao e justica ("unfair play e um oximoro", idem, p. 116), tambem promove um tipo de inteligencia criativa, os animais improvisando sequencias de movimentos e alteracoes neles o tempo todo--alem de ser tremendamente divertido. A filosofa e psicologa Vinciane Despret comenta, a esse proposito, que na brincadeira os animais...

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