O Princípio da Adequação Setorial Negociada: Limites e Fortalecimento da Negociação Coletiva

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro
Páginas326-337

Page 326

Introdução

Os princípios são fundamentais para o Direito, quer inseridos no sistema como um todo, quer na órbita de cada ramo específico e autônomo.

A propósito, quando perquirida a autonomia de qualquer ramo jurídico, os princípios apontam sua importância, revestindo-se de indispensabilidade. A autonomia é calcada na construção de determinados princípios específicos por parte deste ramo jurídico, de modo que permita o seu estudo e tratamento diferenciado por parte dos operadores do Direito.

Notadamente no Direito do Trabalho, os princípios estabelecem as diretrizes básicas, como se fossem estrelas guias, aptas a conduzirem o intérprete, como regras de otimização, trazendo a lume as características principais desse ramo da Ciência Jurídica, dando-lhe, por isso mesmo, a marca especial que tanto o diferencia no plano geral do universo jurídico.

O princípio da adequação setorial negociada é aquele que procura estabelecer uma disciplina própria para a elaboração dos diplomas coletivos, impondo certas regras às condições negociadas coletivamente, fixando as barreiras e as possibilidades da transação realizada pelos entes coletivos.

Além disso, este princípio busca estabelecer critérios para uma pacífica coexistência entre o negociado e o legislado, harmonizando as normas produzidas pelo Estado - normas heterônomas - e as normas surgidas da negociação coletiva através dos seus sujeitos coletivos contratantes - normas autônomas -, servindo, ainda, de fundamento de validade para utilização da teoria do conglobamento.

A Constituição Federal de 1988 fincou bases sólidas para a produção de normas jurídicas via negociação coletiva, como meio de democratizar o Direito do Trabalho e deslocar a solução do conflito entre o capital e o trabalho para um âmbito mais próximo dos seus principais atores, permitindo aos próprios destinatários das normas adequarem suas necessidades setoriais.

Assim, a adequação setorial negociada é um princípio justrabalhista relativamente novo, uma vez que os fatores articuladores de sua estruturação surgiram com o advento da CF/88, que procurou estabelecer uma maior valorização para a negociação coletiva.

A primeira referência sobre o princípio da adequação setorial negociada foi realizada pelo Professor Mauricio Godinho Delgado, em artigo publicado no Jornal Trabalhista, intitulado Princípios do Direito do Trabalho1, posteriormente incorporado em livro2.

O prestigiado princípio informa à ordem jurídica o seu caráter tuitivo, atuando como salvaguarda dos direitos trabalhistas e protetor da parte hipossuficiente da relação de emprego.

Mas a adequação setorial negociada demonstra sua importância maior na efetivação da nova hermenêutica constitucional, procurando estabelecer uma sistematização da interpretação a ser aplicada nas práticas dos tribunais brasileiros, quando diante das controvérsias relativas às relações entre normas trabalhistas negociadas e as normas legisladas pelo Estado.

A nova hermenêutica constitucional se propõe a estudar os princípios, as normas e os fatos, compreendendo o papel do legislador como aquele que semeia a norma, alçando à sua real importância o papel do intérprete, no sentido de fazer falar

Page 327

a lei, dando concretude à norma e finalizando seu processo de elaboração, através da compreensão da sociedade, da comunidade e da realidade destinatária do texto legal.

A partir da observação da realidade, e da possibilidade de participação dos destinatários da norma em seu processo de elaboração, o intérprete consegue dar o máximo sentido e a máxima eficácia à norma. Neste contexto, o princípio da adequação setorial negociada apresenta-se como importante instrumento de sistematização da realidade à Constituição, fixando os limites para a preservação desta.

1. Que realidade é esta?

A realidade na qual se insere o estudo do Princípio da Adequação Setorial Negociada é de flexibilização das normas trabalhistas, ausência de estabilidade no emprego e, consequentemente, ausência de poder de resistência dos empregados, além de um grave cenário de fraqueza social e política dos sindicatos.

No contexto atual, a situação dos direitos sociais do trabalho é bem diferente e suas características se vinculam diretamente ao novo modelo de Estado e às condições sociais, econômicas e políticas que o cercam.

Este novo mundo em muito supera a análise liberal da economia, da sociedade e da forma de prestação (ou abstenção) das políticas públicas, que formou a primeira corrente do pensamento econômico, construindo a base econômica liberal que se tornaria hegemônica no desenvolvimento do capitalismo: o pensamento liberal burguês3.

Estamos falando agora de um Estado caracterizado por uma sociedade de massas, de ideias pluralistas, envolvido em uma política mundial de tons nitidamente neoliberais. Isso significa que há a tendência de se desregulamentar as normas trabalhistas, de abertura econômica e de mundialização do capital. Também ocorre a multiplicação de direitos e de conflitos de massa.

Afinando-se a essa nova realidade, o Estado deve buscar adequar suas políticas públicas, sua linha legislativa e sua atuação jurisdicional, principalmente em virtude do desprestígio pelo qual vem passando os direitos sociais do trabalho em fase de neoliberalismo.

Porém, ressalte-se que, ainda que a sociedade seja de massas e esteja passando por uma séria e importante reestruturação produtiva, os direitos sociais do trabalho não perdem sua importância, como quer fazer pensar a corrente ultraliberal do pensamento. Pelo contrário, ela cresce em necessidade na medida em que limita e moraliza o capitalismo.

Ademais, a terceira revolução tecnológica muda as bases da produção de bens e serviços. Isso tem o aspecto positivo de mostrar que a sociedade é dinâmica e está em inexorável desenvolvimento.

Quando o capitalismo deixa de ser industrial, o trabalho imaterial ganha relevo. A sociedade muda e, com ela, as relações de trabalho e os direitos trabalhistas. Enfim, muda o direito do trabalho, mas isso não significa seu fim.

Márcio Pochmann alerta que acreditar na assertiva de que parece intransponível o fato de que ou se precariza ou se aceita o desemprego é acreditar numa falsa disjuntiva. É plenamente possível que todos trabalhem, pois a centralidade do trabalho permanece evidente como um elemento de organização da vida humana, porém com uma temporalidade muito menor nos dias atuais. Afirma esse autor:

Entretanto, continuamos discutindo as condições de trabalho ainda como herdeiros do capitalismo do século XX. É preciso considerar que estamos diante de uma nova possibilidade técnica de organização do trabalho, com jornadas diárias de quatro horas por três dias por semana, com ingresso no mercado de trabalho somente a partir dos 25 anos de idade. Antes disso, a pessoa deve ser totalmente integrada a uma educação que deve ser recebida ao longo de toda sua vida, diante da complexidade da sociedade contemporânea. Ademais, estamos próximos também de chegar a uma longevidade que vai bater ao redor dos 100 anos de idade, não mais nos 70 anos atuais ou - como era há um século - de 40 anos.4

Portanto, é possível que o Estado se adapte à nova sociedade sem que isso signifique o sacrifício dos direitos de seus principais atores, os trabalhadores. O cenário que se consolida atualmente, ultrapassados os prazos para concretização do mundo sem trabalho que outrora se alardeava, é de um mundo do trabalho, que não vive sem o trabalho, um sistema capitalista que tem em seu eixo central justamente homens e cidadãos prestando sua força de trabalho.

Atualmente, o Estado está diante de um novo contexto de abertura de mercados, de capital especulativo, de mobilidade do capital em tempo real e em escala mundial, de fraco crescimento econômico e de concorrência acirrada. A par disso, as empresas e a direita política colocam em execução um plano de flexibilização e precarização do trabalho em nome do crescimento econômico e de melhores condições para a livre concorrência. Isso faz com que "governos, sindicatos e cidadãos se sintam cada dia mais impotentes e submissos ao que parece ser a lógica do sistema". Nessa nova ordem a classe trabalhadora se vê envolvida por um ambiente de flexibilização do trabalho, redução da formalidade e constante ameaça de desemprego5.

Page 328

Para Ricardo Antunes, a reestruturação produtiva faz com que as empresas se organizem em redes, enxuguem a produção e reduzam os custos. Elas buscam desorganizar a classe dos trabalhadores como principal mecanismo para participarem da concorrência empresarial. No entanto, ainda que ocorra uma retração do proletariado industrial taylorista e fordista, há a ampliação das múltiplas formas de assalariados. Ou seja, falar no fim do trabalho é, no limite, insustentável. Para esse autor:

Basta conceber de forma ampliada a noção de trabalho, como sinônimo de atividade humana vital, para perceber que todas as formas de sociabilidade humana, desde o passado mais remoto até as projeções mais longínquas, estão a ele associadas. Num plano ontológico, a humanidade não pode reproduzir-se sem trabalho, aqui entendido como atividade vital que produza bens socialmente úteis.6

Ressalte-se que não se busca negar a debilidade que vem enfrentando trabalho, tampouco mascarar os altos níveis de desemprego vivenciados pelos países. De fato, eles existem e são resultado direto da dinâmica do sistema capitalista. O capitalismo sem amarras não encontra limites no ser humano e tenta se desenvolver sem se preocupar em gerar benefícios paralelamente aos trabalhadores.

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT