Regulação Social, Mercado e o Princípio da Dignidade Humana: Quais as Novas Perspectivas da Regulação Estatal?

AutorFrederico Antonio Lima de Oliveira
CargoPromotor de Justiça de 3ª Entrância do Ministério Público do Estado do Pará
Páginas41-70

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"As ideias das pessoas são pedações da sua felicidade." (William Shakespeare)

1. Introdução

O poder regulamentar da administração pública passa por dois aspectos muito ligados ao princípio da legalidade. Trata-se da vinculação da atividade administrativa à lei e às competências formalmente destinadas (ex vi art. 5º, II, da CF/88). Portanto, em termos práticos, o que temos é a limitação das possibilidades de delegação de atribuições regulamentares pelo Executivo (entendase, Administração Pública) fora das competências já estabelecidas no texto constitucional originário. Dessa maneira, em síntese, expomos mais uma questão intrincada no processo regulatório brasileiro, dentre outros aspectos de relevo, que diz respeito à possibilidade de exercício de atos administrativos normativos por meio de regulamentos do Executivo e das agências reguladoras que transferem a função legislativa do Legislativo, implementando políticas de governo. O que nos parece importante ressaltar é que a visível função normativa que vem sendo desempenhada pelo Executivo não deve substituir as manifestações legislativas propriamente ditas na definição das normas-programa que disciplinam políticas públicas.

Em meio a este novo contexto não pacífico quanto ao exercício das funções do Estado e prestação de seus serviços, quer em prol de interesses púbicos, privados ou de ordem social, vê-se, sob qualquer ótica, a transição do que se entenderia como um "Estado executor" que atuava na ordem econômica, via pessoas jurídicas, passando a ser um "Estado regulador1", que fixa regras disciplinadoras para a ordem econômica, exercendo inclusive um papel de fiscalização (ex vi art. 174, CF/88)2.

Nesse aspecto, merece também destaque o papel desempenhado pelas organizações sociais civis no processo de descentralização administrativa. No caso brasileiro, incumbe a essas entidades, e solidariamente ao Estado, a promoção dos interesses coletivos comuns, dos objetivos e dos fundamentos da República. Tais entidades poderão fazer observar o princípio da boa governança, sempre ressaltado nos momentos de crise de governabilidade, como a que enfrentamos no Brasil de hoje3.

2. Regulação social, mercado e dignidade humana como conceitos relacionados

Abordar o tema das formas de intervenção do Estado na economia significa, do ponto de vista teórico do direito, compreender como se configura o ordenamento econômico de um país. Sua análise possibilita identificar a divisão de esferas entre

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o Estado intervencionista e regulamentador da atividade econômica e aquele que se limita a organizar as forças de mercado por meio da aplicação do direito concorrencial4.

É atribuída ao Estado, portanto, uma série de funções na organização do processo econômico. Situando-se de maneira sintética, correspondem a dois grandes grupos5: aquelas em que o Estado aparece como empresário, ou seja, como produtor e distribuidor de bens e serviços, e aquelas em que ele se apresenta como regulador, enquadradas nesse cunho as medidas legislativas e administrativas por meio das quais determina, controla ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, objetivando orientá-los em direções desejáveis e evitar efeitos lesivos aos interesses socialmente legítimos6. Nessa perspectiva ampla, a ideia de regulação7inclui toda a forma de organização econômica por intermédio do Estado, seja na concessão ou outorga de serviço público, seja no exercício do poder de polícia8.

O poder de polícia, como assim se encontra preconizado nos arts. 145 e seguintes da CF/88, vem sendo severamente questionado quanto às suas características sociais e orgânicas na contemporaneidade. Buscando um conceito mais equânime com o Estado constitucional, o que se pode entender por constitucionalismo econômico transcende a concepção liberal e "policialesca" dos idos dos séculos XVII e XVIII. O conceito contemporâneo de poder de polícia passou a ser concebido sob a égide da necessidade de fundamento e finalidade para ser aplicado, e assim entendido numa acepção mais neutra, vinculada à ideia de ordenação social, numa ordem em que se busca evitar a produção de uma contaminação semântica do termo - poder de polícia - eventualmente utilizado para englobar um conjunto inorgânico de atividades de limitação, pretensamente conferidas por meio de poderes implícitos e naturais à Administração Pública, ultrapassando em muito os limites de conteúdo destinados pela lei.

A substituição da realidade econômica do pós-guerra, bem caracterizada pela acumulação de riquezas em bases nacionais, por uma nova realidade econômica do Estado, comprometido com a inovação tecnológica e uma nova ordem econômica internacional, foi uma realidade histórica dos anos 19309. O Estado contemporâneo sofreu grandes mudanças nos finais da década de 1990, passando a planejar e regular as atividades privatizadas, garantindo a concorrência e os direitos do consumidor em harmonia com o desenvolvimento tecnológico.

Três grandes contextos são perceptíveis nas novas bases estatais formadas. De um lado, defendeu-se um novo constitucionalismo, regionalizando-se as uniões dos Estados soberanos; por outro lado, desenvolveu-se um novo conceito humanitário em sistema global, e, por fim, transcenderam-se os limites da atividade econômica dentro de um habitat específico, criando-se um novo e amplo

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ambiente internacional para o capital transnacional que se movimenta ao redor do globo10. Este novo ambiente vem formando blocos regionais transnacionais, donde a integração econômica traz também necessidades de integração política e jurídica11.

Os contextos apontados, em verdade, se acoplam e interagem, porém de forma semi-independente, possuindo pontos de comunicação e de inferência que não devem ser capazes de perverter as lógicas formais de cada um dos sistemas, quer político, econômico ou jurídico12; podem e, de fato, assumem importância nesta análise, na medida em que a formação de blocos econômicos no pós-guerra também proporcionou, em grau visível, o incremento de um sistema internacional de proteção aos direitos humanos e a internacionalização do direito constitucional, quer pela inserção de mecanismos constitucionais nos tratados internacionais, quer pela internalização do direito humano internacional no corpo das constituições contemporâneas13.

O poder de polícia vem sendo severamente questionado quanto às suas características sociais e orgânicas na contemporaneidade

Desse novo contexto, grandes problemas também advieram para nossa realidade14. A retórica da globalização vem sendo acompanhada e legitimada ideologicamente e, embora já se apresente um contramovimento nesse sentido15, a ideia de minimização da ação do Estado resume o remédio neoliberal a ser aplicado à inflação. O constitucionalismo vem sendo rediscutido em função das grandes temáticas apontadas neste estudo16, e se tem apresentado uma certa desconfiança do atual modelo constitucional global, com a consequente flexibilização das soberanias. A pós-modernidade17 não poderá, a nosso ver, sepultar a garantia constitucionalista do pós-guerra, que instituiu e deu base à maioria das democracias contemporâneas ao redor do globo.

Sob esse prisma, conforma-se a concepção de democracia e de legitimidade no Estado regulatório, com as ideias de Jürgens Habermas, bem alinhadas por professor da Universidade de Nova York, Paul G. Chevigny, que diz:

"O modelo institucional de Habermas tem fortes ligações com o liberalismo; um propósito principal do modelo é preservar a autonomia pessoal, como também descentralizar as decisões tomadas é uma característica da sociedade liberal. Assim é aquele Habermas que reitera que a esfera pública deve ser ‘envolta em padrões liberais de cultura política’ (BFN 358); as pessoas têm que refletir sobre os assuntos públicos levando em conta os próprios direitos a fim de respeitar os direitos dos outros. Mas os direitos individuais existem no modelo institucional fundados não precipuamente nos interesses individuais contra o Estado e os outros indivíduos para proteger um

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reino privado, mas no interesse de compreensão de coletivo e a formação de um reino público. A função das proteções processuais fortes é manter aquele reino público como democrático, e assim deixar todo mundo participar, fazendo leis para todos, após uma livre discussão relativa a todas as implicações e todas as alternativas. O que permanece obscuro é como o sistema legal irá lidar com dificuldades do estado regulador e o aumento da autonomia individual." 18 (tradução própria)

O processo de "globalização" teve o primeiro nome de "mundialização", a partir de algumas estruturas preestabelecidas; dentre elas, podemos destacar: a emergência de uma nova divisão do trabalho advinda com o Estado liberal; o desenvolvimento de mercados fora do âmbito das nações; a expansão das empresas multinacionais; a importância dos acordos internacionais entre as nações; a redução do papel do Estado com a privatização; a hegemonia dos conceitos neoliberais nas relações econômicas; tendência generalizada, em todo mundo, à democratização e à proteção dos direitos humanos, aliada ao aparecimento dos atores supranacionais não governamentais. Esses novos paradigmas contemporâneos provocaram o surgimento de uma regulação globalizada, deslocando o interesse nacional para o interesse global, e, dessa forma, instituindo regiões periféricas e centrais de interesses sociais, com reflexos eminentemente econômicos.

Friedrich Hayek considerava a democracia como o regime "menos ruim" para a sociedade, e, ancorando-se na visão de Karl Popper, dizia ser ela uma "sociedade aberta", onde o Estado é uma necessidade e, ao mesmo tempo, um mal necessário, e que deve ter os seus instrumentos de controle...

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