Admissão de pessoal pela Administração Pública sem a realização de concurso

AutorEduardo Sérgio de Almeida
CargoJuiz do Trabalho
Páginas76-85

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1. Colocação do problema

A moralidade, a imparcialidade e a profissionalização do serviço público constituem objetivo perseguido de longa data pela socie-dade brasileira. Embora formalmente exigido o concurso público para provimento dos cargos efetivos, não se observava tal requisito no passado. No presente, muitas administrações, sobretudo as de âmbito municipal, mas também as estaduais, procuram contornar as exigências legais, a fim de admitirem servidores mediante critérios político-eleitoreiros, e não com base no mérito dos candidatos.

A Constituição brasileira de 1946, a primeira democrática, já continha a exigência da realização de prévio concurso público para admissão de pessoal por parte da administração pública. O art. 186, da referida carta, assim determinava: “A primeira investidura em cargo de carreira e em outros que a lei determinar efetuar-se-á mediante concurso, precedendo inspeção de saúde”. O art. 188, do mencionado diploma legal, porém, já abria exceção à regra quando previa a estabilidade dos admitidos sem concurso, depois de cinco anos de exercício. Tal Constituição teve vida efêmera. O golpe militar de 1964 procurou elaborar nova Constituição, promulgada em 1967 e logo emendada em 1969, diploma cuja existência, no que concerne às garantias dos direitos políticos, era meramente simbólica, pois apenas conferia certa aparência de legitimidade democrática ao regime militar, na verdade, ditatorial. A Constituição da ditadura militar, no § 1º, do art. 97, estabelecia que os cargos públicos eram acessíveis a todos os brasileiros que preenchessem os requisitos legais e, no mesmo parágrafo, também exigia o concurso público para a primeira investidura em função pública, mas ressalvava os casos estabelecidos em lei, para os quais

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não se exigiria tal requisito. A ressalva, que deveria constituir-se em exceção, era, de fato, a regra.

Apesar das exigências legais, constitucionalmente estabelecidas, para admissão de pessoal por parte da Administração Pública, mediante a realização prévia de concurso público, os administradores quase sempre fizeram tábula rasa dessas exigências. A Constituição de 1967, emendada em 1999, excepcionou as hipóteses previstas em lei nas quais se dispensava o concurso público, com a finalidade óbvia de premiar os apaniguados e áulicos mediante a distribuição de postos na Administração Pública. No regime constitucional anterior — da Constituição de 1946 —, também se nomeavam servidores livremente, no espírito do nosso velho patrimonialismo, tão bem estudado e definido por Raimundo Faoro na sua magnifica obra Os Donos do Poder. Em palavras suas: “A comuni-dade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente... Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi”.1

Com a redemocratização do país ocorrida a partir de 1985, após a posse de um presidente não escolhido pela cúpula militar, elaborou-se uma nova Constituição, de cunho nitidamente democrático, promulgada em 5 de outubro de 1988. Na nossa atual Carta Magna, a exigibili-dade de realização de concurso público para a admissão de pessoal por parte da Administração Pública é, mais uma vez, consagrada e bastante reforçada. O § 2º do art. 37, da Constituição, além de cominar de nulidade o ato administrativo que admite pessoal sem a realização de concurso público, quando exigido, determina a punição da autoridade responsável. Apesar do maior rigor legislativo e da muito maior vigilância da sociedade civil, os administradores públicos continuam, sob diversas justificativas e enquadramentos legais — e, na maioria das vezes, sem se preocuparem com qualquer fundamentação para o seu ato —, a admitir pessoal, desobedecendo à lei. Essa conduta constitui um problema ainda a ser resolvido no Brasil. Tanto os órgãos fiscalizadores do Poder Executivo, como também os Tribunais de Contas — órgãos auxiliares do Poder Legislativo —, do mesmo modo que o Poder Judiciário não têm conseguido impedir a violação da norma legal mencionada, infringida impunemente por muitos administradores públicos, sobretudo prefeitos dos pequenos municípios brasileiros. O problema, porém, não se limita às comunidades pequenas e distantes dos centros mais desenvolvidos. Também prefeitos dos grandes municípios e até governadores dos Estados federados contratam servidores sem o requisito da realização de prévio concurso público.

A solução mais comum e, a maior parte das vezes, única, no âmbito administrativo, consiste em se determinar ao administrador público que providencie a demissão do pessoal irregularmente admitido. A determinação referida origina-se dos Tribunais de Contas, órgãos auxiliares do Poder Legislativo a quem compete exercer o controle externo da Administração Pública.

O § 2º, do art. 37, da CF, contém dispositivo que prevê punição à autoridade responsável pela irregularidade, isto é, pela admissão de pessoal sem concurso público. Apesar de tal previsão legal, a autoridade, em geral, não é punida. Na esfera do Poder Judiciário, os trabalhadores admitidos sem concurso, após demissão, buscam assegurar, mediante processo judicial perante a Justiça do Trabalho, algum benefício decorrente do tempo de serviço prestado, uma vez que são afastados do trabalho sem o recebimento de quaisquer títulos, muitas vezes, sequer de parte dos salários do período trabalhado.

No âmbito dos municípios, quando, em virtude de eleição, novo prefeito assume a administração de uma das muitas localidades do

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país, quase sempre ele encontra inúmeros servidores admitidos de forma irregular. Quando o novo administrador pertence a algum partido ou grupo de oposição ao administrador anterior, em geral demite esses servidores, muitas vezes alegando estar cumprindo determinação legal. Na verdade, o afastamento daqueles irregularmente admitidos se dá, na maior parte das ocasiões, por mesquinha perseguição política, uma vez que os admitidos pelas administrações anteriores são, de fato ou supostamente, eleitores do grupo político derrotado. Feitas as demissões, o novo administrador, de ordinário, contrata, sem obediência ao requisito legal da prévia realização de concurso público, outros servidores, obviamente, dentre seus partidários e eleitores.

Em razão do grande número de ações perante a Justiça do Trabalho propostas por ex-trabalhadores da administração pública admitidos com desobediência a preceito constitucional, houve grande dissensão interpretativa entre os tribunais inferiores, o que levou a matéria a ser objeto de uniformização da jurisprudência trabalhista e de edição de súmula por parte do TST.

A Súmula n. 363 do TST estabelece que a contratação de servidor público sem a realização de prévio concurso público exigido pelo art. 37, inciso II, da Constituição Federal, gera nulidade e são devidos ao contratado apenas a remuneração pactuada e os valores relativos ao FGTS — Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. O STF é ainda mais restritivo. No julgamento do agravo regimental em agravo de instrumento, Processo n. 488.991-0, firmou entendimento de que “Ao empregado admitido no serviço público sem concurso, em caso de nulidade do contrato de trabalho, só é devido o saldo de salários”.2 Muito embora mereça a maior consideração a máxima instância trabalhista brasileira e se deva respeito pelas decisões da Corte Suprema pela qualidade dos seus julgados e capacidade dos seus membros, aqui se discorda frontalmente de tal posicionamento. Isso porque este fere o princípio da dignidade da pessoa humana, contido no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, considerado um dos fundamentos da nossa República pelo próprio texto constitucional, e viola outras regras e princípios fundamentais positivados no Direito brasileiro.

2. Dos fundamentos da Súmula n 363 do TST e dos direitos e garantias fundamentais

No Direito do Trabalho brasileiro aplica-se a teoria um pouco modificada das nulidades, originária do Direito Civil. Os efeitos dessa nulidade variam de acordo com quem sejam as partes contratantes. No caso de contrato de trabalho firmado com menor de 16 anos, por exemplo, ao qual é vedado o trabalho, pelo art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, considerando-se que a proibição do trabalho e a consequente nulidade do pacto laboral são instituídas em favor do menor, lhes sendo deferidos todos os direitos decorrentes de um contrato de trabalho válido. Em se tratando de contrato de trabalho pactuado com a Administração Pública, sem que o trabalhador seja submetido a concurso público, considera-se tal contrato nulo deferindo-se ao obreiro apenas os salários do período laborado, sob o argumento, nesse aspecto absolutamente correto, de que não se pode repor a força de trabalho por ele despendida. Com base nessa teoria, um pouco mais mitigada, o TST editou a Súmula n. 363.

A não contagem do tempo de serviço do trabalhador admitido irregularmente pela Administração Pública para efeito de aposentadoria, porém, é um incoerência, posto que não há possibilidade do retorno ao status quo ante, isto é, não se pode restituir-lhe o tempo trabalhado. É, contudo, com base nesse argumento — o da impossibilidade de restituição do tempo gasto — que se lhe defere o pagamento da remuneração pactuada.

A teoria civilista das nulidades adotada no...

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