Pesquisas juridicas espinosistas: contribuico epistemologicas/Spinosistic legal researches: epistemological contributions.

Autorde Abreu, Joao Mauricio Martins
CargoReport

"A epistemologia nao e inocente" (1 *) (Deleuze, 2004: 62) A obra de Espinosa (1632-1677) tem inspirado e orientado, ha anos, ensaios e pesquisas em campos que ultrapassam os limites academicos da Filosofia e da Historia. Dentre eles inserem-se trabalhos que, a partir de Espinosa, tratam de problemas historicamente afeitos ao campo juridico (como o poder constituinte, a propriedade privada, os direitos e as instituicoes em geral); trabalhos, centrados em Espinosa, que se dirigem primordialmente a estudantes, professores e pesquisadores da nossa area (nao a toa publicados por editoras especializadas); e trabalhos que poem Espinosa em dialogo com expoentes da filosofia e teoria juridica (como Grotius, Hobbes, Kant, Kelsen). Ja existem, portanto, fundacoes firmes para o movimento que, mesmo desigual, irregular e ainda periferico, o titulo denomina pesquisas juridicas espinosistas - uma linha em processo de afirmacao. (2)

A proposta deste artigo e contribuir com a organizacao e o avanco desse movimento e encorajar novas pesquisas juridicas baseadas na obra do filosofo, a partir da discussao de problemas epistemologicos e, consequentemente, de metodo. E as pesquisas em curso e as futuras que o texto se dirige.. Nao para apontar censuras, mas, ao contrario, para tentar remover, com seguranca, amarras que muitas vezes inibem iniciativas de investigacao, diante da ortodoxia dos canones: sejam os da pesquisa juridica tradicional, sejam os da analise textual de Espinosa.

Toda pesquisa juridica que queira incorporar a obra de Espinosa, e que nao seja historica, se defrontara com questoes de validade epistemologica e de definicao de metodo. Esses problemas podem ser apresentados a partir de duas formulacoes fundamentais. Primeira: como veremos no item 1, um dos canones da pesquisa juridica tradicional e o do dever que o jurista normalmente se impoe de oferecer solucoes para as questoes que apresenta; ora, a complexa obra de Espinosa costuma por questoes e perspectivas ainda pouco conhecidas no campo juridico, de modo que a simples introducao desses problemas ja tem valor em si; dai a pergunta: em que sentido se pode reivindicar "juridica" uma pesquisa sobre Espinosa que nao ofereca solucoes? Segunda formulacao: como veremos nos itens 2 e 3, estamos distantes do contexto historico, geografico, social, politico, economico e juridico de Espinosa, que nasceu, cresceu e morreu na Holanda do seculo XVII; dai a pergunta: em que medida e de que maneira podemos teorizar hoje, no Brasil, a partir de uma obra de passado e contexto relativamente afastados, cujo autor nao tinha em seu horizonte as questoes que nos afligem no exato momento em que voce le esta frase?

Este artigo apresenta uma tentativa de resposta. Resposta que passa por tres questoes desdobradas das formulacoes fundamentais: (a) quais forcas canonicas podem inibir a incorporacao da obra de Espinosa as pesquisas juridicas interessadas na contribuicao do filosofo?; (b) os procedimentos e criterios filologicos sao definitivos para distinguir o "certo" do "errado" nas interpretacoes da obra de Espinosa que conhecemos e que produzimos?; (c) pode a obra de Espinosa dizer algo a problemas historicos e de sentido conceitual, linguistico e cultural que nao sao os seus?

  1. Primeiro problema: afirmar a teoria contra o habito doutrinario

    Todo habito doutrinario, uma vez instituido, tolhe a expansao da pesquisa. Precisamos substituir, em definitivo, o modelo doutrinario de pesquisa juridica pelo de investigacoes produtoras de teoria - que nao deixam de ser juridicas por nao serem doutrinarias. Somente a amplitude dos questionamentos e metodos teoricos, na trilha das melhores investigacoes de Ciencias Sociais e Humanas, permite uma abertura para o futuro e para a critica. A doutrina e necessariamente doutrina do estabelecido, mantendo integra, na pratica, sua etimologia latina, ligada a docere (ensinar), mesma origem de docil (3). Quando faz o seu melhor trabalho, a doutrina investiga a historia de um dado instituto, dentro e/ou fora do pais, bem como sua linhagem filosofica, sociologica, antropologica etc.; liga-o sistematicamente a outros institutos ja existentes, ressaltando os principios comuns; apresenta todas as interpretacoes e usos que vislumbra, bem como a abordagem "teorica" de outros doutrinadores e a pratica dos tribunais, quando ha; e pode, enfim, sugerir novos usos e interpretacoes para ajustar distorcoes do sistema. Mas nenhum trabalho doutrinario concebe o novo ou uma critica profunda do que ja existe, porque a funcao caracteristica da doutrina e professoral. Nenhuma doutrina seria capaz de produzir verdadeira tese, porque nao se ensinam hipoteses de pensamento; hipoteses sao discutidas e sustentadas ou afastadas, nao exatamente ensinadas; e sao as hipoteses que estao na base de toda verdadeira tese, desde a etimologia grega: hypo, thesis. Toda tese e teoria, nao doutrina, porque demanda uma liberdade e amplitude de investigacao e metodos que o docere nao admite. Teoria nao tem funcao predeterminada.

    Essa limitacao propria do habito doutrinario remonta a problemas epistemologicos da dogmatica juridica. A dogmatica desempenha uma funcao social muito bem exposta em trabalhos classicos, e fundamentais, de Tercio Sampaio Ferraz Jr.. O problema nao esta, obviamente, na existencia de uma, ou melhor, de varias formas de dogmatica juridica. O problema esta na pretensao de qualificar o que e teoria "juridica" e o que nao e a partir de perspectivas dogmaticas do Direito. O modo mais aberto de caracterizacao da dogmatica juridica que conheco e o de Ferraz Jr., que a concebe como um pensamento tecnologico as voltas com a questao da decidibilidade (Ferraz Jr., 1998; 1980: 104-108; 1994: 85-93). Elejo essa caracterizacao como guia do raciocinio.

    Segundo Ferraz Jr., diferentemente do que ocorre em outras areas como a Psicologia e a Sociologia, o doutrinador se sente vinculado, quando coloca problemas, a apresentar propostas, modelos de solucao viavel (Ferraz Jr., 1980: 104-108). Percebe-se, na base dessa afirmacao, a influencia do mesmo pressuposto da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Porque o que esta em questao, tanto para Kelsen como para Ferraz Jr, nesse momento central do texto, e a distincao da chamada ciencia juridica de outros campos do conhecimento, ainda que Ferraz Jr. nao aceite a proposta formal-positivista de Kelsen. Em ambos esta pressuposta uma distincao que seja precisa e definitiva para o Direito. Em Kelsen, a norma juridica e o principio da imputacao sao o objeto exclusivo do conhecimento juridico (Kelsen, 2006: 1-65 e 79-119); em Ferraz Jr., a questao da decidibilidade e a funcao tecnologica que ela impoe sao o carater distintivo do oficio do jurista.

    Norberto Bobbio, em trabalho dedicado a uma defesa da Teoria Pura do Direito (Bobbio, 2006: principalmente 21-56) - que poderiamos, no que sera dito, estender a defesa da distincao do juridico em Ferraz Jr. - sustenta que os adversarios de Kelsen sao, na verdade, adversarios das distincoes. E em boa medida ele tem razao: somos adversarios do uso que as distincoes rigidas no campo juridico suscitam - e nao de Kelsen, de Bobbio ou de Ferraz Jr.. Por dois motivos: primeiro pela dubiedade historicamente verificavel do criterio distintivo do fenomeno juridico; segundo pelo efeito discriminatorio que as varias tentativas de distincao produzem. A rigidez e seus usos sao os grandes problemas dessas distincoes definitivas do "juridico". A busca de um criterio distintivo do fenomeno juridico esta diretamente relacionada ao proprio esforco historico de conceituacao do Direito. E, embora uma pratica milenar, nao ha qualquer sinal de consenso sobre a existencia de um conceito preciso de Direito entre os juristas, o que sugere de antemao que duvidemos de distincoes por definicao. O efeito discriminatorio das distincoes por definicao, por sua vez, e praticamente intuitivo: a consequencia imediata do corte que separa o Direito do nao-Direito nao e apenas classificatoria - como que a supor neutralidade - mas desclassificatoria, porque costuma desqualificar a importancia juridica de pesquisas que fujam aos canones. Quando um jurista influenciado pelo formal-positivismo afirma, p.ex., que uma pesquisa e de Sociologia e nao de Direito, normalmente nao e a classificacao positiva da pesquisa como sociologica o que sobressai, mas a classificacao negativa da pesquisa como "nao-juridica".

    A producao teorica nao e uma lei, uma sentenca judicial ou um contrato, que incidem diretamente sobre a vida dos envolvidos; tambem nao e um precedente a ser observado pelos casos concretos que a ele se assemelhem. Enquanto e socialmente desejavel que sentencas, contratos, leis, precedentes tenham parametros bem definidos e estabelecidos para sua producao, justamente por conta dessa incidencia imediata sobre a realidade, nada de semelhante se passa com a investigacao teorica, que pode ser tao livre quanto o seu objeto de investigacao permita. Sem duvida, parte consideravel da pesquisa juridica pode - e talvez deva, nao e esse o ponto - dedicar-se centralmente a tentativa de influenciar e balizar sentencas, contratos, leis, precedentes, apresentando propostas de solucao viavel e assumindo a funcao tecnologica destacada por Ferraz Jr.. No entanto, isso nao significa que toda pesquisa juridica deva estar necessariamente as voltas com a questao da decidibilidade. Afinal, existe uma base de pensamento nao-tecnologico que envolve e informa a producao da obra que assume funcao tecnologica. O mesmo ocorre com as leis, sentencas, precedentes judicias: ha em todos eles discursos de mundo subentendidos. E se a pesquisa juridica repele, como principio disciplinar, abordagens nao-tecnologicas (as que deixam o juizo em suspenso sobre solucoes), ela abdica de concorrer para a formacao desses subterraneos discursivos, que sao, nao obstante, decisivos na formacao do juizo.

    Nesse cenario de questoes, apenas o habito irrefletido ou o saudosismo de um...

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