O peso da redemocratização no processo de integração entre Brasil e Argentina

AutorFabrício R. Marques/Luís Rodolfo Cruz e Creuz/Marcelo Driusso
CargoJornalista formado na Universidade de Brasília (UnB)/Advogado e Consultor em São Paulo/Administrador e Consultor de Empresas em São Paulo
Páginas20-48

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Introdução

Regimes1 autoritários têm dificuldade inata de patrocinar processos de integração regional ou de participar deles. A incompatibilidade tem razões variadas. Com a multi-plicação de práticas econômicas e de responsabilidades compartilhadas, a integração impõe processos de transferência de soberania política que, a despeito das vantagens prometidas, não encontram intersecção possível com os ideários nacionalistas frequentemente seguidos por ditaduras tampouco pela tendência desses regimes de buscar hegemonia e fomentar disputas geopolíticas com vizinhos. Outro complicador é que os regimes de exceção inspiram uma natural desconfiança em negociações multilaterais. Se não existem referências legais consolidadas ou sistemas jurídicos transparentes a regular o cotidiano de um país, que garantias os vizinhos e os investidores terão em relação ao respeito de seus direitos?

Chiarelli (1997) sustenta que a liberdade de empreender, característica das demo-cracias liberais, representa requisito fundamental na promoção da integração. Já o dirigismo estatal e as limitações à livre circulação de pessoas, que ocorrem com frequência em ditaduras, são em geral incompatíveis com a concepção de blocos econômicos:

A estatização, a economia dirigida, o sistema oficial de subsídios, desequilibrando o processo concorrencial, inviabilizando o livre mercado, são procedimentos, no mundo econômico, que afrontam com a ideia de Integração, necessariamente casada com a livre-iniciativa, a ausência de incentivos governamentais, a circulação extrafronteiras de pessoas e capitais, etc. A integração tem sua base econômica assentada na melhor produtividade para garantir exitosa competitividade. É a vitória do mais apto, e não do mais protegido (CHIARELLI, 1997, p. 20).

A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), fundada em 1951 e considerada o primeiro passo concreto para a integração da porção ocidental do Velho Continente, só se tornou viável após a consolidação da democracia em países que haviam vivido regimes totalitários poucos anos antes, notadamente a Itália e a Alemanha (VALENTINI, 2007). Foi a primeira vez que ocorreu transferência de direitos de soberania de alguns países para uma instituição europeia. O objetivo da Ceca, formada por França, Itália, Alemanha Ocidental, Holanda, Bélgica e Luxemburgo era integrar as indústrias do carvão e do aço dos países europeus ocidentais.

Criada em 1957, a Comunidade Econômica Europeia (CEE), composta, não por acaso, pelos mesmos países da Ceca, não exigia formalmente em seus primórdios que seus membros fossem democracias. Mas o ingresso de nações como Portugal, Grécia e Espanha só foi possível em meados dos anos 1980, algum tempo após o encerramento de seus ciclos autoritários. Aqui, verificamos forte corelação com o tema a que nos propusemos, considerando o visível inter-relacionamento entre os tempos de paz e ventos

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democráticos, e períodos obscuros com marcada influência autoritária. Desta feita, com a queda das ditaduras militares em Portugal (1974), Grécia (1974) e Espanha (1975) foi propiciada a adesão destes países à CEE. Em 1981, a Grécia, Espanha e Portugal, em 1986, tornaram-se membros da comunidade, passando esta a estender-se até a Europa mediterrânica.

Em 1962, os três países chegaram a manifestar a intenção de aderir ao bloco. O processo de adesão da Grécia ficou suspenso ao longo da ditadura que vigorou de 1967 e 1974. Portugal só trabalhou efetivamente pela adesão a partir de 1977, três anos após a Revolução dos Cravos, que sepultou a ditadura nacionalista e isolacionista inaugurada em 1932 por António de Oliveira Salazar (1889-1970). A Espanha igualmente candidatou-se a ingressar no bloco após a morte do Generalíssimo Francisco Franco (1892--1975). As disparidades econômicas existentes nestes países, somadas à má reputação que seus regimes tinham entre a opinião pública europeia, exigiam uma boa vontade nas negociações que nem seus ditadores nem as autoridades do bloco se dispuseram a empreender.

A experiência da América Latina também mostra que a instabilidade política impôs obstáculos a pelo menos dois esforços de integração empreendidos a partir dos anos 1960. O Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), que reúne Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador, obteve resultados animadores em seus primórdios, até que alguns de seus países-membros, tomados por perturbações políticas, converteram-se em adversários. Em 1969, os vizinhos Honduras e El Salvador, governados respectivamente pelos generais-presidentes Oswaldo López Arellano e Fidel Sánchez Hernández, mantiveram uma guerra por questões fronteiriças. Após o fim do conflito, que durou 100 horas, Honduras fechou a passagem pelo seu território dos caminhões salvadorenhos, causando um duro golpe nas relações comerciais entre os países centro-americanos.

Da mesma forma, o Pacto Andino, hoje formado pela Bolívia, Colômbia, Equador e Peru e Venezuela, sofreu um revés importante em 1976, com a saída do Chile do bloco. Em 1978, a Bolívia rompeu relações com o Chile, que, em ato seguinte, retirou-se do bloco. O Chile foi membro oficial do Pacto Andino entre os anos de 1969 a 1976, permanecendo como observador de 1976 a 2006. Em 24 de novembro de 2006, o Chile tornou-se membro associado do Pacto, quando foi assinada a “Ata de Constituição da Comissão Mista entre a Comunidade Andina e o Chile”, que representou importante avanço e para o retorno do Chile ao bloco, sendo que na mesma Ata, foi criado um grupo de trabalho visando refletir sobre as possíveis formas de representantes chilenos integrarem os órgãos internos do bloco.

A interrupção do processo de integração foi um efeito do golpe militar ocorrido no Chile, que derrubou o presidente eleito democraticamente Salvador Allende três anos antes, como lembra Santoro (2005):

O general Pinochet foi um aliado fiel nos combates da Guerra Fria, chegando mesmo a retirar seu país do Pacto Andino, cujos projetos autonomistas eram vistos com reservas por Washington. Porém, naquele período o Chile continuou bastante

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integrado a seus vizinhos latino-americanos, em particular na repressão internacional contra a esquerda, a chamada Operação Condor. As relações com a Argentina se deterioraram rapidamente, por conta das disputas fronteiriças no Canal de Beagle (SANTORO, 2005, p. 5).

Nascido sob o signo da redemocratização de seus países-membros, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) é citado como exemplo da importância da estabilidade política na sobrevivência de um bloco econômico. Interessante destacar o acompanhamento dos processos globais de busca de mercados e, com certeza, sob grande impacto do fenômeno da globalização, sendo o processo de integração, no caso do Mercosul, utilizado como alavanca para o processo de desenvolvimento, há muito influenciado pelo pensamento e trabalho da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), que forte-mente defendia a industrialização da América Latina. Contudo, Braga (2002) destaca problemas de coordenação nas décadas de 70 e 80 como elementos de fracasso do modelo cepalino de desenvolvimento. Por outro lado, os governos buscaram, na década de 90, valer-se dos fundamentos macroeconômicos para fixar políticas de estabilização, forte-mente influenciadas pelos processos de redemocratização. Segundo Vigevani e Veiga (1996):

Os governos, sobretudo a partir de 1991, utilizaram a integração como uma alavanca para a sustentação da política de estabilização macroeconômica. Mesmo na fase anterior ao Tratado de Assunção, no período Alfonsín-Sarney (1986-1989), em alguma medida o objetivo dos governos era o de utilizar a integração regional para a modernização, ainda que sem privilegiar a abertura comercial para o mundo, concentrando-se nas possibilidades oferecidas por um mercado interno mais amplo (VIGEVANI; VEIGA, 1996, p. 232).

Em 1996, um golpe de Estado foi abortado no Paraguai graças à mobilização de diplomatas e autoridades dos demais parceiros, Brasil, Argentina e Uruguai, alertando os militares paraguaios sobre a inevitável exclusão do país do bloco em caso de rompimento institucional. Fernández (1997), referindo-se ao episódio, afirma que as relações políticas forjadas em regiões integradas economicamente ajudam a estreitar os laços entre os países-membros, como também promover a troca de informações entre vizinhos democráticos e prevenir conflitos entre os membros mais afoitos e belicosos. Após o episódio paraguaio, foi pactuada em 24 de julho de 1998 a chamada cláusula democrática do Mercosul. O Protocolo de Ushuaia, assinado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, além da Bolívia e do Chile, membros associados, estabeleceu formalmente que a vigência das instituições democráticas é condição sine que non para o desenvolvimento da integração regional, sob pena de exclusão dos infratores do bloco. É interessante, ainda, destacar que a sistemática utilizada pelo Protocolo de Ushuaia implica, nos termos do seu art. 4º que, “no caso de ruptura da ordem democrática em um Estado-Parte do presente Protocolo, os demais Estados-Partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado”. Sendo que o art. 5º seguinte fixa momento seguinte na hipótese de fracasso nesta primeira tentativa, a saber: “Quando as consultas mencionadas no artigo anterior resultarem infrutíferas, os demais Estados-Partes do presente Protocolo,

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no âmbito específico dos Acordos de Integração vigentes entre eles, considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas, levando em conta a gravidade da situação existente. Tais medidas compreenderão desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e...

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